TEMPO (2021): O horror da sugestão

Em narrativa emocionalmente complexa, Shyamalan prioriza o poder da sugestão


O novo longa de M. Night Shyamalan possui elementos que se relacionam tanto com o lado mais experimental da sua filmografia – o exercício de gênero que remete a uma dinâmica B de Fim dos Tempos (2008), a limitação do espaço de cena de A Dama na Água (2006) – como também a aspectos mais clássicos do suspense. 

Em uma narrativa que preza pelo poder da sugestão nunca no sentido de uma mera construção psicológica que insinua os seus fatos, mas, pelo contrário, escancara elementos básicos do drama e do horror, o diretor transita livremente por várias possibilidades.

Tempo (2021) conta a história de uma família que, enquanto passa um dia de férias em uma praia isolada, descobre que o tempo naquele lugar funciona de modo diferente, o que faz com que todos envelheçam mais rápido através de uma série de acontecimentos mórbidos e melodramáticos.


O HORROR ATRAVÉS DO ESSENCIAL

Tempo é o filme mais “teatral” de Shyamalan. Tanto no sentido do espaço limitado e minimalista em que a ação se passa (a praia como essa espécie de palco possibilitador) como no sentido dramatúrgico (as falas são muito rápidas e vão se entrecortando de modo muito metódico, como em uma peça).

Uma característica que remete ao dispositivo narrativo de Dama na Água na forma em que o longa isola seus acontecimentos em um espaço exclusivo. Um ambiente fechado de regras próprias que ditam os eventos ali narrados. Porém Tempo é ainda mais radical, já que suas situações absurdas são construídas a partir de elementos de cena muito básicos.

Estamos diante de um filme sobre a sugestão no sentido mais direto da palavra. Em vários casos, o trabalho simplesmente recusa mostrar seus eventos totalmente e apenas os descreve. Exibe apenas elementos ou objetos pontuais sem nunca perder a potência dramática. 

Nas cenas do parto e da retirada do tumor, por exemplo, tudo é subentendido muito mais pela menção dos gestos do que por elementos explícitos, por ações que se passam fora do campo de visão da câmera e não tanto pelo que assistimos diretamente. Você não vê a construção completa de tudo mas, ainda assim, se emociona como se aquilo estivesse acontecendo na sua frente. 

Ou seja, a organização das figuras em cena e a menção dramática é o que gera o fascínio do espectador. O filme não “esconde” os seus elementos no sentido de propor apenas um estímulo psicológico distanciado, mas mostra como é possível elaborar um evento altamente comovente com o que de mais básico existe no cinema. 

O filme utiliza desses elementos básicos (o corpo e o espaço, em última análise) para manifestar uma riqueza de possibilidades dramáticas. Oportunamente, a obra usa desse minimalismo para variar essas situações com uma velocidade estimulante.

Como a narrativa não precisa, em teoria, mudar de cenário, tudo acontece ao mesmo tempo nesse mesmo “palco”. O trabalho até brinca com essa livre associação de ideias quando mistura frases que parecem não se conectar, mas que criam um ritmo muito específico (o médico obcecado que tenta se lembrar do nome de um filme é um contraponto excêntrico que ajuda nessa dinâmica).


UMA DECUPAGEM ÁGIL E COMPLEXA

A decupagem do diretor, aqui, é uma das mais complexas do seu cinema justamente por dar conta tão bem dessa variação de acontecimentos. Mesmo quando existem elipses, os planos se conectam de um modo que parece que tudo está ocorrendo de forma simultânea.

Toda a cobertura das cenas passa a impressão que os acontecimentos ocorrem um atrás do outro, mas isso nunca soa forçado ou artificial. O filme se fecha em um fluxo narrativo muito específico em que o próprio espectador perde a noção dos minutos.

O virtuosismo formal de Shyamalan, nesse sentido, é muito mais sutil do que narcisista. Além de resolver cenas complexas com poucos e certeiros planos, o uso de planos sequências equilibra um virtuosismo técnico com a dinâmica ágil da contextualização das ações que são apresentadas.

A cena do parto é uma das mais interessantes nesse aspecto. A câmera percorre, sem cortes, uma boa extensão da praia enquanto mostra a apreensão dos personagens. Um plano sequência que, ao invés declarar a sua dificuldade de execução (como tendem alguns realizadores que fazem questão de escancarar suas habilidades), se integra à progressão dramática de modo muito natural.

Apesar de uma visível autonomia da câmera nesse momento (ela faz movimentos complexos e aponta para várias direções durante seu trajeto), nós nunca percebemos o plano como algo artificial. Ele simplesmente passeia por tudo de modo eficaz.


UM VIRTUOSISMO MODESTO

Tempo é um filme virtuoso que não tem cara de virtuoso – os comentários vazios sobre o trabalho de câmera que pipocaram por parte de alguns cinéfilos acostumados a abordagens mais épicas e óbvias são mais um belo sinal disso.

Afinal, é muito mais difícil – e elegante – ser um autor que esconde as suas escolhas a partir do efeito total delas do que ser um autor que só sabe fazer um grande plano quando o plano está gritando que é um grande plano.

É inevitável pensarmos que um outro diretor-autor contemporâneo da moda transformaria toda a premissa de Tempo em uma pirueta formal cheia de sacadas ilustrativas. Shyamalan sabe que se focar no essencial é, em vários casos, muito mais importante (e difícil) para o drama fluir sem histerias, para a narrativa correr com uma naturalidade impactante.

Mesmo o final “careta” do filme reforça essa ideia. Dado o tom misto entre uma abordagem experimental com o espaço e as referências mais clássicas ao suspense, não deixa de ser muito bem apropriado que um filme que prega uma desconstrução minimalista durante o seu desenvolvimento faça questão de resolver sua narrativa com uma conclusão spielberguiana.

Não que Shyamalan seja o mais singelo dos cineastas (a sua própria noção de ingenuidade é, no fim das contas, muito ambígua em toda a filmografia), mas é gratificante perceber o virtuosismo de um realizador contemporâneo que, ao invés de propor resoluções estilísticas vaidosas e óbvias, conta uma história complexa e emocionalmente carregada através de elementos muito essenciais.