BUGONIA (2025): A Nitidez como Violência

O real hiperexposto e a lógica do grotesco em Bugonia

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Refilmagem do filme sul-coreano Save the Green Planet! (2003), Bugonia acompanha dois jovens obcecados por teorias da conspiração que sequestram a poderosa CEO de uma grande empresa, convencidos de que ela é uma alienígena com a intenção de destruir o planeta Terra.

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CLAREZA COMO ESTRATÉGIA DE ESTRANHAMENTO

Bugonia se organiza numa zona de interseção bastante precisa entre duas fases distintas da obra de Yorgos Lanthimos.

Por um lado, ele recupera o humor mais frontal, quase histriônico, que marca seus trabalhos mais recentes. Por outro, reinsere esse registro cômico dentro de uma arquitetura formal mais contida, próxima da secura procedural que estruturava um filme como O Lagosta (2015).

O resultado é uma obra que parece deliberadamente tensionar excessos performáticos e um controle rigoroso do ritmo, recusando tanto a fábula exuberante quanto o distanciamento puramente abstrato.

Nesse sentido, Bugonia se coloca quase como o inverso formal de Pobres Criaturas (2023). Se naquele filme a experiência era mediada por um barroco pop assumidamente estilizado, aqui Lanthimos opta por uma forma direta, dependente de uma clareza quase implacável da imagem.

A escolha pelo VistaVision não funciona como mero fetiche técnico, mas como eixo conceitual do projeto, já que a nitidez extrema não embeleza o mundo, tampouco o torna fantástico, mas intensifica a sensação de estranheza do próprio real.

Essa textura visual ultra nítida opera como um mecanismo de deslocamento. Os ambientes domésticos ocupados pelos primos, assim como a própria caracterização física e comportamental deles, adquirem um aspecto grotesco sem que o filme recorra a deformações ópticas ou a qualquer tipo de estilização evidente da fotografia.

O grotesco nasce, paradoxalmente, da ausência de distorção. Tudo é mostrado com precisão excessiva, como se a câmera insistisse em revelar mais do que o necessário.

A estilização, portanto, não se constrói por meio de artifícios expressionistas, mas a partir de um realismo hiperexposto. O VistaVision é usado para revelar demais – superfícies, objetos, rostos e espaços são apresentados com uma clareza tão absoluta que acabam perdendo qualquer traço de acolhimento humano.

O filme não tenta deformar os ambientes. Ao contrário, insiste em exibi-los por completo, como se a própria transparência fosse a fonte do desconforto.

A estranheza, nesse sentido, não emerge da sombra ou da sugestão, mas da luminosidade total e de um realismo saturado que transforma tanto os interiores domésticos quanto os espaços corporativos em paisagens clínicas, quase inumanas.

Cada cenário se impõe como um lugar funcional demais, legível demais, esvaziado de mistério, e justamente por isso inquietante.

É como se Lanthimos substituísse a estilização artificial e fantasiosa de Pobres Criaturas (2023) por um inventário minucioso e quase clínico do mundo material. Um catálogo de objetos, rostos e superfícies observados com uma frieza metódica.

Nesse gesto, o diretor parece deslocar sua crítica do campo da fábula para uma observação mais direta e perturbadora do cotidiano, fazendo da precisão visual não um convite à identificação, mas um instrumento de estranhamento radical.

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O ROSTO COMO EIXO DE GRAVIDADE DA ENCENAÇÃO

A primeira metade do filme apresenta um andamento mais arrastado, por vezes excessivamente dilatado, mas essa cadência funciona como um dispositivo de preparação.

Lanthimos parece interessado em construir um terreno de expectativa e desgaste que só encontra sua justificativa plena quando a personagem de Emma Stone passa a ocupar o centro do quadro de maneira mais incisiva, tanto do ponto de vista visual quanto performático.

O tempo inicial, aparentemente moroso, prepara o espectador para a irrupção de uma presença que reorganiza todo o filme ao seu redor.

Os closes em VistaVision desempenham um papel decisivo nesse processo. O rosto raspado da atriz, filmado com uma nitidez implacável, adquire uma escala monumental, tornando-se, pouco a pouco, um verdadeiro eixo de gravidade para a encenação.

A câmera não apenas registra esse rosto, mas o investe de uma força quase abstrata, fazendo dele um campo de tensões em vulnerabilidade e opacidade coexistem.

É difícil não reconhecer aí uma referência direta a A Paixão de Joana d’Arc (1928). A exposição extrema do rosto, simultaneamente frágil e impenetrável, evoca aquele regime de imagem em que o corpo se torna o lugar de uma experiência radical, atravessada por sofrimento, fé e resistência.

No entanto, Lanthimos esvazia deliberadamente a solenidade dessa herança. Ao deslocar essa iconografia para um registro absurdo e progressivamente delirante, ele cria um contraste calculado entre a gravidade quase sacra da imagem e o nonsense dramático que passa a contaminar as situações e os diálogos.

Essa tensão entre o sagrado e o grotesco se intensifica na segunda parte do filme, quando a transformação da personagem e sua gradual “animalização” assumem o centro da narrativa.

A performance de Stone passa então a operar menos no campo da psicologia e mais no da fisicalidade. Respiração, postura, ritmo dos movimentos e relação com o espaço tornam-se os principais vetores de sentido.

Existe, sem dúvida, uma leitura relativamente evidente nessa incorporação de uma lógica de dominação. A personagem assume o papel de uma espécie de CEO alfa, alguém que controla a cena, a narrativa e os demais personagens, impondo-se como centro de comando e de decisão.

Porém, o filme evita reduzir essa dinâmica a uma alegoria puramente social ou satírica. Por meio de pequenos gestos, enquadramentos precisos e elipses discretas, Lanthimos sugere que esse comportamento não é apenas aprendido ou performado, mas deriva de uma natureza fundamentalmente alienígena.

Mesmo que essa camada alegórica possa parecer, em certo nível, explícita demais, o diretor a resolve com uma clareza visual notavelmente instigante.

O deslocamento da personagem de um registro humano para outro quase animal é construído de forma gradual, por meio de microvariações de movimento, respiração e presença corporal.

Sequências como a fuga da ambulância sintetizam esse procedimento com grande eficácia, evidenciando como o filme aposta menos em explicações narrativas e mais na precisão do gesto e da encenação para produzir sentido.

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Bugonia se impõe como um gesto de depuração dentro da obra de Yorgos Lanthimos, substituindo o excesso ornamental pela exposição implacável do real.

A clareza extrema do VistaVision, a centralidade do rosto de Emma Stone e a ênfase na fisicalidade da performance constroem um cinema em que o estranhamento nasce da transparência absoluta.

Ao recusar a fábula exuberante e a alegoria confortável, o filme aposta na precisão do gesto e da encenação como forma de crítica, fazendo da nitidez visual um instrumento ativo de desconcerto.