DEMOCRACIA EM VERTIGEM (2019): Poesia higienizada

Petra Costa propõe retrato superficial e alienado sobre a política nacional

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ABORDAGENS PASSIVAS SOBRE UM MESMO TEMA

Diferente de O Processo (2018) – documentário sobre o processo de impeachment de Dilma Rousseff – Democracia em Vertigem (2019) assume um tom bastante pessoal no seu relato. Enquanto o longa de Maria Augusta Ramos possui uma abordagem muito mais observacional e impassível – ainda que, evidentemente, suscetível a articulações subjetivas de sua diretora – Petra Costa articula impressões íntimas e poéticas a partir dos acontecimentos em voga.

Focado não apenas no impeachment de Dilma, mas em toda a história recente da ascensão e queda da esquerda no país, o longa lançado pela Netflix estabelece um diálogo pontual entre os acontecimentos da vida da realizadora e de sua família com episódios da nossa história política.

O Processo (2018)

Apesar da diferença em suas aproximações, os dois filmes possuem problemas semelhantes. São trabalhos limitados pelas próprias formas que impõe.

O Processo (2018), já comentado por mim aqui, se restringe a uma atitude segura de repetição dos fatos do seu tema. Um registro cru que meramente reitera o imaginário já estabelecido tanto pelo poder midiático como pelos discursos ideológicos que circundam o acontecido. 

Democracia em Vertigem (2019) se encerra em um olhar alienado que lança mão dos seus elementos poéticos muito mais como um artifício vazio e vaidoso do que uma perspectiva ativa sobre os episódios que narra. Fica a impressão que, após toda a crise da esquerda, os sentimentos da diretora foram mais feridos do que qualquer outra realidade desse entorno.

Os dois trabalhos, cada um ao seu modo, se fecham em métodos seguros e passivos. São obras que até evidenciam bem as suas motivações (especialmente a de Petra), mas propõe reflexões limitadas sobre os seus temas. 

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O INDIVÍDUO E O COLETIVO

Democracia em Vertigem (2019) estabelece bem sua aparente proposta em lidar com duas dimensões distintas: a pessoal e a política, a individual e a coletiva. O filme é bastante claro e didático nesse ponto. Constrói um discurso que, em todo caso, é pelo menos dinâmico nessas relações pessoais que descortinam um panorama maior. 

Talvez seu maior mérito seja justamente a forma como sua montagem ordena os fatos. Existe um fio narrativo muito eficiente e revelador que mostra do nascimento da figura de Lula aos eventos que precedem a ascensão de Jair Bolsonaro. Uma espécie de exorcização dos acontecimentos que, inegavelmente, possui o seu apelo emocional. Possui até mesmo, para boa parte dos espectadores, um elemento de expurgo frente a recente situação do país. 

O problema é que, ao narrar tais acontecimentos, o longa se fecha em uma visão poética vazia que atenua suas consequências. A diretora estabelece um jogo muito eficiente ao vislumbrar os fatos históricos, ao relacionar seu passado com os acontecimentos do país, mas, para além disso, se limita a uma articulação superfical de imagens bonitas e vislumbres poéticos genéricos. Uma articulação que parece unicamente interessada em relações de aparência com tudo o que apresenta.

Nesse sentido o filme remete a Elena (2012), da mesma diretora. Uma obra que ao mesmo tempo que suavizava – na medida do possível – um tema pesado como o suicídio, ficava refém das limitações do seu jogo plástico-poético. Refém de uma imagem bonita que é sedutora, que possui um universo de sugestões líricas implícitas, mas que se contenta com pouco, que nunca de fato propõe um conflito que desestabilize esse universo ou uma discussão mais contundente sobre o seu tema. A obra se converte em um cinema pictórico e agradável, mas genérico e passivo, basicamente sem proposições.

Tudo isso pode até ser justificado a partir dessa tradição subjetiva que os filmes da cineasta seguem – o olhar do acontecimento é o olhar da Petra, logo algo plasticamente bem composto e integrado a um certo romantismo. Mas não deixa de ser uma higienização dos fatos. 

No caso de Democracia em Vertigem, uma higienização muito mais grave, já que, de algum modo, é um olhar que ameniza os acontecimentos, que mantém uma distância segura e, em vários sentidos, elitizada de tudo. 

Na mediação entre o indivíduo (o seu relato pessoal) e o coletivo (os episódios políticos do país) de Democracia em Vertigem, existe um claro desequilíbrio que pende para uma visão vaidosa dos fatos. O coletivo entra muito mais como o acessório de um ressentimento pessoal do que uma vontade de se aproximar e compreender aquela realidade. O que, consequentemente, evidencia um olhar distante e alienado da diretora.

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UM OLHAR ALIENADO

É evidente que existe, no filme, uma aproximação subjetiva completamente assumida em vários sentidos – desde sua relação ideológica com os temas ao ponto de vista em primeira pessoa da câmera em alguns encontros chaves -, mas que não deixa de ser um olhar limitado.

Limitado tanto na questão pessoal – Petra apenas cita o caso da empreiteira da família, faz perguntas genéricas para mãe do tipo “como você se sente com isso” – como na questão política: o longa meramente reitera os acontecimentos a partir de um ângulo poético funcional, mas sem qualquer identidade ou mesmo alguma provocação ativa.

A diretora parece muito mais próxima – e mesmo íntima – de figuras de poder como Dilma do que de uma tensão popular complexa que efervescia durante aquela crise. 

Enquanto as manifestações de rua são pontuais e definidas por um viés limitador e ilustrativo na narração em off (a polarização pós manifestações de 2013 é tratada praticamente como obra do acaso), o filme é bastante empenhado em se utilizar de artifícios de imagem e som para romantizar uma jornada íntima e vazia de sua autora.

O drone que se distancia das pessoas em alguns momentos do filme é, como vários críticos e espectadores já perceberam, a triste imagem-síntese de Democracia em Vertigem: um olhar alienado que não se interessa pelo relato no olho do furacão e prefere pairar sobre tudo em um voo contemplativo e relaxante. 

Nesse sentido, talvez o momento mais lúcido seja quando Petra aborda uma faxineira que limpa as escadas do Palácio de Alvorada na desocupação de Dilma. Apesar do encontro acontecer, não por acaso, dentro de um espaço de poder (os únicos espaços em que a diretora parece ter uma real intimidade), a entrevistada parece bastante esclarecida ao afirmar que, simplesmente, não existe democracia. 

É uma pena o fato do filme não explorar mais relatos como esse. Soa como se o próprio longa não acreditasse no seu registro espontâneo. Tudo precisa ser mediado por um artifício de imagem (os drones, os planos imponentes), de som (a música clássica e solene) ou de narração (as descrições cerimoniosas e poéticas da realizadora).

Estamos diante de um documentário que não confia em seu próprio registro. Apesar do relato subjetivo ser, desde o início, declarado, sua abordagem nunca concretiza os conflitos que propõe. Pelo contrário, o filme aliena seus acontecimentos a partir de um olhar centralizador restrito. Um olhar que mesmo ao assumir o seu elitismo e a sua ideologia (o que enriquece toda a configuração pessoal de sua narradora), não parece interessado em propor qualquer reflexão mais densa sobre ambos .

Ironicamente, Petra Costa realiza um filme bastante impessoal. Uma obra que segue a sua proposta do início ao fim, mas não revela nenhuma peculiaridade sobre o tema, nenhuma abordagem que de fato escancare, pelo mínimo que seja, as estruturas da democracia como o título, talvez, sugere. Até quando o documentário trata de um corporativismo parasitário (que me parece a causa principal tanto da crise do PT como da social democracia como um regime político em termos gerais) ele se limita a reflexões pontuais. 

No fim das contas, Democracia em Vertigem é um trabalho mais preocupado com a vaidade das suas imagens e do seu discurso sutil e poético do que com a forma que poderia incorporar esse ideal subjetivo ao seu ativismo.