Kelly Reichardt transforma a deambulação em um processo contínuo de apagamento do sujeito
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Um homem envolvido em um roubo de arte é forçado a atravessar uma série de deslocamentos improvisados para escapar das consequências do próprio ato. À medida que pequenas decisões equivocadas se acumulam, sua fuga se transforma em um percurso errático, marcado por encontros fortuitos e situações que nunca se resolvem plenamente.
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DEAMBULAÇÃO COMO EROSÃO DA IDENTIDADE
A estrutura narrativa de The Mastermind evoca, à primeira vista, Depois de Horas (1985), de Martin Scorsese, sobretudo nessa lógica de deambulação contínua marcada por erros sucessivos e pequenas decisões equivocadas que se acumulam e empurram o personagem para situações progressivamente mais instáveis e imprevisíveis.
Existe um princípio de encadeamento quase casual em que cada gesto aparentemente insignificante gera uma nova bifurcação do percurso, produzindo um movimento errático que parece governado por uma sucessão de contingências.
Nesse processo, o filme encontra um prazer particular nos encontros fortuitos e nos detalhes aparentemente banais.
Personagens secundários que surgem e desaparecem, observações microscópicas do espaço e das ações, pequenos enigmas práticos que estruturam o trajeto (como a figura ambígua dos homens que levam os quadros roubados).

Entretanto, apesar dessa afinidade estrutural inicial, The Mastermind funciona, também, quase como o inverso do filme de Scorsese em sua progressão dramática e simbólica.
Em Depois de Horas (1985), a noite funciona como um dispositivo de acúmulo. A cada novo encontro, o personagem vai sendo inflado por camadas de sentido, símbolos e significados, como se aquele caos urbano expandisse sua identidade. Já no filme de Kelly Reichardt, o movimento produz o efeito contrário.
Aqui, quanto mais o personagem foge, quanto mais se desloca e se reinscreve em novos espaços, menos ele parece existir enquanto sujeito definido. A deambulação não constrói identidade, mas a corrói progressivamente.
Nesse sentido, The Mastermind pode ser visto como o filme mais radical de Reichardt até agora, justamente por depurar de maneira extrema um tema que sempre esteve no centro de sua obra: a marginalização quase instintiva, pouco explicável e nada esquemática de seus personagens.
Não se trata de uma marginalidade construída por grandes eventos, rupturas espetaculares ou conflitos declarados, mas de um desalinhamento profundo e silencioso em relação ao mundo ao redor.
Ao contrário de um cinema social mais ilustrativo, os personagens de Reichardt não são marginalizados por um discurso explícito, por uma tese política frontal ou por antagonismos claramente delineados.
Eles simplesmente não se encaixam. Existe neles algo de estruturalmente inadequado, uma espécie de descompasso ontológico em relação aos espaços, aos ritmos e às expectativas que os cercam.
Embora seus filmes frequentemente estabeleçam um pano de fundo político reconhecível, esse contexto nunca se converte em motor dramático direto ou em chave interpretativa dominante.
A política permanece como atmosfera, como condição de possibilidade, mas nunca como explicação totalizante. O centro da obra está sempre nessa inadequação silenciosa que não se verbaliza, não se psicologiza e tampouco se resolve.
Em The Mastermind, Reichardt leva essa lógica ao limite, fazendo do próprio movimento narrativo um processo de apagamento, e não de afirmação, do sujeito em cena.
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A POÉTICA DA SUBTRAÇÃO
Essa condição é abordada por Reichardt a partir de um rigor minimalista que produz um efeito de enorme densidade.
O peso do filme não emerge do acúmulo de informações, nem de um excesso de dramatização, mas da retenção sistemática, da recusa em explicar motivações, antecedentes ou conflitos internos, e de uma economia radical de ações e reações.
Cada cena parece construída a partir daquilo que é suprimido, fazendo com que o silêncio, as pausas e os vazios narrativos adquiram um peso físico.
Dentro desse dispositivo, o personagem interpretado por Josh O’Connor representa talvez um ponto de culminância na galeria de figuras opacas que atravessam o cinema de Reichardt.

Ele encarna com precisão esse sujeito cuja presença vai sendo progressivamente esvaziada, como se o filme acompanhasse não apenas um processo de fuga, mas um lento desaparecimento.
Não se trata apenas de uma perda de centralidade narrativa, mas de algo mais profundo, que poderíamos chamar de uma perda ontológica. O personagem vai deixando de afirmar-se como entidade autônoma e reconhecível.
A atuação de O’Connor é inteiramente fundada nessa lógica de subtração. Ao longo do filme, sua figura expressa cada vez menos gestos, menos reações discerníveis e menos interioridade visível.
O corpo parece funcionar de modo quase automático, respondendo às situações apenas no nível estritamente funcional, sem que isso se traduza em expressão emocional clara ou em elaboração psicológica.
Progressivamente, sua presença começa a se confundir com o próprio espaço e com a mecânica das ações cotidianas. O personagem se dilui no cenário, como se fosse absorvido pela materialidade dos ambientes e pela repetição dos gestos até o ponto em que passa a parecer apenas mais um elemento da paisagem.
O filme parece testar, de maneira contínua, o limite entre personagem e espaço, entre figura e fundo, até que essa distinção deixa de fazer sentido e colapsa por completo. Um movimento encontra sua expressão mais clara no plano final, que funciona ao mesmo tempo como fechamento conceitual e como um gesto de ironia seca.
Ao perder até mesmo o último resquício de um código moral quando rouba uma senhora idosa, o personagem não é punido nem redimido, mas simplesmente retirado de cena. Ele é levado para fora do quadro de maneira abrupta pela viatura policial, quase como uma gag rigorosamente calculada que sela definitivamente seu apagamento.
O desaparecimento não tem peso trágico nem catártico, mas se dá com a mesma frieza e economia que marcaram todo o percurso, reafirmando a lógica de um cinema que prefere dissolver seus personagens no mundo a conferir-lhes qualquer forma de fechamento reconfortante.
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UMA ESTÉTICA DA OPACIDADE E DA ABSORÇÃO
Esteticamente, The Mastermind aprofunda de forma ainda mais radical essa ideia de dissolução que atravessa toda a sua construção narrativa.
A forma visual do filme não surge como mero suporte do drama, mas como um dispositivo ativo de apagamento progressivo, alinhando rigorosamente a encenação à trajetória de esvaziamento do personagem.
Existe uma estilização clara dos ambientes, marcada por uma nostalgia de tonalidade setentista, perceptível tanto na textura da imagem quanto nas escolhas de exposição mais baixa e no grão acentuado da fotografia (indícios de um trabalho de pós-produção bastante preciso, especialmente se considerarmos que a captação foi realizada em uma câmera digital Alexa 35).

Essa opção estética não busca o efeito de realismo transparente, mas constrói uma superfície visual levemente turva em que os contornos nunca se impõem com nitidez absoluta.
A luz, a partir de um aspecto impressionista, transforma diversos planos em composições quase pictóricas, quadros singelos que evocam uma sensibilidade fotográfica atenta à banalidade e à suspensão do instante.
Uma referência que dialoga diretamente com a influência já assumida pelo diretora de Stephen Shore na abordagem visual do filme. Nesses enquadramentos, o mundo não se organiza hierarquicamente; Objetos, corpos e espaços parecem compartilhar o mesmo estatuto visual.
O resultado é a criação de uma realidade deliberadamente opaca em que tudo parece igualmente importante ou igualmente irrelevante. Figura e fundo nunca se separam de maneira definitiva e o personagem jamais se impõe como centro absoluto do quadro. Ele não se destaca do mundo que habita e é constantemente absorvido por ele.
Essa lógica se intensifica na reta final do filme, quando os cenários se tornam progressivamente mais urbanos, mais fechados e menos iluminados.
A diminuição da luz e o adensamento espacial tornam a atmosfera ainda mais sombria, enquanto a figura do protagonista se torna visualmente mais frágil, quase indistinta do entorno. O espaço urbano, longe de oferecer contraste ou tensão narrativa clássica, funciona como mais um elemento de apagamento.
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The Mastermind se afirma como um dos gestos mais rigorosos e coerentes da filmografia de Kelly Reichardt, precisamente por levar às últimas consequências uma poética da subtração que sempre atravessou o seu cinema.
A deambulação errática do protagonista funciona como um processo contínuo de esvaziamento em que movimento, espaço, atuação e forma visual conspiram para dissolver o personagem no próprio tecido do mundo.
Ao recusar tanto a catarse quanto a ilustração política direta, Reichardt constrói um cinema de extrema precisão ética e formal em que cada plano reafirma a impossibilidade de fixar uma presença estável, fazendo de The Mastermind uma reflexão profundamente material sobre o esgotamento da figura humana diante de um mundo político e econômico que já não a reconhece como centro.
