Estéticas e Cosméticas do Real no Cinema Brasileiro

O cinema brasileiro é marcado por filmes com abordagens realistas que buscam trazer para as telas experiências e vivências dos mais diversos contextos.

Se, por um lado, essa intenção pode se transformar em uma fórmula estética que torna a nossa realidade meramente exótica, por outro, ela também apresenta abordagens genuínas e particulares de seus realizadores.

Neste artigo, vamos explorar casos distintos de como alguns filmes brasileiros lidam com a realidade.

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A COSMÉTICA DA FOME

Uma das grandes questões do cinema, de modo geral, e também do cinema nacional, é como abordar temas e questões sociais.

Existem vários filmes que buscam retratar a pobreza ou problemas sociais de maneira mais convidativa para o espectador. Cidade de Deus (2002) é um bom exemplo.

Cidade de Deus (2002)

Cidade de Deus (2002) possui cenas violentas e momentos bem gráficos, mas, no geral, é um filme dinâmico e estilizado. A cor é saturada, os cortes são rápidos e existem vários efeitos de pós-produção.

O longa de Fernando Meirelles já foi criticado por uma certa glamourização em sua abordagem estética. Ivana Bentes, uma teórica e professora brasileira, tem uma teoria muito interessante sobre algo que ela chama de cosmética da fome.

Em seu artigo Sertões e Favelas no Cinema Brasileiro Contemporâneo: Estética e Cosmética da Fome, Ivana Bentes compara filmes brasileiros dos anos 1960, que lidam com a temática da pobreza e da seca, com filmes brasileiros da retomada, que também lidam com essas temáticas, especialmente os filmes dos anos 1990 e início dos anos 2000.

Vidas Secas (1963)

Enquanto trabalhos como Vidas Secas (1963) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) seguiam a estética da fome, teorizada posteriormente por Glauber Rocha em 1965 — uma estética que recusava estilizar a pobreza e buscava fazer filmes feios, tristes e gritados, como Glauber aponta em seu manifesto —, filmes brasileiros como Guerra de Canudos (1997) e Orfeu (1999), segundo a autora, transformaram as favelas e o sertão em jardins exóticos.

Ou seja, no lugar da estética crua da fome, certos filmes da retomada buscam estilizar seus temas a fim de torná-los mais atraentes para o espectador. Nesse sentido, a autora afirma que o cinema brasileiro passou de uma estética da fome para uma cosmética da fome.

Guerra de Canudos (1997)

A máxima “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” teria dado lugar a uma steadicam que “surfa sobre a realidade”, uma câmera que paira de modo contemplativo sobre essa realidade e glamouriza o seu entorno.

Ivana Bentes também menciona um cinema internacional popular cuja fórmula seria um tema local ou histórico tratado com uma estética internacional. Assim, alguns filmes brasileiros da retomada buscaram uma estética de exportação ao retratar a realidade do país.

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UMA ESTÉTICA CLÁSSICA

De fato, se compararmos alguns filmes brasileiros dos anos 1960 com os filmes dos anos 1990 e início dos anos 2000, percebemos essa mudança estética em relação ao realismo. Contudo, alguns desses filmes, como Central do Brasil (1998), também buscam uma estética clássica como uma opção bastante consciente.

A própria Ivana Bentes comenta que certos filmes da retomada procuram dominar a técnica e a narrativa clássica.

A questão é que alguns tendem a se deixar levar por uma fórmula estética fácil, que beira o publicitário. Central do Brasil (1998) segue outro caminho ao adotar um contexto realista, mas assumir uma estética clássica que está muito bem equilibrada com seu drama.

Central do Brasil (1998)

Desse modo, podemos concluir que talvez existam dois lados a partir desse pensamento.

Uma obra como Cidade de Deus (2002), possivelmente o ápice dessa cosmética, transforma o seu tema em um entretenimento suspeito, já que sua estética realista se aproxima de certos apelos publicitários. Como diria o crítico Cléber Eduardo, o longa carrega “mais estilo do que verdade”.

Logo, existe uma crítica pertinente ao realismo de exportação de Cidade de Deus (2002) e outros longas. Contudo, é possível perceber que cineastas como Walter Salles ou Andrucha Waddington buscam se filiar a uma certa tradição naturalista que reverencia uma lógica clássica.

Essa relação estética mais tradicional, embora menos moderna, em seus melhores exemplos reforça o humanismo dos temas tratados.

Na própria carreira de Walter Salles, encontramos obras que, pelo menos na minha perspectiva, pertencem a esses dois lados.

Central do Brasil (1998) é um filme bonito e virtuoso, mas que se foca mais no apelo dramático envolvendo a sua premissa universal do que em uma tentativa de glamourizar suas situações.

Abril Despedaçado (2001)

Já um filme como Abril Despedaçado (2001), do mesmo Walter Salles, segue um caminho oposto e se encaixa na teoria de Ivana Bentes.

É um filme que responde a essa fórmula em que o cineasta trabalha um tema local — como o sertão nordestino no início do século XX — mediado por uma linguagem internacional que resulta em uma estética de “bom gosto” visualmente vazia e uma proposição dramática genérica.

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O REALISMO ESTILIZADO DE O INVASOR (2001)

Mesmo nessa época da retomada, existiram outros filmes brasileiros que lidavam bem com a estilização do real. Nesse ponto, Ivana Bentes cita trabalhos como Um Céu de Estrelas (1996) e O Invasor (2001).

O Invasor (2001) é um excelente exemplo de um filme que estiliza o real sem recorrer a uma estética publicitária ou pré-fabricada.

Beto Brant integra muito bem aspectos dos ambientes e cenários com as possibilidades e limitações da película 16 mm. O cineasta trabalha com uma estilização ruidosa do 16 mm que não tenta apenas agradar os olhos do espectador, mas propõe um estado claustrofóbico particular.

O Invasor (2001)

Além disso, ele dilata o tempo de algumas cenas e recusa um ritmo videoclíptico.

Ainda que sua temática e forma remetam a um cinema de gênero cool, o filme não tenta encaixar um projeto estético aleatório na narrativa, mas usa um método específico para conceber seu projeto visual.

Nesse sentido, O Invasor (2001) faz o oposto do que Cidade de Deus (2002) realiza. Ainda que sejam filmes diferentes em suas propostas, o modo como cada um trabalha com o fascínio pela violência e pelo real através da fotografia e da montagem é revelador.

É interessante notar, também, como O Invasor (2001) evita uma polarização moral didática: quase todos os personagens agem de maneira egoísta, mas, ainda assim, o filme não cai no discurso de um mal-estar contemporâneo gratuito, como tendem algumas obras europeias.

Cada personagem, mesmo imerso em um ambiente amoral, é construído como um indivíduo com uma relação específica com seu entorno.

O Invasor (2001)

A câmera na mão, em um estilo que remete aos irmãos Dardenne, contribui para essa individualização e, curiosamente, se alinha à teoria do plano de fiação proposta por Jean-Marc Lalanne em seus comentários sobre os filmes do Festival de Cannes de 2002, como Arca Russa (2002), Irreversível (2002) e O Filho (2002).

Como se a câmera, ao se concentrar em alguém, funcionasse como um sismógrafo de tensões internas. Em momentos específicos de O Invasor (2001), a câmera muda de órbita em relação aos personagens, criando momentos singulares de conexão visual e narrativa.

A cena em que Ivan observa o cantor na boate é um dos melhores exemplos desse ponto. O filme flerta com um aspecto quase transcendental nessa transferência de energias, sem jamais perder o traço bruto do seu realismo.

Ou seja, mais do que meramente estilizar o real para torná-lo atraente, Beto Brant utiliza estratégias de decupagem e conceitos visuais próprios que proporcionam uma imersão característica ao espectador, além de oferecer uma visão particular e pessimista sobre o tema que aborda.

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UMA ABORDAGEM REALISTA CONTEMPORÂNEA

Se pensarmos no cinema brasileiro contemporâneo dos últimos anos, diversos realizadores têm encontrado soluções criativas para abordar a relação entre câmera e realidade.

Cineastas como Affonso Uchôa, Adirley Queirós e Juliana Antunes apresentam trabalhos que rejeitam de forma clara a glamourização do real, buscando uma proximidade com a realidade a partir de métodos específicos.

A Vizinhança do Tigre (2014)

Em A Vizinhança do Tigre (2014), de Affonso Uchôa, há uma espontaneidade autêntica, tanto por parte dos jovens em cena, que não estão submetidos a uma dramaturgia esquemática, quanto por parte da câmera livre, que os acompanha sem jamais tipificar suas vidas ou os espaços em que vivem.

Mato Seco em Chamas (2022)

Adirley Queirós, em longas como Era Uma Vez Brasília (2017) e Mato Seco em Chamas (2022), intercala códigos do cinema de gênero — como a ficção científica — com uma contextualização realista da Ceilândia e das regiões periféricas de Brasília, criando um regime de representação extremamente original.

Baronesa (2017), de Juliana Antunes, recusa radicalmente qualquer artifício estético impositivo, focando-se em um relato direto dos habitantes de um bairro periférico de Belo Horizonte.

A dinâmica dramática de Baronesa (2017) nasce tanto das situações e interações retratadas quanto dos relatos das protagonistas, resultando em um filme profundamente comovente sobre isolamento e marginalização.

Baronesa (2017)

Esses cineastas, longe de replicarem uma cosmética do real, constroem uma verdadeira estética do real, ancorada em seus olhares e experiências.

Ainda que seus filmes dialoguem com obras internacionais de cineastas como Pedro Costa e Lisandro Alonso, essa influência surge mais como uma referência formal repensada a partir do contexto específico de cada cineasta do que como uma tentativa de repetir fórmulas para alcançar o mercado externo. Eles rejeitam a ideia de um cinema de exportação.

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A AUTENTICIDADE DO OLHAR

Seja a partir da abordagem clássica de Walter Salles, da estilização realista de Beto Brant ou da aproximação mais direta com o real de Affonso Uchôa, Adirley Queirós e Juliana Antunes, o que se destaca é que as obras que preservam um olhar autêntico de seus cineastas sobre a realidade são as que melhor sobrevivem às modas estéticas passageiras.

A maioria desses cineastas, com exceção de Walter Salles, talvez não alcance o sucesso internacional de Fernando Meirelles. No entanto, seus trabalhos revelam o que há de mais precioso em um autor cinematográfico: um método formal que expressa um olhar genuíno, uma visão de mundo única que será eternizada e, com certeza, ainda muito celebrada no futuro.

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