SOL ALEGRIA (2018): Celebrar para resistir

Em tom subversivo, longa harmoniza a frustração e a resistência

– Vai ter espetáculo hoje.

–  É o que somos.

Essas duas frases, proferidas pelos personagens de Ney Matogrosso e Tavinho Teixeira no ato final de Sol Alegria (2018), revelam a essência principal do filme.

Ao mesmo tempo que o longa articula uma celebração libertária – o espetáculo tanto como afirmação da alegria pela alegria como inquietação política anárquica -, o filme possui uma desolação que é implícita em toda a sua jornada.

O espetáculo continua não porque existe algo a ser celebrado, mas porque é parte daquela natureza. É o que somos. O mundo pode estar caindo, mas é preciso continuar em movimento. A premissa do filme, inclusive, já lida com essa ideia: uma família que viaja em uma missão, fugindo em pleno Brasil totalitário, e precisa sobreviver, manter viva sua emancipação. O road movie aqui é libertador, reitera um constante movimento, mas é também uma fuga, uma retirada.

A tônica da obra, no fim das contas, se revela mais melancólica do que parece. Apesar de fazer um caminho de escolhas estéticas opostas a Era Uma Vez Brasília (2017), de Adirley Queirós, podemos dizer que os dois trabalhos se focam em uma mesma estagnação, em tempos sombrios que, para seus realizadores, retratam uma situação comum do país.

Enquanto o longa de Queirós constrói nisso uma austeridade, uma imobilidade que se revela num constante jogo de fracassos (um golpe, uma paralisação que contamina a narrativa), Sol Alegria escolhe a luz. O espetáculo que resiste, porém até certo ponto. Celebra, mas em tom de refúgio, de esconderijo, de abandono e contínua dispersão.

A celebração é uma resistência – o sexo é explícito ou mesmo incestuoso, a religiosidade é profana e desprendida, a deambulação rejeita qualquer ideia de propriedade – mas é também um último suspiro, uma derradeira tentativa. Não é a toa que no plano final do filme, a mesma família que correu e fugiu, que caminhou para frente, da a marcha ré no carro ao mesmo tempo em que encara o espectador: já não existe mais uma estrada que leve adiante.

O grande triunfo dos realizadores é conseguir equilibrar esses dois elementos: a frustração e a resistência. Tavinho e Mariah Teixeira não constroem um filme derrotista e nem alienado, mas uma obra que, através de uma variação iconográfica muito rica e que continuamente proclama o seu caráter subversivo, sublima a sua desilusão.

O filme, nesse movimento, lança mão de uma dinâmica dramática muito particular em toda a sua progressão narrativa. Não é uma obra meramente alegórica em suas aproximações (que vão da tropicália a Fassbinder, da chanchada a Cassavetes, do kitsch ao cinema de gênero), mas constrói uma lógica de livre associação de ideias com uma unidade poderosa.

Os diálogos acompanham a fantasia da história, se integram naquele mundo atemporal, mas tocam em temas de forma muito atual e assertiva. A encenação preserva a sua ousadia, mas é rigorosa tanto nessa construção do texto, como em sua elaboração formal: travellings e panorâmicas que fluem levemente pelo espaço, uma concepção cenográfica detalhista e caracterização dos personagens muito expressiva.

Sol Alegria de fato propõe um mundo em sua fuga. Não é um filme meramente de sugestões, mas articula em cena pequenos núcleos muito vivos. A maneira como cada ato é identificado ilustra isso bem. Primeiro, a contextualização, a missão e o atentado revolucionário cometido pela família. Segundo, o road movie, a fuga. Terceiro – talvez o mais forte – a convicção e o fracasso do espetáculo.

Apesar de cada um desses atos possuir elementos específicos – são mesmo pequenos filmes dentro de uma grande obra –  existe um destino traçado. Ou seja: a deambulação é utilizada como artifício narrativo na proposição de uma nova realidade, mas seu futuro é sempre marcado.

O personagem de Tavinho Teixeira, durante todo esse trajeto, atua como uma espécie de mestre de cerimônias que, no vibrante ato final, assume essa persona com todas as letras. Ali sim, percebemos, com mais clareza, uma força que resiste a uma desesperança implícita. O ato começa a ruir. A encenação se desestabiliza. Mas o espetáculo continua.

O que fica: uma obra que lida com suas heranças revolucionárias, sabe apropriá-las com o devido escracho e potência, e ainda carimba o seu grito de forma vigorosa e original.