Ryusuke Hamaguchi constrói um melodrama sobre luto e culpa através de uma abordagem intimista
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Baseado em um conto de Haruki Murakami e inspirado em elementos de outras histórias do livro Men Without Women, Drive My Car mostra os acontecimentos na vida de Yusuke Kafuku, um ator e diretor teatral de sucesso, após a morte de sua esposa.
Em um primeiro momento, o filme nos apresenta o cotidiano e as particularidades do casal. Depois da morte de Oto, a obra dá um salto de dois anos e narra o protagonista sendo confrontado com o luto e a culpa ao tentar montar a peça Tio Vânia, de Anton Tchekhov, durante uma residência na cidade de Hiroshima.
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A ATUAÇÃO COMO CATALISADORA DO DRAMA
Enquanto Roda do Destino (2021) é um filme sobre personagens performando um papel dentro das próprias histórias, Drive My Car é uma obra que, conceitualmente, vai para um lado aparentemente oposto. O longa é sobre personagens sendo obrigados a não performar e, consequentemente, forçados a se confrontarem com questões pessoais reprimidas envolvendo a realidade à sua volta.
O modo como o protagonista Yusuke, na primeira parte do filme, lida com os ensaios enquanto dirige o seu carro já remete a essa ideia da busca pela atuação como uma fuga da realidade. Nesses momentos solitários e cotidiano dirigindo, o personagem parece que não consegue ser ele mesmo e passa o tempo todo ensaiando, passa o tempo todo vivendo um outro.
A personagem de Misaki, a motorista encarregada pelo transporte de Yûsuke durante sua estadia em Hiroshima, surge como uma figura que afeta diretamente essa dinâmica e, sendo assim, o obriga a encarar a si mesmo. Como a própria Misaki, outra figura bastante fechada, parece reprimir sentimentos semelhantes aos de Yusuke, esse encontro leva os dois a uma espécie de purgação melodramática envolvendo luto e culpa.
Enquanto no primeiro ato do filme o protagonista usava a atuação para reprimir possíveis questões pessoais, depois da morte da esposa ele deve evitar performar para não se deparar com os sentimentos envolvendo as tragédias de sua vida. O modo como, no ato final da obra, Yusuke é obrigado a atuar na peça que está montado, reforça esse aspecto de um meio que sempre impõe uma situação de enfrentamento. Drive My Car, nesse sentido, usa a própria encenação como um catalisador desse confronto.
Várias confrontações dramáticas ocorrem tanto de modo mais direto nessa relação com a encenação, inclusive usando dos ensaios de Tio Vânia como uma espécie de reflexo psicológico do protagonista (ele soa como uma pessoa excessivamente metódica, mas que traz resultados bastantes concretos) como também orbitam a montagem da peça de Tchekhov,
A peça é, também, uma chance para o protagonista conhecer mais sua esposa morta através do olhar de Koji, um jovem ator perturbado com quem a mulher tinha um caso. Mais do que, exatamente, surpreender Yusuke, os encontros com Koji ajudam o viúvo a concluir algumas impressões sobre Oto.
Selecionado para o papel de Vânia, que originalmente seria do próprio Yusuke, Koji vira uma espécie de reflexo dramático do lado mais sombrio do protagonista. Toda a agressividade e amargura que ele parece reprimir, são vistas à flor da pele no jovem.
Novamente, o cineasta se utiliza de uma relação metalinguística que envolve a atuação e o processo artístico – o vínculo entre ator e diretor é expandido para uma dimensão pessoal e íntima – como principal estímulo para o acontecimento dramático.
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O MELODRAMA CONTIDO
É interessante como Hamaguchi dramatiza, de modo bastante particular, o espaço dos carros tanto nesse filme como em Roda do Destino (2021). São cenas que passam uma sensação paradoxal de mobilidade e imobilidade. Os atores falam por longos períodos de tempo sobre temas profundos enquanto estão sentados e estáticos, mas a paisagem ao fundo continua se movimentando.
Se isso já era perceptível na primeira história de Roda do Destino (2021), essa construção, aqui, é utilizada nos momentos mais reveladores da obra. Como se os personagens, confinados nesse carro que soa como cápsula deslizando pelas estradas, entrassem em uma espécie de transe confessional. Uma vez lá dentro, o tempo adquire uma outra perspectiva e tudo se torna convidativo.
Esse dispositivo dramático do carro, de certa forma, não deixa de ser uma espécie de síntese do cinema do diretor. Estamos diante de cenas que, pelo menos na sua duração literal, são bastante longas, mas no fim das contas soam como blocos flutuando no tempo. Em vários casos, inclusive, fica difícil definir quanto tempo exatamente passou desde o início até o final de cada diálogo.
Essa ideia paradoxal entre mobilidade e imobilidade que o espaço do carro apresenta, também pode ser pensada dentro do “melodrama contido” que o filme constrói de modo geral. Apesar da premissa de Drive My Car remeter a uma ideia bastante melodramática envolvendo um encontro significativo entre duas pessoas em busca de uma superação pessoal, tudo isso é apresentado por personagens intimistas que preservam uma aparente distância de tudo.
Mesmo que Yusuke e Misaki compartilhem de sensações profundas, tanto a câmera como a linguagem corporal dos personagens permanecem impassíveis a isso. O diretor se mantém fiel a sua formalidade de planos fixos com ênfase em composições mais fechadas e uma montagem lenta que segue o ritmo do texto enquanto que a distância física entre os dois é quase constante.
Ou seja, o drama se dá principalmente pelo texto, o melodrama acontece nessa dinâmica verbal e até mental, ao mesmo tempo que os personagens permanecem aparentemente sempre imóveis, cada um em seu próprio espaço. A conexão acontece muito mais ne dimensão do enunciado do que em uma circunstância mais visual ou concreta.
O abraço entre os personagens, no final, talvez seja o único momento em que essa intimidade mental de fato passa para o plano físico. Até ali, em praticamente toda a duração da obra, temos a ideia desse melodrama contido, dessa dinâmica dramática que pode aparentar uma imobilidade, mas que opera de modo intenso na extensão psicológica dos personagens.
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UM FINAL TRANSCENDENTAL
Depois da conclusão dramática envolvendo os conflitos pessoais de Yusuke e Misaki, Hamaguchi se apropria do final da peça de Tchekhov para evidenciar um possível lado mais transcendental do filme. Através de uma construção metódica e até mesmo de uma meditação sobre o sofrimento que remete a ideais cristãos, o diretor termina seu longa nos remetendo diretamente a um cineasta como Carl Dreyer.
Quando o próprio Yusuke, na pele de Vânia, escuta o discurso de Sonia sobre o sofrimento humano e a doação completa ao outro, é como se o próprio filme se apropriasse dessa reflexão para concluir a sua narrativa. Não existe uma completa superação, mas a certeza de que a paz só se encontra após a morte.
Em um longa que passa boa parte do tempo construindo um melodrama não através de elementos grandiosos, mas de uma contenção física e de uma austeridade formal, é interessante como o discurso final se torna ainda mais simbólico quando é expresso através da personagem que atua por linguagem de sinais.
A linguagem do drama pode não se concretizar de modo tradicional, mas se mostra igualmente poderosa a partir de um jogo de presenças e ações sugestivas. Mesmo que tais ações não sejam palavras literalmente ditas, mas sinais e sensações colocados na tela com igual intensidade.