Joseph Losey atinge equilíbrio peculiar entre abordagem política e experiência cinematográfica
Marc C. Bernard considerava O Fugitivo de Santa Marta (1950) o filme mais importante já feito. O crítico francês, que foi redator da revista Présence du Cinéma (principal reduto da tendência da crítica francesa conhecida como Macmahonista), enxergava neste segundo longa-metragem de Joseph Losey uma obra que trata com singularidade sem igual as questões que constituem a responsabilidade de um realizador. Em suas palavras: “ele o é precisamente porque é o filme mais completo, aquele que define melhor os objetivos e os meios do cinema.”
E de fato o longa é um dos que melhor ilustra a busca pelo essencial que teóricos como Michel Mourlet – o pensador chave do Machmahonismo – procuravam em suas reflexões. Um cinema que rejeita o espetacular como simples efeito e se foca em um registro fundamental. Uma comoção dramática que se forja na assertividade de sua abordagem e na transparência sagrada (a busca Macmahonista não deixa de ser utópica por natureza) de um cinema clássico que é fascinante justamente por sua contenção e naturalidade.
Longas como A Ladra (1949), de Otto Preminger, e Tormento de uma Glória (1949), de Jacques Tourneur, são trabalhos que também remetem a essa ideia. Jacques Serguine, em texto bastante elucidativo sobre a tendência Macmahonista, teceu comentários reveladores – e absolutamente tocantes – sobre o filme de Preminger.
O Fugitivo de Santa Marta parte da história de um grupo de mexicanos que trabalham colhendo frutas na Califórnia. Durante um baile de confraternização entre os jovens imigrantes, inicia-se uma briga com americanos. Um rapaz mexicano tenta fugir, se envolve em um acidente onde um policial morre e começa a ser perseguido como se fosse o culpado.
A obra é um clássico exemplo do que o crítico Thom Andersen definiu como film gris. Longas que trabalham com certos elementos do noir, porém a partir de uma temática política progressista e de esquerda. O Fugitivo de Santa Marta, inclusive, foi dos responsáveis por Joseph Losey ser perseguido pelo Macartismo, o que obrigou o diretor a se mudar para a Inglaterra.
O diretor define bem os dois lados, contextualiza uma minoria marginalizada, mas nunca através de um olhar tutelar. O filme está genuinamente interessado nas particularidades daquelas experiências e em como elas afetam o seu entorno. Losey faz isso não através de uma lógica panfletária, mas de uma pontual meticulosidade.
O mais impressionante é como o realizador atinge um equilíbrio peculiar entre a contextualização política e a experiência cinematográfica. Nada soa deslocado ou exagerado e tudo se completa com serenidade. Em um primeiro momento, podemos ter a impressão que o diretor “se apaga”, já que não encontram-se traços autorais óbvios. Mas da mesma forma que Preminger opera, existe uma nitidez em vários sentidos – da questão dramática a forma como a mise-en-scène é construída – que além de nivelar a obra em uma assimilação equilibrada, sublima as suas intenções em sutilezas dramáticas que, ao se acumularem, causam momentos de fascínio sem comparação.
Em uma cena em que os personagens de Macdonald Carey e Gail Russell simplesmente caminham pela calçada, existe uma apreensão que é sensível com a desilusão dela em relação a indecisão dele (Carey é o editor-chefe de um jornal que, de início, recusa apoiar um dos lados no conflito), mas concebe isso sem alardes. Intui a gravidade da situação, porém a fundamenta em uma presentificação serena. A conversa é tão importante quanto o som dos passos, os olhares, os mínimos gestos.
Larry Wilder (o personagem de Carey) incorpora uma figura que, em um primeiro momento rejeita qualquer papel ativo no confronto social, mas logo é acometido por uma empatia. E ao invés de abordar isso como uma culpa, o diretor constrói um encadeamento narrativo que culmina nas escolhas do protagonista.
Mesmo a relação amorosa entre o casal assimila uma honestidade transparente. Os dois são sempre muito sinceros e despojados um com o outro. O romance nasce de uma entrega muito aberta, nunca de um jogo cínico característico do noir clássico. O contexto político pontua essa aproximação ao mesmo tempo que o espectro dramático vai sendo estabelecido.
O vínculo entre os personagens, aliás, contrasta com a fúria sensacionalista que a mídia constrói ao retratar a busca pelo jovem inocente. Um deslocamento que, inevitavelmente, defronta duas abordagens: a espetacularizada, criada pelos jornais e pelos cidadãos em fúria, e a pacata e equilibrada, representada pelo casal. O que não deixa de evidenciar certo dualismo do próprio cinema, já que Losey rejeita com todas as letras o artifício do extraordinário e o coloca, literalmente, como inimigo de seus protagonistas.
Em poucas palavras, O Fugitivo de Santa Marta é o cinema político que nunca esquece do cinema. Pelo contrário, faz das peculiaridades da encenação um mundo de minuciosidades tocantes que potencializam a sua vocação humanista.