A BALEIA (2022): Drama de redenção

Darren Aronofsky conserva dispositivo teatral em proposta melodramática

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O DISPOSITIVO TEATRAL

Apesar de A Baleia (2022) ser um filme com apelos bem realistas, Darren Aronofsky usa o dispositivo teatral do roteiro adaptado (o filme é escrito pelo próprio autor da peça original) para situar os acontecimentos em uma dimensão de tempo e espaço muito específica.

O diretor não faz questão de esconder que o ambiente da casa em que seu protagonista vive se parece com um cenário e nem tenta naturalizar tanto assim a interação entre os personagens.

As atuações são realistas, mas o modo como as interações se iniciam e terminam são bem marcadas. O tempo de “palco” de cada coisa é muito bem cronometrado. Temos a sensação de que uma vez que um ator sai de cena, ele não passa a viver no extracampo, mas aguarda novamente sua vez de entrar.

É um rigor e um foco que, dentro do cinema de Aronofsky, ainda não tinha sido explorado de modo tão radical assim. Pelo contrário, boa parte dos seus filmes, mesmo que partindo de premissas intimistas, são basicamente sobre a expansão dos espaços da cena a partir da crise dos protagonistas.

Mãe! (2017) funciona como uma espécie de ápice subversivo disso, já que a locação do longa de 2017, ainda que limitada, vai sendo extravasada sem respeitar limites de tempo e espaço. Mesmo O Lutador (2008), apesar de possuir uma abordagem mais verossímil e crua, é um filme com uma decupagem muito mais instável e que funciona em uma lógica de deambulação melancólica por seus ambientes.

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UMA REDENÇÃO FÍSICA

Aqui, em A Baleia (2022), tudo é confinado a uma locação muito limitada, enquanto que a decupagem também rejeita a câmera na mão espontânea e expansiva, comum em alguns dos filmes anteriores, e vai para um lado impassível e calculado.

Estamos, desse modo, diante de uma lógica de implosão. Charlie, o personagem principal, não para de comer, de receber sermões e de ser pressionado por todos os lados. Sem nunca reagir a nada, ele apenas absorve tudo de modo passivo. Ele se reprime cada vez mais dentro desse espaço insuficiente, dentro desse palco-cenário em que o personagem é uma espécie de núcleo vivo.

O filme vai oprimindo Charlie sem oferecer uma solução. As únicas reações dele se baseiam em aspectos cordiais e positivos. O que até lembra um pouco Blonde (2022) pelo modo que o protagonista não tem uma real possibilidade de reação e apenas recebe aquilo como uma espécie de purgação e redenção.

Mas enquanto que em Blonde (2022) a representação formal dessa situação era, também, em um nível psicológico, aqui tudo é resumido ao nível mais literal e material possível. O dispositivo teatral está acima de qualquer sugestão visual que extrapole esses limites.

Nesse ponto, o filme realmente recusa qualquer atalho ou sutileza e lida com essa purgação do personagem como um processo penosamente físico. A obra não explora qualquer artifício dinâmico, já que a câmera pouco se afeta pelo que está na sua frente e registra os acontecimentos de modo mais objetivo.

O cineasta usa de aspectos muito básicos de dramatização ao construir boa parte da decupagem em planos de reação e uma dinâmica de plano e contraplano muito simples e direta. Ao mesmo tempo, está interessado em uma tradição de melodrama que propõe movimentos de câmera sutis que vão enfatizando a atmosfera emotiva das interações do elenco – interações, essas sim, mais radicais – sem nunca impor uma visão apelativa.

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UM FILME MANIPULATIVO?

Muito se discutiu sobre um teor manipulativo ou apelativo de A Baleia (2022). Eu não vejo as escolhas estéticas de Aronofsky como escolhas manipulativas justamente por serem escolhas bastante literais. Não existe possibilidade para um subterfúgio em uma abordagem tão franca como essa.

Os temas são tratados de modo claro, a câmera se limita aos mesmos enquadramentos e movimentos, e até a música que, apesar de estar bastante presente, funciona como uma trilha atmosférica que nunca impõe uma emoção, mas segue aquilo que o elenco apresenta.

Me parece até que Aronofsky deixa de lado a sua câmera na mão e a sua abordagem crua, comum em outros longas, justamente para evitar essa ideia de um reality show ou de algo que estaria meramente explorando aquela situação. Todos os momentos gráficos do filme brotam de um drama prático e não de uma exploração pela exploração.

Inclusive, para chegar a isso, o diretor teve que se colocar em um lugar muito mais dependente do elenco. Como, agora, ele não tem a possibilidade de moldar totalmente aquela realidade com escolhas formais mais radicais, toda a dinâmica funciona a partir dos embates e dramas entre os personagens.

É claro que o cineasta constrói o dispositivo antes de tudo, situa ali o seu filme-cápsula à beira de implodir em uma relação que não é totalmente natural, mas uma vez que isso é definido, é o elenco que faz o melodrama andar.

O trabalho de Brendan Fraser, nesse aspecto, é incrível porque o ator nunca parece que está exagerando, mas que sempre está se segurando, está sempre no limite. O exagero nasce mais do modo que as situações do filme trabalham com esse limite do que de uma atuação vaidosa que quer parecer profunda. Mais uma vez existe um elemento dramático e prático justificando muito bem qualquer excesso.

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A RELIGIOSIDADE

Apesar de todo esse aspecto literal, o diretor continua lidando com ideias de religiosidade que percorrem toda a sua filmografia. Além da temática estar incluída na figura do personagem missionário e de ser o motivo do trauma do protagonista, a trama funciona, desde o início, como uma espécie de profecia.

A personagem de Hong Chau atesta com confiança (confiança demais até para uma enfermeira) que o protagonista irá morrer e, sendo assim, os dias da semana passam a ser contados numa espécie de iminência bíblica. Como se aquele fosse o tempo para o personagem se salvar, seja através dessa reaproximação com a filha ou seja através de uma ideia de transcendência que é verbalmente rejeitada, porém sempre se faz presente de algum modo.

Mesmo que Charlie rejeite os valores cristãos devido aos seus traumas, ele aceita o seu sofrimento como uma espécie de punição inconsciente pelos seus atos  (não quer ir para um hospital), tenta praticar uma última boa ação (deixa para a filha o dinheiro que poderia ter usado para se internar) e é até mesmo salvo pela providência quando alguém surge nos momentos que ele está à beira da morte (o quase infarto no início, o engasgo com o sanduíche).

O filme pode não ter o aspecto religioso como algo central e pode até renegar os aspectos mais alegóricos que Aronofsky trabalha em outros longas, mas sempre existe algum subtexto lidando com isso.

Nesse ponto, a cena final também me parece muito bem resolvida entre essa sugestão de iluminação divina, de “elevação”, e de superação física no encontro com a filha. Pode ser uma cena ilustrativa que destoa do resto, mas fecha bem todo esse imaginário sobrenatural indireto que o filme trabalha.