FERRARI (2023): Espectros da morte

Michael Mann propõe um retrato mórbido da masculinidade

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Em 1957, Enzo Ferrari enfrenta dificuldades na sua empresa e no seu casamento. Em meio a diversas crises, ele decide apostar tudo na corrida Mille Miglia, na Itália. O filme é um drama biográfico baseado no livro Ferrari: O homem por trás das máquinas, de Brock Yates.

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UM DRAMA REVELADOR

Ferrari (2023) é um filme que, em vários sentidos, evidencia o talento de Michael Mann para filmar dramas. Algo que com certeza podemos sentir em trabalhos anteriores do cineasta, mas que aqui é explorado a partir de um aspecto mais intimista envolvendo o seu estilo.

Já no começo longa, a cena de Enzo no túmulo do filho é bem reveladora nesse sentido. Mesmo com pouco tempo de filme e poucos elementos à disposição (apenas o ator e um cenário vazio e sugestivo), o diretor cria uma grande representação da dor reprimida.

O close sombrio em Adam Driver, usando a janela scope para enquadrar o ator e uma cruz ao fundo, é daquelas imagens que só Clint Eastwood conseguia fazer nos seus filmes mais estilizados do início dos anos 2000: a praticidade de um grande mestre reforçando a profundidade de uma convenção.

Em termos gerais, Ferrari (2023) é um filme com uma direção de cena mais rigorosa que os anteriores de Mann, mas mesmo quando ele responde a convenções clássicas consegue impor um tom espontâneo e, principalmente, consegue atingir um efeito emocional denso com cenas muito curtas.

A decupagem ainda lembra muito Hacker (2015) em como o diretor usa a janela do scope para organizar e desorganizar os elementos em cena. Em várias cenas, por exemplo, ele prioriza rostos em primeiro plano, próximos da câmera, para criar uma relação de desestabilização sugestiva entre personagem e cenário.

Já nas corridas, os planos mais próximos dos carros com o scope trazem um aspecto um pouco confuso e pictórico, porém sem nunca perder a referência dos elementos em quadro.

Mann usa do seu senso de urgência na construção das cenas menos para desconstruir a ação (como em alguns dos filmes anteriores) e mais para tornar as sequências dinâmicas sem perder a sua profundidade emocional.

A cena do trágico acidente durante a Mille Miglia talvez seja o ápice disso. Ela é rápida, mas extremamente clara e direta. Não usa nenhum artifício de montagem para esconder a tragédia e assume os riscos do que propõe.

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O ESPECTRO DA MORTE

A caracterização dos personagens também ajuda muito no drama e no tom mórbido que contamina tudo. Todos que estão em um círculo próximo de Enzo são abordados quase que como fantasmas ou pessoas próximas da morte.

O filme deixa a entender que o vigor dele como patriarca e empresário está diretamente relacionado a uma atitude fria que sabe que a vida humana está em constante risco.

Existe até mesmo um aspecto vampirístico na forma em que o protagonista suga a energia dos outros, sendo a presença anêmica de Penélope Cruz, interpretando Laura Ferrari, a sua vítima melhor caracterizada.

Só existe um alívio da morte na figura da amante que, consequentemente, está sempre ligada à figura do filho. Mesmo que o filme tente estabelecer uma relação de Enzo com Lina Lardi, o vínculo está muito mais estruturado pela figura do herdeiro e pelo laço masculino do que por um afeto amoroso com a mulher.

O protagonista só vê algum traço de vida e alguma possibilidade de vínculo duradouro com o filho homem. Tanto é que a cena final, ao invés de selar a relação de Enzo com Lina, mostra ele com o novo herdeiro no cemitério, visitando o filho morto.

Mesmo que a personagem de Penélope Cruz seja extremamente determinante em vários aspectos do filme e, de algum modo, até manipule e domine várias circunstâncias, o filme exclui totalmente qualquer figura feminina dessas possibilidades de purgação pessoal.

É só na disposição entre os homens e entre a morte que existe um senso de fidelidade e continuidade.

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