Preminger transforma o melodrama em uma poderosa experiência de harmonia e sutileza.
Em um primeiro momento, A Ladra (1949) é um filme que soa comum. Gene Tierney interpreta uma cleptomaníaca, esposa de um psicólogo de renome, que cai nas mãos de um hipnotizador vigarista. Pontuado por momentos implausíveis e uma contextualização relativamente genérica, o filme, que não coincidentemente remete em alguns aspectos a Laura (1944) (além da mesma atriz, a narrativa funciona a partir do mistério de uma morte que é também a ausência iconizada de uma segunda personagem) possui todos os aspectos de uma obra nada mais do que corriqueira.
Da trama à caracterização, tudo é muito evidente. Existe mesmo uma polarização didática na construção dos dois personagens principais: a inocência de Tierney (uma fragilidade muito bem encarnada pela atriz) e a vilania de José Ferrer (o malandro elegante cheio de truques).
O que faz, então, A Ladra ser um grande filme? Ao mesmo tempo que toda essa obviedade se coloca diante do espectador, a maneira peculiar que a mise-en-scène de Preminger opera na surdina desse jogo de evidências vai, aos poucos, concebendo uma experiência de sutilezas muito poderosa.
Apesar de qualquer inverossimilhança dramática ou outro elemento de estranhamento, existe uma fluidez narrativa que eleva o filme a uma categoria expressiva que ao mesmo tempo que é absolutamente funcional em sua digressão cênica (busca, inclusive, uma simplicidade muito pontual nisso), convoca uma apreensão mística invisível aos nossos olhos.
Não é apenas a evidência dos elementos em cena que vemos em A Ladra, mas sua essência. É justamente nessa transparência sagrada, nessa assimilação direta dos seus atos, que repousa a grandiosidade da obra.
Ao minimizar qualquer componente de mediação que se deflagre, a câmera de Preminger segue uma modulação de equilíbrio certeiro entre uma inventividade formal pontual (o jogo de contrastes, a localização simbólica dos elementos no quadro) e um registro objetivo. O que resulta em um filme que aparentemente nada tem de especial, porém, uma vez tragado por esse compasso peculiar do diretor, o espectador se vê, inevitavelmente, fascinado por aquele mundo.
O cineasta concebe uma realidade fílmica que equilibra um controle absoluto – do elemento espacial ao dramático, tudo se encaixa muito naturalmente e sem excessos estilísticos – com uma aura (aí sim, o toque Preminger) que encanta justamente em sua contenção, em seu apreço pelo crucial.
A temática da hipnose, tratada no longa, não deixa de operar como um mote oportuno nessa dinâmica. Em uma das principais sequências do filme, quando a personagem de Tierney age submissa ao antagonista, hipnotizada em benefício de mais um golpe que o mesmo articula, as ações da atriz são simples e diretas, quase mecânicas, mas potencializadas por uma movimentação de câmera absolutamente límpida. O filme não trata a cena como um ápice dramático declarado, mas segue tudo em um mesmo tom, um fluxo natural que encontra sua plenitude em uma nuance auto-reguladora, uma progressiva harmonia onde cada unidade do filme se acomoda com a outra.
É desse acúmulo ritmado, harmonioso em todo o seu andamento, que o diretor tira sua maior marca. Uma impressão que não busca evidenciar um estilo – quer, de alguma forma, até apagá-lo – mas inscreve na obra um vestígio misterioso plenamente envolvente.