Lucrecia Martel faz da inadequação uma jornada fabular decadente
Lucrecia Martel tem um gosto pela decadência. Em seus filmes, a argentina constantemente lida com ideias de degradação morais e materiais. Elementos que facilmente poderiam cair em uma lógica fetichista, mas que a realizadora dispõe de maneira sempre particular. Mais do que expor o fracasso institucional de seus temas – a família, a religião e, neste Zama, a colonização -, Martel evidencia as fragilidades e, muitas vezes, aberrações pontuais que circundam essas proposições.
Baseado no livro de Antonio Di Benedetto, Zama (2017) narra alguns momentos na vida de Don Diego de Zama, oficial espanhol estabelecido em uma província que hoje é o Paraguai e que aguarda uma transferência para Buenos Aires.
Apesar de tratar de um contexto histórico, o tom do filme flerta com uma abordagem fantasiosa. A medida em que Don Diego espera por uma transferência que nunca chega, o personagem vai entrando em uma espiral degradante e sem perspectivas. O filme aborda isso tanto através de uma claustrofobia característica (enquadramentos apertados, cenários pequenos, externas que rejeitam um horizonte) e um jogo de elipses bruscas que está sempre nos deslocalizando durante os périplos do protagonista.
Uma aproximação que remete diretamente a Jauja (2014) – o projeto colonialista que é fadado a um fracasso lúdico – mas que, aqui, ganha ares muito mais jocosos. Enquanto Lisandro Alonso nutria alguma empatia pela busca de seu personagem, Lucrecia Martel coloca o seu Don Diego em uma grotesca comédia de erros.
O personagem possui um tom empossado, uma pretensa aura européia, que a todo momento é desmascarada. Zama se considera superior aos habitantes da província, mas é ele mesmo refém daquela situação e de seus superiores. Humilhado e constantemente deslegitimado, ele tenta manter essa falsa postura a todo custo.
O escopo de Martel é esse fracasso. As suas trivialidades (as andanças do personagem pela província, seu cotidiano desgastado) e seu flerte com o delírio. O tratamento formal da diretora se equilibra nessa ambiguidade. As cenas em que Zama está com Luciana, por exemplo, remetem a uma banalidade pomposa à Albert Serra: a elegância dissimulada dos gestos, a busca por uma ostentação inexistente. Já os momentos de maior frustração possuem quebras temporais e uma trilha sonora estilizada.
O tratamento sonoro minucioso é uma das distinções do cinema da argentina e, aqui, ele ganha um recurso ainda mais acentuado. Além do já característico uso de sons fora do quadro que enriquecem o que está dentro (por vezes ressignifica, desloca), em Zama, Martel se utiliza de um tratamento musicado de distorções e outras pontuações para contextualizar o declínio de seu personagem. O som ambiente aos poucos desaparece enquanto notas incomuns se agregam à faixa sonora.
E apesar do trabalho possuir esses dois tons marcantes (a trivialidade que versa com o delírio), existe uma linearidade muito singular no filme. Zama parece que nunca evolui. O filme, mesmo quando é acometido de acontecimentos dramáticos importantes, continua sempre em uma mesma sintonia melancólica. Uma monotonia. Um desgaste. Um tédio que contamina toda a sua progressão. A espera do protagonista, sua expectativa constantemente frustrada, se converte na base temporal do filme.
O que nunca torna o trabalho de Martel enfadonho. Pelo contrário, a delonga é uma questão de fabulação. O cotidiano angustiante de Don Diego se transforma em uma jornada sinestésica que remodela as peças daquela paisagem. Cada novo personagem é como uma aparição. Cada nova situação, um cenário que beira o pesadelo.
O ato final, quando o personagem se junta a uma comitiva em busca do criminoso Vicuña Porto, é o ápice disso. A viagem se torna uma visão. Uma jornada excêntrica e inesperada. Apesar da natureza concreta das paisagens e dos encontros, existe uma aura ambígua em tudo. Mesmo durante as revelações dramáticas definidoras – como, por exemplo, quando um dos soldados (Matheus Nachtergaele) confessa ser o próprio criminoso que todos procuram – a narrativa trata isso como um mero detalhe e continua com o seu desenrolar enigmático.
Essa inalterabilidade que assume aquele mundo como um lugar de circunstâncias herméticas naturais é o ponto forte do filme de Martel. Apesar de não assumir diretamente um lado subjetivo de Don Diego, a obra aos poucos distorce aquele mundo. Uma dimensão que parte da realidade decadente de um projeto colonialista, mas encontra em uma mística da inadequação a sua proposta cinematográfica.