A Trilogia Halloween de David Gordon Green

Diretor aposta em tendências contemporâneas sem deixar de explorar o aspecto sobrenatural de Michael Myers

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Entre os anos de 2018 e 2022, o diretor David Gordon Green e a produtora Blumhouse lançaram uma trilogia da franquia Halloween que funciona como uma continuação direta do clássico filme de 1978.

Além de ignorar os outros longas da franquia, essa nova trilogia contou com o apoio do próprio John Carpenter. O resultado são três filmes que dialogam com aspectos formais e temáticos do longa de Carpenter ao mesmo tempo que atualizam alguns elementos desse imaginário de modo particular.

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HALLOWEEN (2018)

Pelo bem e pelo mal, o primeiro filme da trilogia é bastante limpinho. Se por um lado é interessante perceber como Green faz questão de herdar os planos gerais muito nítidos do filme original e nunca tenta suavizar as mortes, por outro é um filme que, tanto nas suas escolhas estéticas como na dinâmica dramática, busca uma espécie de sofisticação e verossimilhança contemporânea.

De alguma forma, o longa vira uma espécie de Corrente do Mal (2014) bem comportado, já que encontra um equilíbrio entre um realismo contemporâneo e momentos que dialogam diretamente com os aspectos icônicos da obra original.

Halloween (2018)

Ainda assim, Green tenta resolver alguns elementos do contexto da trama de modo mais sensorial e menos didático.

Todas as cenas são, claramente, bem ilustrativas, mas ele torna tudo visualmente muito autêntico com uma fotografia sóbria (a cena do garoto encontrando o ônibus parece que saiu de um filme de Denis Villeneuve) e com uma montagem que, claramente, corta boa parte de alguns diálogos pela metade e só nos mostra o que interessa.

Tudo isso, com certeza, busca também uma agilidade comercial, mas nos seus melhores momentos (principalmente no primeiro ato) soa também como uma espécie de pesadelo de vislumbres de um passado implícito.

Halloween (2018)

Algo que me lembra, nas devidas proporções, o que Hideaki Anno fez no primeiro rebuild de Evangelion. A história é recontada por vislumbres estilisticamente mais requintados que não tentam se explicar tanto assim e se focam nas suas possibilidades imaginativas.

E se formos comparar essa estética de câmera digital com lente anamórfica daqui com a anamórfica em 35mm de 1978, também é interessante pensar em como o diretor explora uma mesma percepção de suspense a partir da profundidade de campo de espaços claustrofóbicos de um subúrbio, mas, agora, investindo em uma plasticidade bem mais estilizada nas áreas desfocadas.

Definitivamente eu gostaria de ver mais da Laurie como essa figura que remete a uma espécie de Unabomber. Um dos grandes acertos do projeto foi transformar ela nessa personagem extremista e, até certo momento, desumanizada; quase política no sentido de assumir a violência como a única resposta racional ao seu entorno.

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HALLOWEEN KILLS: O TERROR CONTINUA (2021)

Enquanto o filme de 2018 fica um pouco em cima do muro na hora de definir uma abordagem, já que mantém uma aproximação estética levemente higienizada dos seus temas ao mesmo tempo que apresenta uma narrativa menos didática, este faz escolhas mais diretas.

Em relação ao foco narrativo, o retrato agora é o da comunidade e de um efeito a longo prazo causado pelos traumas das mortes. Em relação à figura de Michael Myers, o longa assume a natureza do personagem como uma força invencível do mal e, até mesmo, como uma possível representação alegórica desse mal.

É interessante como o filme explora o contexto do original sem precisar forçar um fan service. Uma ótima solução para isso foi colocar o efeito comportamental Michael Myers a partir de uma dinâmica à Coringa (2019) de comoção coletiva. O núcleo do personagem de Tommy e das pessoas que querem se vingar nunca soa gratuito e ganha uma função reflexiva muito específica.

Halloween Kills: O Terror Continua (2021)

O filme também consegue trabalhar esse aspecto comportamental da comunidade sem precisar se transformar em um terror psicológico ou em algo mais “sofisticado”. Ele, inclusive, tende a ser mais violento que o primeiro quando lida com essa ânsia assassina dos dois lados (dos cidadãos e do Michael).

Estamos diante, agora, de uma espécie de Halloween Purgues. Tudo é sobre esse desejo de morte como forma de superação.

O fato do longa deixar a Laurie de lado funciona como um misto de facilidade conveniente (o projeto não precisa se dar ao trabalho de ter novas ideias envolvendo o núcleo central da franquia) e também um risco (o filme, querendo ou não, ainda precisa ser a continuação da história dela).

No geral, eu acho que Halloween Kills lida bem com essa ausência da protagonista no momento em que se utiliza não só dos outros personagens do filme original para tratar dessa ideia de purgação, mas também pelo modo como aborda alguns espaços chaves, como a casa da infância de Myers.

Halloween Kills: O Terror Continua (2021)

As cenas na casa poderiam soar deslocadas ou apenas como um fan service, mas o filme tenta renovar aquele ambiente. Seja através de uma outra roupagem (o casal que mora e morre lá tem uma pegada espirituosa mais leve) como, principalmente, pela maneira que abraça a ideia daquele cenário como o centro dos mistérios sobrenaturais da franquia.

Toda a sequência final é bem reveladora nesse sentido. Myers é, teoricamente, linchado até a morte a uma quadra de distância da casa, mas depois que “morre”, mata os cidadãos e, oportunamente, ressurge no mesmo quarto em que matou a irmã no filme original.

Além do discurso de Laurie, no final, divagar de modo mais lírico e aberto sobre essa natureza sobrenatural do vilão, o filme assume esteticamente essa presença alegórica de Myers no momento em que ele revive e mata as pessoas que queriam se vingar.

Halloween Kills: O Terror Continua (2021)

Toda a decupagem, nessa cena após a “ressurreição”, reforça muito bem esse aspecto irreal com o slow, os closes, e o fundo totalmente preto. É quase um ensaio poético sobre as mortes. Esse aspecto sobrenatural também é reforçado no momento em que Myers praticamente se materializa no quarto de Judith para matar a filha de Laurie.

Mesmo que o filme recorra a toda essa violência muito física, no final ele lida com esse outro lado sobrenatural. Coisa que até poderia soar como uma resolução narrativa fácil, mas me parece singular justamente pelo fato de não tentar recorrer a uma solução prática verossímil e declarar o vilão como essa entidade onipresente em uma obra violenta e muito física mas, ainda assim, conceitual ao seu modo.

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HALLOWEEN ENDS (2022)

Em um primeiro momento, me pareceu uma espécie de covardia deixar a figura do Myers de lado e assumir ele apenas como essa entidade ambígua que só surge em momentos oportunos, mas no fim das contas eu gostei de como o filme trabalha com isso através de uma dinâmica narrativa e dramática que lembra O Mistério de Candyman (1992).

O longa rejeita elementos diretos da franquia e tenta trabalhar com uma projeção daquelas figuras. O personagem do Corey incorpora Myers; a personagem de Allyson, neta de Laurie, vira, de algum modo, o reflexo da protagonista.

Halloween Ends (2022)

Simultaneamente a isso, o filme trabalha com elementos de cinema de gênero que vão desde uma pegada de thriller e terror dos anos 80 e 90 – além de Candyman (1992), existem traços de Christine, o Carro Assassino (1983) e até de Os Garotos Perdidos (1987) – a aspectos de um romance coming of age mais intimista.

É um pouco como se o Myers e a Laurie vivessem um romance indireto. Algo que, como tudo no filme, já possui um destino trágico definido. É uma história com pessoas jovens como protagonistas, mas é o filme mais trágico, melancólico e decadente da trilogia. No primeiro a Laurie era uma badass disposta a tudo, no segundo a comunidade inteira queria matar, e aqui todos estão resignados.

Halloween Ends (2022)

Nem o personagem de Myers tem energia para sair do esgoto. E quando sai, não soa tão ameaçador como antes. Ele ainda é apresentado como essa força sobrenatural do longa anterior, porém, de algum modo, toda a sua energia foi sugada. Até o modo como ele morre, na cozinha, é bem pouco digno. E ainda é exposto como um animal e triturado, como se fosse lixo.

Está longe de ser um filme perfeito e nunca se aproveita muito bem da figura de Laurie. Ela até funciona bem como essa mediadora de imaginários, porém tem um papel quase decorativo. Ainda assim, eu gosto de como tudo possui um romantismo trágico. Todo o núcleo do casal jovem e a pegada terror neon-gótico (as escolha das músicas são muito boas) dialoga muito bem com essa baixa energia geral que o filme exala.

Halloween Ends (2022)

É como se Haddonfield se transformasse numa cidade fantasma em que o passado sempre tem mais relevância que o presente ou o futuro. O filme termina com Laurie e Frank, velhos e cansados, sentados na frente da casa dela com as folhas secas do outono ocupando parte do plano. Uma imagem muito pouco vitoriosa e até bem conformada.