MATO SECO EM CHAMAS (2022): Revelações da realidade

Cineastas equilibram abordagem rigorosa com aspectos reveladores da realidade

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A FOTOGENIA DOS CLOSES

Ainda que Mato Seco em Chamas (2022) se utilize muito de diálogos e dos testemunhos das suas personagens e participantes, é incrível como o longa tira uma força muito cinematográfica do modo em que mostra os rostos do seu elenco.

Adirley Queirós, em seus filmes anteriores, já trabalhava muito bem com esse rigor que envolve os personagens “posando” no quadro e também com a maneira em que a locação ou o cenário dialogavam com essa presença desoladora. Mas aqui isso ganha uma nova dimensão, principalmente em como os closes estão dispostos.

Talvez o fato de Joana Pimenta, fotógrafa de Era Uma Vez Brasília (2017), entrar, agora, como diretora, tenha tornado esse elemento fotogênico algo muito mais central. E o mais interessante é que os cineastas alcançam esse efeito de imersão sem uma estilização óbvia ou uma ideia clichê de fotografia expressiva.

As composições são muito boas e, em certos momentos, existe sim um jogo bem calculado com as luzes laterais, mas no geral é uma abordagem que se apropria de feições muito próprias das personagens.

Seja nos planos mais estilizados pela noite ou nos mais crus de dia, essa característica é sempre preservada. Mesmo no plano “comum” de Andreia sentada na Igreja, é possível perceber essa expressividade que depende diretamente das feições dela.

O fato dos planos serem longos e até a presença quase constante de diálogos nas cenas ajudam nessa imersão imagética de rostos. Na medida que as personagens falam sobre elas e descrevem situações, essas feições vão adquirindo um caráter de marcas do tempo e do passado.

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A CÂMERA QUE REVELA A REALIDADE

É um filme que me remeteu a várias ideias do teórico Siegfried Kracauer, principalmente na ideia, um tanto quanto utópica, de que o dever da câmera é redimir a realidade, é resgatar uma natureza das aparências que é oculta a olho nu.

A decupagem direta e baseada nas presenças que estão na frente da câmera – e não exatamente em uma imposição estética prévia – de Mato Seco em Chamas (2022) remete muito às ideias do autor.

Existe, claro, um projeto estético impositivo. Os planos posados revelam isso. Mas nos momentos mais íntimos e nos momentos de diálogos, Adirley e Joana não filmam, exatamente, como querem. Eles encontram um modo de filmar a partir das pessoas que estão na frente da câmera, a partir dessa natureza que se revela para a câmera.

O plano dos eleitores de Jair Bolsonaro, em Brasília, é um dos mais reveladores nesse sentido. Não é um plano que comenta sobre aquilo (como boa parte dos cineastas brasileiros fariam), ele apenas evidencia aquelas ações a partir dessa intuição das aparências.

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A FORÇA DO REGISTRO

Para além dessas questões da fotogenia e, ao mesmo tempo, juntamente com ela, o filme também remete a uma ideia de actuality film nesse ponto. O que, curiosamente, remonta a uma ideia de origem do cinema, de como essa simples observação é também muito poderosa.

Os cineastas, essencialmente, dão um passo para trás na tradição do documentário para revelar essa força que vai flertar com ideias de uma reprodução da realidade.

É claro que não é uma mera reprodução, as escolhas da lente, do enquadramento, da abertura do diafragma, do ISO, e do movimento da câmera, no plano em Brasília, são escolhas formais essenciais, mas são escolhas que buscam essa clareza revelatória.

O plano dos eleitores de Bolsonaro é o plano realista por excelência no sentido de remeter a aspectos já muito teorizados, mas que, na prática, poucos cineastas conseguem de fato equilibrar. Poucos diretores conseguem dosar a medida entre interferir na realidade e deixar ela se revelar. Esse plano é o exemplo de uma mise-en-scène ideal que nasce da forma em que o mundo, por ele mesmo, se organiza oportunamente na frente da câmera.

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OS REGIMES DE REPRESENTAÇÃO

Para além disso, Mato Seco em Chamas (2022) é um filme que intercala regimes de representação de modo muito natural.

Acredito que até o ato final, o longa segue algumas ideias já bem desenvolvidas nos filmes anteriores de Adirley, mas quando ele mostra Chitara falando sobre a prisão de Léa, sobre como aquilo afetaria o filme e, mesmo assim, nós não sentimentos uma quebra narrativa ou de representação, e sim uma ideia de continuidade, o trabalho dá um belo passo a frente em tudo o que Adirley já tinha feito.

E, novamente, eu acho que essa sensação de continuidade se deve a essa fotogenia, a esse equilíbrio sensível entre a fotografia e a presença das personagens.

As imagens do filme nos hipnotizam ao ponto de que, quando a obra passa a habitar essa outra linha narrativa, ou essa linha de realidade propriamente, aquilo não soa como uma quebra. A unidade da narrativa, em última instância, está muito mais ligada ao rigor das imagens do que ao regime de representação que elas pertencem.

Enquanto esse rigor não é quebrado, o espectador continua concentrado em uma mesma linha de situações e pensamentos que Adirley e a Joana apresentam.

As fotografias stills e as fotos do processo de Léa funcionam muito bem porque preservam esse rigor. E, na verdade, adicionam um aspecto desolador e melancólico bem forte. Além de tudo, a ausência da personagem reforça de modo muito definitivo as ideias sobre marginalização e ressocialização que o filme trabalha.

Pensando em um senso de continuidade com Era Uma Vez Brasília (2017), Mato Seco em Chamas (2022) até dialoga com uma estagnação e uma impossibilidade de reação frente um estado controlador e autoritário, porém, ao mesmo tempo, soa mais pessoal na relação com as personagens e possui um senso de resistência mais ativo.

Mesmo o modo como as personagens se auto-organizam em uma iniciativa “comercial” que é, também, uma iniciativa de resistência e sobrevivência, reforça esse aspecto. Como se usassem do símbolo desse poder estatal e econômico (o petróleo e a sua especulação) como uma forma de possível contra-ataque.