O trivial veste uma metafísica do abominável no filme de Jean Renoir.
A Besta Humana é um filme que parte de elementos tradicionalmente cultuados em uma dimensão cinematográfica: o trem, o crime e o romance como um mote tensional altamente sugestivo, a manifestação dramática que se integra a uma construção plástica expressiva.
Não que a obra tivesse plena consciência de suas filiações – tanto é que ela mesma é parte fundadora de uma perspectiva moderna de cinema que logo perpetuou descendentes incontestáveis, sendo, neste caso específico, o filme noir o maior deles – mas é bastante claro que existe um aspecto de devoção a princípios essenciais e mesmo de uma noção de gênero cinematográfico.
Ainda que lidando com tais aspectos míticos, o filme não faz disso o seu ponto de estímulo principal. É da abordagem naturalista do diretor, da forma como Jean Renoir alia uma certa transitoriedade dos personagens a elementos externos de grande impacto, que a obra manifesta sua força dramática. O trabalho está mais interessado em sublimar essa força vigorosa, em articular isso dentro de um fundo psicológico muito complexo de seus personagens, do que em expor sua exuberante consciência como simples ostentação.
Nesse jogo de aproximações, Jacques Lantier, o personagem interpretado por Jean Gabin, encarna certo desígnio mecânico não apenas enquanto condutor da locomotiva, mas é mesmo motivado por um predeterminismo violento e impessoal em suas escolhas. Uma variação dramática que vai do instintivo ao afável, da besta ao homem – dependendo do estímulo que recebe.
Quando confrontado com a figura de Séverine Roubaud (uma Simone Simon pré Sangue de Pantera (1942), mas que já dava indícios de uma persona muito semelhante ao do filme de Tourneur), o personagem se vê vítima tanto de uma paixão arrebatadora que o tira de uma solidão alienante (o trem, que até mesmo possui nome de mulher, era seu companheiro mais significativo até ali), como de um instinto misterioso e bestial que rejeita o afago, que despreza qualquer possibilidade de domesticação e responde a isso com um comportamento homicida que nem o próprio personagem compreende.
Apesar do filme explorar com inventividade a sua premissa propriamente narrativa – um crime cometido pelo marido da personagem de Simone Simon que acaba envolvendo o protagonista como uma testemunha chave – o trabalho parte dessa proposição de gênero para conceber uma abordagem existencial muito particular. Existe uma sina fatalista que a obra assume como parte daquele universal, que ao mesmo tempo que a integra ao meio como um comentário social, dispõe de uma proposição mística ao identificar nisso uma maldição irremediável. Jean Gabin é a figura perfeita para essa ambiguidade.
André Bazin, em seu livro sobre Jean Renoir, aponta para uma metafísica dos atores em A Besta Humana. Uma relação que vai além do caráter precisamente psicológico que o filme propõe e encontra no aspecto corporal de seus atores uma natureza sugestiva ainda mais potencializadora, uma vocação que enxerga não a raiva do personagem, mas expõe o ódio do próprio Gabin. As microexpressões características do ator com certeza contribuem nessa construção, suas nuances quase robóticas mas que ocultam uma intenção iminente.
Quando Gabin se encontra em cena com Simone Simon, não sabemos se o que vemos é uma cumplicidade entre dois amantes ou duas figuras destrutivas que se reconhecem. Talvez as duas coisas. A personagem ama Lantier ou quer apenas assegurar que ele não a entregue para polícia e, ainda, garantir que o maquinista mate seu marido? Não existe uma solidariedade, apenas essa disposição pela sobrevivência e de que modo isso pode ser arquitetado dentro de uma convenção moral em constante oscilação.
Jean Renoir, em A Besta Humana, não busca simplesmente renegociar códigos habituais de uma experiência cinematográfica, mas ao encarar com impetuosidade seu tema, ao configurá-lo dentro de uma abordagem onde o trivial veste essa metafísica do abominável, o diretor produz uma obra que até hoje é marcante não apenas por sua disposição evidentemente histórica, mas por seus mistérios que permanecem mortalmente sedutores.
Arthur Tuoto