BLONDE (2022): Ícone e Mártir

As escolhas estilísticas de Andrew Dominik concretizam os piores pesadelos de Norma Jeane

*

Baseado na biografia ficcional escrita por Joyce Carol Oates, Blonde reimagina os principais eventos da vida de Marilyn Monroe em uma narrativa romantizada que se dá várias liberdades.

*

A VITÓRIA DO APARATO

Blonde até remete a algumas ideias de Spencer (2021) – a recente cinebiografia de Diana Spencer – principalmente por se colocar como um retrato fetichista assumido de uma grande figura pública.

Mas enquanto lá a personagem de Diana possuía um certo controle sobre as suas atitudes e o longa de Pablo Larraín, no fim das contas, é sobre a sua fuga daquele contexto, Blonde é uma obra em que a figura da Marilyn Monroe nunca tem controle sobre nada e o “aparato” ao seu redor sempre vence.

Aparato tanto no sentido de um contexto Hollywoodiano que vai engolindo aquela figura como também no sentido de aparatos formais e estilísticos do próprio filme que vão impondo um pesadelo muito específico para a personagem.

.
UMA EXPERIÊNCIA IMAGÉTICA FRAGMENTADA

Apesar de Andrew Dominik estruturar o longa a partir de reconstituições de imagens e momentos icônicos da vida da Marilyn, essa reconstituição fica sempre limitada a uma superfície imagética. As dinâmicas dos acontecimentos nunca são realistas e soam como momentos de tormento sendo construídos e impostos através dessa dinâmica.

Mesmo os artifícios visuais que o diretor usa, como luzes se apagando e acendendo, ou o fato dos espaços físicos, em vários casos, não possuírem uma continuidade lógica (as cenas do avião e da tentativa de fuga do hospital são bem expressivas nesse sentido) reforçam essa ideia de uma personagem presa em “ambientes imagéticos” que estão sendo montados e cenários que se encontram em trânsito. Nada é permanente e tudo existe para fragmentar essa experiência.

Em certo sentido, é como se o diretor integrasse a maior angústia da Norma Jeane em toda a dinâmica formal da obra. Com certeza um dos maiores pesadelos dela é o modo como os filmes e todo aquele entorno moldava a figura de Marilyn – ela até comenta, em certo momento, que nos filmes eles “cortam você em pedaços” – e aqui o cineasta faz justamente dessa fragmentação, dessa imposição pelo aparato, a tônica da sua visão cinematográfica.

.
A PURGAÇÃO PELO SOFRIMENTO

Um movimento que, definitivamente, pode soar sádico, mas que nunca se entrega a uma apelação pela apelação já que, no fim das contas, sugere uma espécie de purgação transcendental pelo sofrimento. Blonde parece mais um filme sobre uma santa do que um filme sobre uma estrela de Hollywood. A figura da Norma Jeane não tem nenhuma ambiguidade, ela é apenas boa. E muito da razão do seu sofrimento nasce dessa ingenuidade.

Mesmo a maneira que o filme mostra o primeiro aborto entra um pouco nessa lógica. A personagem, de certo modo, sacrifica o bebê por aquele contexto. A própria música da cena do filme de Howard Hawks (Bye bye baby) é ressignificada tendo essa ideia em vista. O que, com certeza, não é nada sutil, mas se adequa muito bem a toda essa atmosfera biopic B de filme televisivo da Lifetime encontra David Lynch que Andrew Dominik parece mirar (ou que chegou sem querer).

A atuação de Ana de Armas também dialoga um pouco com esse lado transcendental. Ela está sempre em uma espécie de transe, como se não estivesse tentando viver Marilyn, mas lutando com o espírito dela entrando e saindo do seu corpo. É uma atuação exagerada e que pontua os trejeitos daquela figura; uma atuação quase caricata, mas que, novamente, se adequa muitíssimo bem a essa dimensão expressionista e farsesca que o filme cria.

.
SOLUÇÕES ESTILÍSTICAS EXPERIMENTAIS

Um filme comum dificilmente conseguiria bancar essa proposta que beira o experimental por quase 3 horas, mas Dominik encontra algumas soluções estilísticas que estão sempre se reinventando.

O uso contrastado que o cineasta faz do preto e branco, por exemplo, não serve meramente para estilizar aquele contexto a partir de uma abordagem nostálgica. O preto e branco funciona como uma escolha visual que cria uma outra perspectiva de volume entre os personagens e o espaço das cenas.

Em vários planos, o fundo está totalmente preto e apenas o corpo do elenco se destaca, como se eles estivessem em uma espécie de “caixa preta” constante, em um estúdio ou um ambiente teatral em que estão sendo manipulados e esperando por um novo cenário surgir. Algo que até me lembra a lógica de “filme de guerra teatral” de 1917 (2019).

O modo como, no som, o cineasta evita trabalhar com muitos efeitos sonoros do ambiente e prioriza a voz do elenco também reforça um tom evocativo muito forte. Nada é contaminado por qualquer traço de uma realidade externa e a personagem está, constantemente, presa na construção do filme, aguardando o próximo personagem que irá brotar na sua frente ou surgir por uma porta imaginária.

Seguindo essa lógica, o filme vai adquirindo uma liberdade formal e, ao mesmo tempo, um caráter simbólico e irreal muito inventivo. Todos os exageros funcionam em um nível prático, mas também alegórico (ou, talvez, kafkaniano até).


A cena com John Kennedy é uma espécie de ápice nesse sentido. Em um nível literal e superficial pode ser vista como algo apenas tosco ou jocoso, mas nesse nível alegórico que sugere uma dimensão ambígua me remete a estranheza de uma cena de David Cronenberg. Mais especificamente, talvez, a algo do Mistérios E Paixões (1991), em que as situações vão surgindo sem aviso prévio naquele pesadelo absurdo.

.
UMA PROPOSTA ARRISCADA

Blonde é um filme com uma proposta duplamente arriscada. Ele busca essa purgação pelo sofrimento e possui, definitivamente, um aspecto transcendental nessa jornada de sacrifício, quase uma abordagem asceta para uma estrela de Hollywood (o que me parece um olhar absolutamente criativo e horrivelmente oportuno nesse caso).

E, em paralelo a isso, assume essa abordagem farsesca e B que rejeita qualquer empatia mais fácil com as situações que cria. A existência de um filme como esse, nos dias de hoje, já me espanta. Fico feliz em saber que, em boa parte das cenas, o cineasta explorou muito bem suas possibilidades a partir dessa proposta.