Albert Serra estrutura seu filme a partir do tempo do gesto ao pensar a tourada como dispositivo
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Tardes de Solidão acompanha o cotidiano do toureiro Andrés Roca Rey, concentrando-se menos na tourada como espetáculo coletivo e mais na experiência íntima da performance. O filme observa, em tempo real, os rituais de preparação, os confrontos na arena e os momentos de esvaziamento que se seguem, construindo um retrato em que o gesto, a espera e a duração organizam a narrativa.
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Em Tardes de Solidão, o interesse central de Albert Serra pela tourada não se limita a uma discussão moral da prática como afronta a um ideal contemporâneo de civilidade europeia, tema que o próprio cineasta já mencionou em entrevistas.
O filme se orienta, principalmente, por uma investigação de ordem estrutural, centrada na organização do espetáculo a partir da performance do toureiro e do regime temporal que ela impõe.
O filme observa como toda a lógica do acontecimento se submete ao corpo de Andrés Roca Rey. É ele quem define o ritmo, quem introduz pausas, acelerações e momentos de suspensão.

O toureiro não atua apenas como protagonista do espetáculo, mas como uma espécie de montador interno da ação, alguém que edita o tempo do evento ao vivo. Cada avanço, cada espera calculada, cada recuo reorganiza a duração da experiência não só para o público presente, mas também para o próprio filme.
Serra traduz essa lógica formalmente ao insistir em planos longos, sustentados em tempo real, recusando elipses que poderiam organizar ou suavizar a experiência do espectador.
O tempo, nesse aspecto, não é algo totalmente imposto de fora pela montagem cinematográfica, mas algo que emerge diretamente do gesto do toureiro. A duração nasce do modo como Roca Rey se desloca na arena, como provoca o touro, como se oferece ao risco e, sobretudo, como administra a espera.
Essa escolha é reforçada de maneira decisiva, também, pela recusa sistemática de imagens do público. Serra elimina qualquer contraplano da plateia, esvaziando a tourada de sua dimensão mais evidentemente relacional.
O espetáculo não é mediado pelo olhar coletivo, nem legitimado por uma reação externa. Ele se apresenta como um acontecimento quase autônomo, fechado em si mesmo, em que a arena se torna um espaço abstrato, isolado do mundo, regido por uma temporalidade própria.
Nesse isolamento, o tempo parece dilatar-se e perder suas referências habituais. Muitos planos, inclusive, produzem a sensação característica do cinema de Serra, já que começam ancorados numa materialidade concreta e observacional, mas, à medida que se prolongam, adquirem um caráter progressivamente abstrato.

As cenas fora da arena cumprem uma função precisa dentro dessa arquitetura. Elas não expandem o mundo do filme, nem oferecem contrapontos narrativos ou psicológicos complexos.
São momentos que funcionam quase exclusivamente como zonas de preparação ou de esvaziamento, espaços liminares que antecedem ou sucedem o transe da performance.
A sequência em que Roca Rey se veste, assumindo gestos que evocam quase uma diva da Broadway, explicita com notável clareza o caráter ritualizado, performativo e artificial daquele corpo. O toureiro, nesse sentido, surge como figura construída e moldada para a cena.
Já as cenas na van em que os companheiros repetem elogios vagos e quase automáticos, funcionam como um lento retorno ao estado ordinário. São momentos pós-rituais em que a intensidade da arena se dissipa gradualmente.
A repetição mecânica dos elogios sublinha o esvaziamento do sentido, como se a linguagem já não fosse capaz de traduzir a experiência vivida. Nesses instantes, Roca Rey parece, pouco a pouco, deixar de ser a figura performática absoluta para recuperar traços de uma identidade mais banal e indistinta.
Tardes de Solidão não se organiza como um filme sobre a tourada enquanto tradição cultural ou controvérsia ética, mas como um estudo rigoroso sobre tempo, performance e ritual.
Serra transforma a arena em um laboratório formal em que a duração, o corpo e o gesto se entrelaçam até que o espetáculo deixe de ser apenas um evento observável e se converta em uma experiência temporal quase hipnótica, ao mesmo tempo concreta e estranhamente abstrata.
