Shyamalan aborda o sobrenatural como uma força destrutiva
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O SOBRENATURAL COMO UMA FORÇA DESTRUTIVA
Assim como em Tempo (2021), a abordagem de Shyamalan em Batem à Porta (2023) se passa em um ambiente limitado e possui uma dinâmica de cena bastante direta. Algo que, nos dois casos, pode ter relação tanto com orçamentos modestos, como também com uma visão mais destrutiva e materialista do mundo.
Mesmo em seus filmes anteriores que se passavam em ambientes limitados e isolados, como A Vila (2004) e A Dama na Água (2006), o cineasta trabalhava uma concepção mais abrangente do microcosmo de uma comunidade.
Nesses longas, o elemento da crença atuava de modo mais transformador em seus personagens. Podemos afirmar que a crença, em A Vila (2004) e A Dama na Água, era uma espécie de redenção final que concretizava laços afetivos humanos.
Agora, em Batem à Porta (2023), ao invés de comunidades unidas, existem indivíduos que defendem seus interesses. E ao invés da crença como um elemento transformador e redentor, o diretor trabalha muito mais com a evidência de uma ameaça sobrenatural concreta e destrutiva.
Os grupos soam como extremistas conspiratórios enquanto que as famílias, tanto aqui como em Tempo (2021), são desmanteladas.
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UM MUNDO MATERIALISTA
Essa mudança de discurso representa, de algum modo, uma decadência histórica de um mundo idílico em que a cosmovisão de valores cristãos reinava para um mundo moderno de lógicas liberais, egoístas e materialistas. Mesmo o aspecto religioso, agora, é colocado dentro dessa esfera da radicalização.
A crença ainda funciona como um elemento muito poderoso do suspense, mas não tanto como um mote, digamos, “revolucionário” dentro da jornada dos protagonistas. E, quando funciona, vem ligada a uma ideia de violência e sacrifício. É preciso lidar de modo urgente com as consequências do que já está aí, na porta de casa, quer você acredite naquilo ou não.
Em Tempo (2021), a crença até funcionava de modo sugestivo pela maneira em que o filme, muitas vezes, apenas descrevia a ação e não mostrava os seus efeitos (como na cena do tumor e do parto). Mas ainda assim não possuía qualquer ambiguidade, já que as coisas aconteciam concretamente e os personagens precisavam lidar com aquilo de modo imediato.
Mesmo quando essa ameaça concreta e destrutiva existia em filmes anteriores, como no próprio Sinais (2002), ela não envolvia uma relação tão intensa com a violência.
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UMA DINÂMICA DRAMÁTICA PESSIMISTA
É como se esses últimos filmes, e mais especificamente este Batem à Porta (2023), fossem pensados a partir da perspectiva muito mais negativa e ameaçadora de Fim dos Tempos (2008). Mesmo o fato da dinâmica dramática dessas obras se basear em, literalmente, esperar os personagens morrerem um por um, reforça essa ideia de que o diretor está entrando em uma fase de peças trágicas.
No caso de Tempo (2021), até existia espaço para uma fabulação ou para algo lúdico. O ambiente da ilha inspirava algo mágico e alguns elementos gráficos e violentos eram apenas sugeridos.
Aqui, não. Agora parece até que Shyamalan faz questão de tornar os atos de violência mais visíveis, tanto no sentido da violência gráfica dessas ações como em um trabalho com a luz que torna tudo muito evidente – novamente lógicas que remetem a Fim dos Tempos (2008).
Além disso, são filmes bem sádicos. Em Tempo (2021), o próprio Shyamalan aparecia espiando os personagens e reiterando essa escopofilia do modo mais direto possível ao dividir o enquadramento com a lente teleobjetiva da sua câmera-arma-olho (numa imagem bem Laura Mulvey das ideais) apontada para seus personagens
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O APELO DA VIOLÊNCIA
Agora, em Batem à Porta (2023), o modo como a decupagem trabalha com a limitação do nosso olhar é também bastante fetichista. Tanto no uso da baixa profundidade de campo, quando o cineasta desfoca áreas sugestivas do plano, como pelo já clássico uso de closes frontais.
A violência é direta, mas nunca estamos em uma posição totalmente ideal para observar tudo. Estamos sempre espremendo nosso olhar para pegar um vislumbre a mais de sangue.
Novamente, estratégias que Shyamalan já usou em outros filmes – a iminência da decupagem de A Vila (2004) vem dessa sensação de estarmos ou muito perto ou muito longe de tudo – mas que aqui são trabalhadas com bem menos solenidade.
O uso da TV e das imagens amadoras de tragédias também reforçam esse fetiche do olhar. Ele até lida com essa desculpa muito comum da imagem existir como uma necessidade para se provar alguma coisa e não um meio de apelação. O que, em teoria, justificaria o fato de um telejornal exibir qualquer coisa, não importa o quão extrema, desde que isso seja “real”, desde que seja a prova de uma ameaça concreta.
Mais uma vez, o terror não vem do fato de acreditar ou não nas possibilidades do sobrenatural, mas sim do fato de que você não tem essa opção e deve agir rápido.
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UMA FASE REALISTA
Eu entendo como essa nova fase do diretor pode frustrar alguns fãs, já que as sutilezas afetivas são minimizadas e as alegorias se transformam em ameaças reais, mas é incrível como Shyamalan encontrou uma solução para tornar o próprio cinema mais acessível ao mesmo tempo que, ironicamente, tornou as sua temáticas mais radicais e pessimistas.
É um cinema, sem dúvida, menos experimental. Mas também é filosoficamente mais desafiador nesse seu derrotismo e nessas suas visões extremistas de mundo, já que reforça ideias de uma tragédia iminente ou de uma presença sagrada que é, também, destrutiva.
O filme vai até para uma vibe Fim dos Tempos (2008) versão Qanon pela sua falta de ambiguidade. O pesadelo nasce justamente da possibilidade de que aquilo que aquelas pessoas “extremistas” acreditam seja verdadeiro.
E mesmo que, no fim das contas, tudo seja salvo, o final nunca soa totalmente esperançoso. Soa mais como uma vitória sombria que ainda tenta entender aquela natureza.
De toda forma, é indiscutível que Shyamalan, ao propor uma abordagem mais direta, também consegue propor um suspense mais universal. Batem à Porta (2023) é uma espécie de Fim dos Tempos (2008) acessível, porém nunca totalmente domesticado.