SPENCER (2021): Terror das aparências

Em filme assumidamente fetichista, Pablo Larraín apresenta um olhar sombrio sobre Diana

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Apesar da protagonista de Spencer ser baseada na figura real de Diana Frances Spencer, a princesa da família real britânica que ficou conhecida como Lady Di, o longa de Pablo Larraín propõe uma espécie de fábula sobre essa personalidade.

O cineasta não baseou sua obra em acontecimentos diretos envolvendo membros da realeza, mas em especulações do que estaria acontecendo com Diana nos momentos finais do seu casamento com Charles.

Essa liberdade na premissa dá ao diretor a possibilidade de rejeitar uma mera ilustração de um acontecimento histórico. Ao invés disso, Larraín propõe uma abordagem psicológica sombria e bastante pessoal sobre a sua personagem.

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O OLHAR FETICHISTA

Diferente de um filme como Jackie (2016) que, apesar de possuir um forte jogo subjetivo com a sua personagem, funcionava como um drama mais austero e realista, Spencer é um trabalho mais fetichista. O diretor chileno, agora, parece mais dedicado a compor vislumbres estilizados e oníricos da figura de Kristen Stewart do que em construir uma narrativa totalmente rigorosa.

É claro que existe uma proposta dramática muito densa e uma construção psicológica bastante minuciosa, porém, ao assumir essa ideia de fábula, o cineasta também assume um olhar mais livre sobre a protagonista.

Mesmo que Spencer seja um filme sobre a intimidade, a própria visão sobre a intimidade de Diana é uma fantasia por si só. A obra, em última análise, não é sobre a vida pública e privada, e sim sobre um possível limbo entre essas duas coisas.

Nesse limbo, toda ideia de representação é muito mais ambígua. Disso nasce esse olhar fetichista que aborda aquele entorno atormentado tanto a partir de uma perspectiva estética elegante, como também a partir de uma aproximação que, de certa forma, cultua as crises e hesitações de Diana.

Mesmo em momentos de tristeza ou angústia, Stewart nunca perde a sua graciosidade. Existe, constantemente, uma ideia da protagonista muito mais como essa figura atormentada romantizada do que, exatamente, a sua concepção como uma pessoa real.

Dentro da proposta do longa, isso não é um defeito. Muito pelo contrário, é até mais honesto da parte do cineasta assumir que o trabalho se coloca nessa posição quase maneirista. Uma posição que não deseja “entender” os fantasmas de Diana, mas evidenciar essas presenças como uma espécie de pesadelo estético sensitivo.

Isso, muito menos, torna o filme superficial. Apesar do ato final soar relativamente aleatório dentro de uma possível redenção dramática que nunca é convincente, o cineasta se utiliza desse imaginário das aparências para criar fissuras oportunas naquela realidade.

Seja a partir da presença de Ana Bolena ou das visões do passado de Diana, Larraín explora um aspecto sensitivo daquele cotidiano sempre solene. Como até mesmo o lugar em que a protagonista se encontra soa muito ambíguo em uma perspectiva de espaço e tempo (estamos no anos 90 habitando uma mansão de estilo jacobino), a obra se coloca, constantemente, em um lugar que tira possibilidades até mesmo sobrenaturais desse seu jogo com as aparências.

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UM FILME DE TERROR

Toda essa representação ambígua daquele espaço e, principalmente, esse espectro de uma tradição real que oprime a protagonista, faz com que Spencer se aproxime de um filme de terror. Se formos pensar em uma aproximação mais específica, uma comparação com o clássico O Iluminado (1980) pode fazer bastante sentido.

No filme de Stanley Kubrick, o personagem de Jack Nicholson é um homem comum atormentado por um ambiente nobre que, apesar de remeter diretamente a um evento trágico, expressa os seus assombros por elementos grandiosos (os mesmos longos corredores) e até aristocratas (os bailes e as figuras do passado). Sem falar em um alusão indireta ao genocídio de povos nativos que, igualmente, ronda aquele imaginário.

Em Spencer, Kristen Stewart também vive uma mulher comum que é alienada por um espaço que se sustenta por presenças nobres do passado. Os corredores e até mesmo a geladeira rimam com aspectos essenciais do longa de Kubrick. O assombro se dá, também, através de uma ameaça implícita que a grandiosidade do espaço sugere.

Boa parte da decupagem e da atmosfera que o diretor constrói trabalha em prol dessa alienação e desse possível filme de terror. Em alguns momentos chaves, os planos se alternam entre composições muito abertas ou muito fechadas, fazendo com que o espectador não compreenda totalmente o que se passa.

Na cena em que a família real come a sobremesa, por exemplo, isso é bastante perceptivo. Planos gerais que mostram todos sentados, ao longe, são alternados com planos médios ou closes de Stewart em baixa profundidade de campo (o entorno está desfocado).

A decupagem não só isola a personagem do resto da família, como também gera uma angústia ao não revelar os acontecimentos de uma distância compreensível. No ápice da cena, quando Diana come as pérolas, temos um close muito fechado em Stewart com o fundo, da mesma forma, totalmente desfocado. Uma imagem fantasiosa digna de um pesadelo sobrenatural.

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A ESTÉTICA DE UM TEMPO INDEFINIDO

Mesmo o uso da película – o longa foi filmado em super 16mm e 35mm, não em vídeo – potencializa uma sensação de distanciamento que as imagens causam, de uma realidade alienada que nunca conseguimos alcançar. Como se a própria natureza material do filme pertencesse, também, a um tempo indefinido.

O super 16mm possui uma estética retrô que poderia, facilmente, soar forçada com sua textura granulada e luzes quentes muito difusas, mas que Larraín e Claire Mathon – a fotógrafa do filme, também responsável por obras como Retrato de uma Jovem em Chamas (2019) e Um Estranho no Lago (2013) – administram muito bem na relação com os outros elementos em cena.

Cada novo cenário traz uma espécie de novo pesadelo em que a luz e o espaço oprimem a figura da Stewart ao seu modo. O diretor e a fotógrafa transformam as fontes de luz que o ambiente propõe (velas, luminárias, luz natural) em uma série de artifícios sombrios.

Mesmo cenas que, teoricamente, poderiam passar uma sensação de alívio – como o momento em que Diana conversa e brinca com os filhos à luz de velas ou quando ela e Maggie estão em uma praia ensolarada – a obra conserva uma atmosfera melancólica que vem muito dessa textura retrô que a película e a iluminação oferecem,

Curiosamente, o filme possui uma relação com essa superfície de imagem que lembra Personal Shopper (2016), outro filme em que Kristen Stewart também lida com uma possível presença sobrenatural. Porém, o que no filme de Olivier Assayas era mediado por elementos tecnológicos e até mesmo uma fotografia mais limpa e cristalina, aqui é abordado por espaços do passado a partir de uma concepção visual nostálgica.

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UMA POSSÍVEL REDENÇÃO

O único problema mais relevante que eu enxergo no filme é em relação ao seu final. A possível redenção de Diana, apesar de, em teoria, funcionar a partir das motivações apresentadas, não é bem encenada dramaticamente.

É interessante o modo como a relação da protagonista com a sua infância funciona como uma espécie de gatilho para a fuga final, mas o modo como o diretor apresenta isso soa como uma esquete genérica à Terrence Malick.

Algo que, em um primeiro momento, faria todo sentido com o olhar fetichista de Larraín. Porém o diretor se rende a imagens poéticas aleatórias – temos até um momento com a câmera com grande angular dançando junto com a personagem, realmente fazendo jus a referência malickiana – que não se adequam ao rigor construído até ali.

Possivelmente essa falta de rigor, nesse momento, era mesmo a intenção. A questão é que quando o cineasta propõe um olhar sombrio sobre a figura de Diana, ele de fato articula uma perspectiva própria mesmo que partindo de possíveis referências (talvez o próprio Kubrick seja uma delas); já no momento dessa guinada, o diretor não oferece essa mesma autenticidade. O que faz com que, dramaticamente, a redenção soe forçada.

De toda forma, não é algo que afeta completamente a unidade do filme. Pablo Larraín, durante boa parte da obra, mostra muito talento ao orquestrar os elementos técnicos e práticos (em especial a fotografia e a arte) com a presença física enigmática de Kristen Stewart.

Longe de propor uma biopic tradicional, Spencer se foca em um intervalo de tempo que, apesar de ser bastante curto, constrói um perfil psicológico muito específico e inquietante sobre a personalidade de Diana.