FRIEREN E A JORNADA PARA O ALÉM (1ª TEMPORADA): A Fantasia da Ausência

Frieren converte a jornada épica em memória e contemplação

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Após a derrota do Rei Demônio, a maga elfa imortal Frieren vê seus companheiros de aventura envelhecerem e morrerem, percebendo tarde demais o valor das conexões humanas que negligenciou. Para remediar esse arrependimento, ela embarca em uma nova jornada rumo ao extremo norte do continente, refazendo seus passos antigos enquanto aprende a valorizar os momentos efêmeros ao lado de novos aprendizes.

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O RITMO ÉPICO EM SUSPENSÃO

Existe algo de profundamente singular em Frieren e a Jornada para o Além que poderia ser descrito, em termos quase paradoxais, como se Yasujirō Ozu assumisse o papel de mestre em uma mesa de Dungeons & Dragons.

A estrutura clássica da fantasia épica – viagens, monstros, confrontos e missões – é reconfigurada a partir de uma sensibilidade que privilegia o tempo, o cotidiano e a observação silenciosa dos gestos mínimos.

A aventura deixa de ser um acúmulo de feitos heroicos e passa a se constituir como uma experiência de duração, marcada por elipses rigorosas e por uma imersão contínua em banalidades carregadas de sentido.

Nesse contexto, o anime funciona como uma espécie de “anti-jornada”. A narrativa se organiza a partir de longos intervalos de aparente estagnação, nos quais o deslocamento físico importa menos do que a sedimentação emocional dos acontecimentos.

Ainda assim, essa recusa do ritmo épico tradicional nunca é absoluta. Aos poucos, a série revela que está, sim, dialogando com a estrutura clássica da jornada do herói, mas faz isso instaurando uma tensão muito bem calibrada entre momentos contemplativos e explosões pontuais de ação.

O resultado é um equilíbrio entre introspecção e espetáculo em que cada ruptura do cotidiano adquire peso dramático justamente por emergir de um fluxo narrativo tão contido.

O verdadeiro apelo da obra, portanto, não reside na derrota de um grande mal ou na superação de um antagonista claramente definido. O eixo central da narrativa se desloca para uma percepção dilatada do humano, construída ao longo do tempo e da convivência.

O amadurecimento gradual de Fern, por exemplo, não se dá por grandes revelações ou traumas espetaculares, mas por pequenos ajustes de postura, escolhas morais discretas e um aprendizado que se manifesta quase sempre em silêncio.

Da mesma forma, o olhar de Frieren sobre o mundo é constantemente ressignificado pelas lembranças da jornada “oficial” já encerrada, um passado heroico que retorna menos como glória e mais como ausência, lacuna e reflexão tardia. As relações entre os personagens se constroem nesse intervalo entre o que foi vivido e o que só agora pode ser compreendido.

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A ADAPTAÇÃO COMO GESTO DE CONTENÇÃO FORMAL

Como leitor de uma parte considerável do mangá, eu tinha receio de que o anime não conseguisse traduzir a secura das elipses presentes nos painéis, muitas vezes abruptas e desprovidas de explicações.

No entanto, a adaptação encontra soluções precisas para esse desafio. A transposição para a animação se sustenta menos em efeitos narrativos ostensivos e mais em uma caracterização cuidadosa dos personagens e dos espaços que habitam.

A direção opta por uma decupagem discreta, de gestos contidos e enquadramentos que valorizam a duração do plano, permitindo que o espectador perceba o tempo passando sobre os corpos, as paisagens e as relações.

Essa sobriedade formal acaba funcionando como equivalente audiovisual das elipses do mangá, preservando sua força sem diluí-la em excessos explicativos.

Mesmo as cenas de ação seguem essa lógica de contenção e elegância. Quando a violência irrompe, ela nunca se transforma em espetáculo vazio ou em apelo sensacionalista.

Existe uma precisão notável na construção desses momentos que privilegiam clareza espacial, ritmo controlado e impacto direto, sem recorrer a exageros coreográficos.

Os primeiros confrontos com o grupo da Aura exemplificam bem essa abordagem. São embates concisos, visualmente rigorosos e dramaticamente eficientes, nos quais cada movimento parece necessário e calculado.

A ação, nesse sentido, não contradiz o tom contemplativo da obra, mas se integra a ele como mais uma dimensão dessa experiência narrativa marcada pela atenção ao detalhe e pelo respeito ao tempo.

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HIMMEL COMO CENTRO AUSENTE DA NARRATIVA

A romantização mais evidente da narrativa surge de maneira concentrada na figura de Himmel. Ele funciona como um centro ausente, um eixo moral e simbólico que organiza retrospectivamente toda a jornada.

Suas ações e lições retornam constantemente, recontadas quase como passagens de um evangelho, não no sentido dogmático, mas como um conjunto de exemplos que estruturam uma ética da convivência e do gesto cotidiano.

A morte de Himmel, longe de ser apenas um evento dramático, passa a funcionar como uma nova unidade de medida do tempo. É a partir dela que a duração da jornada de Frieren se reorganiza, como se cada passo posterior estivesse em diálogo com essa ausência fundadora.

Nesse arranjo simbólico, Himmel assume contornos de uma figura heroica quase messiânica, uma espécie de herói-Cristo que não se impõe pela excepcionalidade sobrenatural, mas pela insistência em certos valores humanos básicos.

Ele representa um herói paradoxalmente falível – alguém que sequer consegue erguer a espada da pedra, gesto que desmonta qualquer leitura tradicional do mito heroico – e que, justamente por isso, ganha densidade.

Sua grandeza não está em feitos impossíveis, mas na maneira como sua presença se inscreve na memória dos outros e se converte em parâmetro ético, em algo a ser continuamente almejado, mesmo após sua morte.

Essa dimensão metafísica do personagem não se constrói a partir de milagres ou poderes extraordinários, mas de uma relação muito particular com a realidade. Himmel é forjado dentro de uma espécie de metafísica do cotidiano na qual o sentido emerge do modo como se habita o mundo, se observa o outro e se responde às pequenas situações.

Em consequência, a própria noção de “magia do mundo” em Frieren e a Jornada para o Além é profundamente deslocada. Para Frieren, essa magia não se renova pelo acúmulo de habilidades ou pela expansão de seus poderes, mas por uma redescoberta gradual da realidade e da ordem natural que a cerca.

O fantástico, nesse sentido, é tratado de maneira quase banal. A relação de Frieren com a magia nunca é de deslumbramento ou transcendência grandiloquente. Pelo contrário, ela se inscreve no cotidiano como um instrumento entre outros, desprovido de aura mística excessiva.

O verdadeiro encantamento passa a residir na capacidade de perceber o mundo de forma renovada, de reconhecer o valor das coisas simples e das experiências compartilhadas.

Assim, o anime desloca o eixo do maravilhoso para o campo da percepção e da memória, sugerindo que a magia mais profunda não está nos superpoderes, mas na maneira como o tempo, a perda e o afeto reconfiguram o olhar sobre a realidade.