Walter Salles constrói narrativa comovente em que a violência se expressa pelo drama
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Ainda Estou Aqui (2024) se passa no início dos anos 70 e parte da história real de Rubens Paiva, um político e engenheiro que foi sequestrado e morto pela ditadura militar brasileira. Baseado no livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva, o longa é centrado na figura de Eunice Paiva, esposa de Rubens, vivida por Fernanda Torres.
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EQUILÍBRIO CLÁSSICO
Walter Salles é um diretor que sempre priorizou uma abordagem mais clássica e convencional. Seus filmes não remetem tanto ao cinema moderno, pelo menos não em termos estéticos.
Mesmo que sejam filmes com temáticas sociais e humanistas, sua abordagem estética segue convenções de um classicismo ligado a tradições norte-americanas. Aliado a isso, seus trabalhos sempre buscaram, também, um virtuosismo técnico e estético. Em alguns casos, inclusive, essa busca por um virtuosismo da imagem pode até soar vazia
Um filme como Abril Despedaçado (2001), por exemplo, parece se perder um pouco na tentativa de criar imagens bonitas apenas por serem bonitas. Salles já foi criticado por fazer um cinema de exportação, um cinema para estrangeiros contemplarem um certo Brasil exótico. Todo o debate sobre a cosmética da fome diz respeito a isso.

Abril Despedaçado (2001)
Em Ainda Estou Aqui, no entanto, o cineasta supera isso muito bem e atinge um equilíbrio clássico preciso. O filme é bonito e virtuoso — muito bem fotografado em 35 mm por Adrian Teijido — mas não é uma fotografia que se sobressai demais ou que soa estilizada de modo vazio.
Nenhum elemento técnico do filme é mais evidente do que outro. Todos estão em um mesmo nível e equilíbrio. Devido a isso, a imersão do espectador na obra é maior.
Afinal, essa é a grande busca do clássico: construir um equilíbrio tão grande entre todos os elementos que o espectador não irá notar esses elementos e irá apenas embarcar naquela experiência e naquela história.
Quando Salles estiliza um pouco mais a imagem, é sempre a partir de algum motivo dramático contundente. Por exemplo, quando Rubens é sequestrado, o filme fica mais escuro e contrastado. Nesse ponto, a cena dos agentes fechando as cortinas da casa, que era muito iluminada e alegre, é bastante reveladora.
Salles propõe certa estilização tanto na primeira parte mais solar quanto na segunda parte sombria do longa, mas nada de modo óbvio ou forçado.
Inclusive, a estética obscura da segunda parte faz todo sentido dentro da narrativa kafkiana em que Eunice se encontra. Ela não sabe o que está acontecendo e tudo é bastante aflitivo. O pesadelo que a vida dela se transforma justifica bem certas escolhas visuais impositivas.
Existe, também, uma estilização característica no uso do super-8. Uma das filhas de Rubens Paiva filma algumas cenas em super-8 e, logo, o diretor tem essa “desculpa” para estilizar e dar um toque de memória nas imagens.
Como o super-8 tem uma estética difusa, já que é uma película menor que o 35 mm, ele imprime na imagem uma textura que passa uma sensação de algo distante e inalcançável. O que dialoga bem com vários aspectos do filme.
Resumindo, em termos estéticos e em termos de um virtuosismo técnico clássico, o filme é, com certeza, a obra mais madura que Walter Salles lançou em sua carreira até agora.
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PODER DA SUGESTÃO
Um outro ponto interessante que torna a narrativa do longa envolvente é o seu poder de sugestão. Poder de sugestão no sentido de que o trabalho não mostra as torturas no contexto da ditadura militar de maneira explícita, mas sugere uma violência a partir da construção dramática das cenas.
O filme não possui cenas de uma violência explícita para contextualizar a ditadura, mas situa tão bem a aflição de Eunice e a atmosfera daqueles ambientes e daquele tempo que o espectador sente essa violência, sente uma aura pesada apenas a partir de certas sugestões visuais e sonoras.
As cenas em que Eunice fica presa e presta depoimento são muito boas nesse sentido, principalmente pela maneira que a fotografia lida com o contraste e com uma construção visual sombria. O 35 mm potencializa esse aspecto soturno, já que a película imprime muito bem o escuro, tornando o grão mais visível. Diferente do digital, que “mata” o escuro e o torna sem vida.
Além da fotografia sombria em 35 mm, toda a edição de som dessas cenas é muito bem trabalhada, já que cria um sentido de espaço através desse elemento. O espectador escuta gritos abafados de tortura ao longe, depois escuta gritos e sons próximos, tudo em uma graduação aterradora.
Até o modo como a estrutura e a montagem do filme trabalham com um terror gradual, com uma tensão gradual, também reforça esse lado sugestivo.
O filme faz jus a toda a injustiça que a família viveu, mas o modo como isso se insere possui uma progressão específica. O modo como, no começo, ninguém sabe direito o que está acontecendo, ou o modo como a mãe tenta proteger os filhos e não conta para eles o que está acontecendo, todo esse terror é bastante gradual. O filme sugere coisas enquanto essa tensão cresce e não entrega o seu pesadelo de modo ilustrativo.
Um dos grandes problemas de alguns filmes com temáticas políticas diretas é que eles tendem a ser muito didáticos. Marighella (2019), por exemplo, sofre com isso. O filme é praticamente uma aula de história do segundo grau.
Em Ainda Estou Aqui, o drama encenado está sempre acima dessa mera ilustração. A importância do tema nasce dessa forma dramática gradual e não é algo simplesmente imposto.
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A ATUAÇÃO DE FERNANDA TORRES
Mesmo a atuação de Fernanda Torres também dialoga com essa lógica sugestiva. Apesar de ser uma atuação forte, não é uma atuação melodramática ou épica.
É uma atuação clássica, porém com pontuações bem específicas. Os grandes momentos da atriz não são os que ela evidencia o que a personagem está sentindo, mas aqueles em que você percebe que ela está se contendo, que ela está tentando se controlar.
É possível perceber uma espécie de crise interna pela atuação sutil e sugestiva de Torres: o modo dela olhar para os agentes que invadem a sua casa, o modo dela segurar os filhos, o modo dela falar com os filhos.
É uma atuação que se torna pesada e complexa a partir de pequenos momentos e pontos específicos. Não é aquela grande performance típica que possui um momento grandioso de catarse, mas é uma performance que adquire o seu peso ao longo da narrativa.
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EPÍLOGO
O epílogo, quando a obra salta para os anos 90 e, depois, para anos mais tarde, talvez seja o momento mais fraco do longa. É uma parte que parece que existe mais para ser ilustrativa e informativa do que qualquer coisa.
Enquanto o filme inteiro evita muito bem cair em um mero relato e em uma mera ilustração ao transformar a vida de Eunice em um pesadelo dramático muito bem articulado, o epílogo segue um tom protocolar.
Mesmo em termos estéticos, as últimas cenas possuem uma fotografia genérica com uma luz chapada e o drama vai para um lado informativo.
Claro que em termos narrativos é uma parte muito interessante, já que mostra que Eunice e seus filhos conseguiram dar continuidade às suas vidas. Nesse ponto, ele fecha bem a narrativa.
Mas existe uma sensação de quebra na abordagem do drama e da estética. Não é nada que vá afetar a qualidade geral do trabalho, mas é um pouco frustrante que um filme com momentos tão fortes termine de um jeito relativamente genérico.
De toda forma, o filme se mostra extremamente poderoso com um todo. Walter Salles consegue fazer uma obra clássica e política sem cair em apelos fáceis, confirmando sua vocação para um bom cinema mais tradicional.