Thom Andersen concilia reflexões críticas e pessoais em vídeo ensaios.
Se hoje o filme ensaio é uma modalidades cinematográficos em voga – seja por uma seara subjetiva do documentário contemporâneo ou pela popularização online de análises audiovisuais com trabalhos como os de Tony Zhou ou os produzidos pelo portal Fandor, o gênero definitivamente encontra um dos seus ápices discursivos mais interessantes na obra de Thom Andersen.
Diferente de uma subjetivação que remete a abordagens mais poéticas como as de Chris Marker, que tem em uma livre associação de ideias a performatividade lírica da sua narrativa ensaísta, ou mais cerebrais como as de Jean-Luc Godard, talvez o supra-sumo do gênero; os ensaios audiovisuais de Andersen encontram um caminho onde o que está em jogo é muito mais um trabalho analítico, uma radiografia crítica absolutamente bem fundada, do que exatamente uma concepção deambulante.
Se formos pensar em alguma aproximação mais direta, o trabalho de Andersen se alia muito bem ao de Mark Rappaport, cineasta experimental que na década de 90 realizou dois dos maiores marcos do filme ensaio: Rock Hudson’s Home Movies (1992) e From the Journals of Jean Seberg (1995). Assim como Andersen, Rappaport parte de uma espécie de cinefilia problematizadora para ir refletindo sobre uma dinâmica de opressão implícita não só no mecanismo da indústria cinematográfica, mas na própria construção de sua base icônica.
Los Angeles Por Ela Mesma (2003)
É claro que mesmo dentro dessa dinâmica de análise um pouco mais rigorosa, existe um teor autoral bastante claro no trabalho de Andersen. E talvez seja justamente esse o ponto de equilíbrio mais peculiar da carreira do norte-americano.
Ao mesmo tempo que o diretor possui um tino crítico invejável, uma vocação reflexiva que vai muito além de uma simples análise formalista ou de uma mera contextualização histórica bem informada, Andersen é dono de um estilo muito próprio. Mesmo dentro desse formato do ensaio crítico, o ensaio que, em alguns momentos, pode até beirar o academicismo, o crítico consegue partir de reflexões absolutamente pessoais e conciliar um apreço reflexivo muito delicado em suas análises.
Já na introdução de Los Angeles Por Ela Mesma (2003), sua obra mais complexa, a narração denota um feitio que nunca irá se limitar a um simples diagnóstico pré-concebido, mas que, pelo contrário, se debruça sobre uma arqueologia fílmica muito pessoal, uma cinefilia em sua definição mais genuína. No decorrer do filme, durante as análises das obras que tem como Los Angeles o seu assunto ou o seu pano de fundo, e consequentemente a sua deploração iconográfica impessoal, esse cinefilia idealista de Andersen, ainda que muito rigorosa em seu tino obsessivo, se deixa levar por reflexões pessoais e juízos individuais que enriquecem a experiência da análise através de um horizonte muito íntimo.
Los Angeles Por Ela Mesma (2003)
A principal qualidade de Los Angeles Por Ela Mesma é ser um filme que, mesmo se focando nas reflexões de Andersen sobre a abordagem hollywoodiana na cidade em que o próprio vive, acaba se revelando um filme inevitavelmente universal.
Seja por um certo escancaro ideológico que reflete toda uma política urbana opressiva comum a qualquer cidade contemporânea – E que tem em Chinatown (1974) e Uma Cilada Para Roger Rabbit (1988) excelentes paradigmas que se perpetuam. Seja pela própria noção de marginalização que o filme denuncia ao tratar de cineastas como Haile Gerima, Charles Burnett e Billy Woodberry. Diretores que tem na abordagem social uma autenticidade única que contrasta com a impessoalidade de um cinema industrial.
Ou seja, o filme se dá nesse trajeto que parte de observações específicas ao evidenciar elementos de opressão e resistência, explícitos ou implícitos naquelas obras, mas que conduz a um pensamento universal de cinema e, invariavelmente, de história.
Hollywood Vermelha (1996)
Essa ideia de uma cinefilia idealista, uma cinefilia que ao mesmo tempo que parte de um carinho pessoal pelo cinema consegue também enxergar uma problematização implícita, que intui os filmes não pelo que eles dogmaticamente representam, mas por tudo o que eles ainda podem ser, é igualmente evidente em filmes como Hollywood Vermelha (1996) e Os pensamentos que outrora tivemos (2015).
Ao analisar os filmes realizados por artistas e profissionais que teriam alguma ligação ou simpatia pelo partido comunista, Hollywood Vermelha constrói não só um resgate necessário de várias obras essenciais, mas concebe toda uma dinâmica de análise muito delicada ao apontar o tipo de sutileza oculta naqueles filmes. Uma sutileza que, uma vez articulada com um discurso político subentendido, carrega também uma acuidade cinematográfica muito própria.
Os pensamentos que outrora tivemos (2015)
Já Os pensamentos que outrora tivemos, por enquanto o longa-metragem mais recente de Andersen, pode até partir de uma premissa um pouco acadêmica, apontando em certos filmes algumas correlações diretas com conceitos deleuzianos, mas, com o passar dos minutos, o longa se revela um trabalho bastante livre e, principalmente, guiado não só pelas concepções do filósofo francês, mas, novamente, por um fascínio cinematográfico comovente.
É um filme que não deixa de assumir uma natureza irregular. Uma natureza que em um primeiro momento até parte dessa análise teórica em virtude da aproximação deleuziana, mas que, em algum sentido, acaba seguindo um caminho quase que oposto, guiado pelo juízo pessoal como a elucidação de um encantamento muito legítimo. Como nos outros filmes de Andersen, existe essa ambiguidade entre a análise histórica e a correlação pessoal como uma revelação reflexiva, essa aproximação temática que acaba enveredando para uma abordagem passional e, inevitavelmente, idealista.
Afirmar que os filmes de Thom Andersen são críticas audiovisuais, aulas de história ou reflexões cinéfilas nunca será o suficiente para definir o tamanho de sua contribuição como articulador de uma cultura fílmica. Se por um lado seus filmes partem de um didatismo em sua interpelação reflexiva, por outro são obras que carregam uma índole visionária bastante evidente. Uma vocação sonhadora que busca não só compreender o cinema, mas que almeja, também, assimilar o mundo exterior nesse trajeto.
Publicado originalmente na Revista Multiplot! em agosto de 2016.