Jafar Panahi recusa a catarse moral e desloca o suspense para o terreno dos gestos mínimos
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Um homem é sequestrado por pessoas que acreditam que ele foi o torturador responsável por seus traumas no regime iraniano. Enquanto os personagens tentam confirmar sua identidade, o filme transforma o suspense inicial em um dilema cada vez mais ambíguo e humano.
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O SUSPENSE CEDE LUGAR AO HUMANISMO
Desde os primeiros minutos, Foi Apenas um Acidente articula de maneira bastante precisa a sua questão moral central – a legitimidade ou não de empregar os mesmos métodos do inimigo como forma de vingança – e a insere dentro de uma estrutura de suspense relativamente clássica, ancorada na dúvida sobre a identidade do homem sequestrado.
Essa dupla engrenagem inicial, que combina dilema ético e investigação narrativa, organiza a experiência do espectador a partir de uma expectativa clara de revelação e de resolução.
Entretanto, o gesto mais significativo do filme talvez esteja justamente na recusa em oferecer uma resposta direta ou conclusiva a essa pergunta. Ao invés de conduzir o espectador a um veredito moral explícito, o filme lança mão de um progressivo deslocamento de registro.

À medida que a narrativa avança, o suspense vai sendo deliberadamente esvaziado, cedendo espaço a uma abordagem cada vez mais humanista, interessada menos em confirmar fatos objetivos e mais em observar como os personagens lidam, no presente, com a herança da violência que os marcou.
Nesse sentido, Jafar Panahi opta por abandonar a promessa de um clímax tradicional – aquele momento catártico em que a verdade viria à tona e reorganizaria retrospectivamente todo o filme – para investir em uma dramaturgia dos gestos mínimos.
A força moral da obra passa a residir, desse modo, em pequenas decisões cotidianas que carregam um peso ético desproporcional à sua aparente banalidade. A compra de doces no hospital ou a simples conversa com a filha do suposto torturador, conduzida sem qualquer traço de paternalismo ou superioridade moral, tornam-se ações decisivas justamente porque deslocam o olhar da abstração do “inimigo” para a concretude das relações humanas.
Panahi não responde frontalmente à pergunta que estrutura o filme, mas a contorna, semeando indícios de humanidade em situações nas quais seria mais fácil reduzir o outro a uma figura simbólica do mal.
Ao fazer isso, o filme parece sugerir que a verdadeira questão não é identificar com precisão o culpado, mas observar como a lógica da vingança tende a reproduzir os mesmos mecanismos de desumanização que ela supostamente pretende combater.
Ainda assim, essa estratégia encontra certos limites na parte final. Após as cenas no hospital, o filme parece tentar retornar a uma lógica de suspense que já havia sido, em grande medida, dissolvida.
A tentativa de reativar essa tensão narrativa não possui a mesma força dos momentos anteriores, justamente porque o filme já havia deslocado o seu centro de gravidade para outro lugar.
Nesse ponto, a retomada de um suspense mais convencional soa menos orgânica, como se entrasse em conflito com o percurso ético e formal que a obra vinha construindo até então.
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ESPAÇOS INSTÁVEIS E UMA ESTÉTICA DA APREENSÃO
Do ponto de vista estético, o filme demonstra um uso particularmente rigoroso dos espaços reais e das luzes práticas, elementos que contribuem decisivamente para a construção de uma atmosfera contínua de apreensão.
A encenação evita qualquer ornamentalismo excessivo e se ancora em uma materialidade quase documental dos ambientes, fazendo com que a tensão não surja de artifícios musicais ou de enquadramentos ostensivamente dramáticos, mas da própria relação instável entre corpos, espaços e situações.
Cada novo cenário introduzido – o deserto, o hospital, os acontecimentos na rua – impõe um reposicionamento físico e moral aos personagens, como se o espaço funcionasse sempre como um agente ativo do drama.

Esses deslocamentos não apenas renovam a tensão narrativa, mas mantêm o dilema ético central permanentemente em suspenso, impedindo que ele se cristalize em uma solução confortável ou previsível.
O filme parece insistir na ideia de que o contexto altera continuamente a natureza das decisões morais, tornando qualquer resposta definitiva necessariamente provisória.
Essa estratégia estética dialoga de maneira direta com a própria condição de clandestinidade da filmagem. A consciência de que o filme é realizado sob restrições materiais e políticas específicas reverbera na sua estética, reforçando uma sensação constante de instabilidade e risco nos ambientes que surgem ao longo da narrativa.
Mesmo nos raros momentos em que a obra se permite um grau maior de estilização – como nas composições no deserto, marcadas pela vastidão quase esvaziada do entorno, ou na presença da luz vermelha do carro no desfecho – esses elementos não funcionam como metáforas fechadas ou analogias ilustrativas.
Ao contrário, funcionam como pontos de condensação emocional que permanecem deliberadamente crus, ambíguos e abertos à interpretação. São imagens que intensificam a experiência sensível do filme sem jamais reduzir sua complexidade moral a signos fáceis ou simbologias evidentes.
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Nas cenas finais, Foi Apenas um Acidente recusa definitivamente a lógica da vingança como solução narrativa ou moral. Quando ela enfim se torna possível, já não carrega promessa de reparação, clímax ou catarse. Apenas revela o seu próprio esvaziamento.
Panahi encerra o filme deslocando o eixo da pergunta inicial: não se a vingança é justa ou legítima, mas o que resta quando ela deixa de parecer necessária.
Ao abdicar de qualquer fechamento redentor, o filme afirma uma posição profundamente humanista, na qual a resistência não se constrói pela repetição da violência, mas pela recusa em transformar o outro, mesmo o inimigo, em abstração.
