O anime desacelera o caos de Fujimoto e transforma o banal em resistência
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Em um mundo infestado por criaturas demoníacas, Denji – um jovem pobre que trabalha caçando demônios ao lado de seu cão-motosserra Pochita – é traído e morto, mas renasce fundido à criatura. Transformado em um híbrido humano-demônio, ele passa a servir ao governo como arma estatal enquanto tenta descobrir um sentido para sua própria existência entre o desejo, a violência e a sobrevivência.
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UM NOVO RITMO
Apesar de encontrar resistência entre determinados nichos de fãs, a adaptação em anime de Chainsaw Man (2022) demonstra uma coragem estética ao se distanciar do ritmo frenético que caracteriza as publicações semanais da Shonen Jump.
Se o mangá de Tatsuki Fujimoto – especialmente em sua primeira parte, até o capítulo 97 – operava sob uma lógica industrial de aceleração narrativa, o anime dirigido por Ryū Nakayama opta por subverter essa compulsão.

O resultado é uma obra que, mesmo sacrificando parte da energia bruta e da histeria gráfica do original, encontra uma nova densidade emocional e um espaço autoral de contemplação.
No mangá, o caos de Fujimoto se confunde com a própria natureza do suporte. As viradas súbitas, a violência exacerbada e o humor imprevisível funcionam como combustão criativa dentro de uma engrenagem que exige clímax constante.
Em alguns momentos, essa vertigem narrativa parecia desperdiçar o potencial de certas situações dramáticas em nome de uma continuidade incessante.
O anime, ao desacelerar esse fluxo, não “domestica” o tom anárquico do material de origem (como acusam alguns), mas o reconduz para uma dimensão mais melancólica e introspectiva. É como se a adaptação conseguisse escavar no subtexto de Fujimoto uma desolação que estava apenas insinuada nas páginas do mangá.
Essa desaceleração implica, naturalmente, renúncias. A série perde a rusticidade e a energia bruta do traço de Fujimoto, aquela sensação de urgência que parece escapar do controle do próprio autor.

No entanto, em troca, oferece uma construção visual e sonora que potencializa o sensorial. Um cinema de animação que pensa a materialidade do corpo, do gesto e da textura.
O estúdio MAPPA investe em enquadramentos prolongados, gestos mínimos e silêncios que tornam o drama rarefeito, substituindo a exposição verbal por um olhar que privilegia o não dito. É nesse deslocamento que Chainsaw Man encontra seu verdadeiro poder. Não mais na velocidade, mas na suspensão.
A série entende que a brutalidade do mundo de Fujimoto não se manifesta apenas nas batalhas sangrentas, mas também nas pequenas resistências cotidianas, na fragilidade de um corpo que deseja existir.
Assim, o que poderia ser visto como uma limitação do anime em relação ao mangá torna-se, paradoxalmente, o seu gesto mais radical: transformar o caos em contemplação.
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DENJI E A EPIFANIA DO COTIDIANO
Se há um mérito evidente e inequívoco na adaptação de Chainsaw Man, ele reside na forma como o novo ritmo permite redimensionar a figura de Denji.
O protagonista, que no mangá muitas vezes se perdia na sucessão alucinada de batalhas e viradas narrativas, aqui se torna uma presença ainda mais trágica e melancólica.
A animação, ao reter o tempo e dar peso aos gestos, transforma a banalidade de suas ações em revelação. O contraste entre sua ingenuidade quase patológica e o mundo hostil que o cerca se torna, pela mediação audiovisual, ainda mais contundente.

Denji é um corpo submetido à máquina estatal, uma engrenagem de carne que caça demônios em troca da mera sobrevivência. Mas é também, paradoxalmente, um sujeito que resiste pela via do desejo mais elementar.
O humor grotesco de Fujimoto – feito de pulsões imediatas e desejos sexuais ingênuos – encontra, na abordagem mais contida do anime, uma espécie de lirismo degradado. Denji não busca transcendência, busca café, geleia, um toque. E, nessa redução do humano ao mínimo, há uma centelha metafísica.
Em certo sentido, Chainsaw Man é a história de um corpo que descobre, a cada ato de consumo ou contato, uma possibilidade de permanência. O café da manhã com Himeno, trivial e melancólico, torna-se uma epifania silenciosa.
Denji é uma figura quase lispectoriana nesse sentido. Alguém que vive a banalidade com intensidade ontológica, sem compreender racionalmente o abismo de onde essa experiência brota.

Denji é, afinal, uma espécie de Macabéa incel. Uma criatura ingênua, submissa às engrenagens sociais, que mal compreende o sistema que o oprime, mas que insiste em existir dentro dele. Sua resistência não se dá por heroísmo, mas por obstinação fisiológica.
O corpo que pertence ao Estado é o mesmo corpo que deseja. E esse desejo – humilde, vulgar, cotidiano – torna-se a única forma possível de afirmação diante da aniquilação.
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A FIGURA DE HIMENO
Outra consequência positiva dessa desaceleração é o novo espaço que ela concede aos coadjuvantes. Figuras que, no mangá, emergiam com força, mas também com a fugacidade típica do ritmo semanal.
No anime, personagens como Himeno, Aki e Power deixam de ser apenas agentes de ação ou catalisadores de eventos para se tornarem corpos dramáticos plenamente inseridos na mesma atmosfera de exaustão que define Denji.

Himeno, em especial, ganha uma dimensão trágica que no mangá se insinuava, mas raramente tinha tempo para se sedimentar. A direção de Nakayama e o trabalho de atuação de voz (especialmente pela delicadeza nas pausas e respirações) conferem à personagem uma fisicalidade ferida muito específica.
Sua presença é atravessada por um luto que não se resolve. Um peso mórbido que impregna cada gesto e tentativa de afeto. O trauma, que no papel aparecia entre rajadas e silêncios, aqui se torna matéria contínua, visível e palpável.
Essa ampliação do drama secundário contribui para o que se pode chamar de a “dimensão residual” do anime. Uma espécie de eco temático que reverbera em torno da ideia de viver sob um regime de opressão – física, emocional, existencial.
Se Denji encarna a sobrevivência bruta, Himeno encarna a perda constante, o corpo que já foi tomado por dentro, que já não luta, mas lamenta. O anime encontra nela um espelho do próprio universo de Chainsaw Man. Um mundo em que a sensibilidade humana é triturada pela engrenagem institucional, mas ainda assim deixa vestígios e resíduos de ternura.

Ao dar tempo para que essas figuras respirem, Chainsaw Man permite que o espectador perceba o tecido humano que o mangá sugeria. A violência continua presente, mas o foco se desloca para o antes e o depois. O silêncio, o corpo imóvel, o olhar que hesita.
Essa mudança formal é o que transforma a adaptação em algo mais do que uma simples transposição. Trata-se, na verdade, de uma reinterpretação afetiva. Uma leitura audiovisual do mesmo universo, que privilegia a melancolia em vez da histeria, o espaço em vez do corte, o gesto em vez do grito.
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A REINTERPRETAÇÃO DO GROTESCO
Esteticamente, a série mantém uma coerência notável entre a herança visual do mangá e suas próprias soluções cinematográficas.
Fujimoto já desenhava com um olhar essencialmente fílmico – abusando de ângulos inclinados, planos altos, deformações de grande angular e teleobjetivas que achatam a profundidade – e o anime preserva parte desse olhar, mesmo dentro de uma gramática mais controlada.

A decupagem da série é precisa, mas não perde o senso de estranhamento do original. A lente “impossível” de Fujimoto sobrevive, agora mediada por uma abordagem digital mais realista, mas ainda suficientemente deformada para transmitir o incômodo que estrutura o mundo de Chainsaw Man.
Mesmo com um ritmo mais contido, o anime também consegue reter algo da “sujeira” do mangá. Não tanto pela textura gráfica, mas pela violência física que se mantém como núcleo sensorial.
O sangue, os golpes, a brutalidade quase operística persistem, agora traduzidos num realismo que não reduz a intensidade, mas a reinscreve em outro registro, o do peso, da carne, da exaustão. Se Fujimoto destruía seus corpos no traço, Nakayama os desgasta no tempo.

É inegável que a adaptação rejeita a tese formal central do mangá – a de um desenho rude que encarna a precariedade de vidas em constante desintegração. Ainda assim, a série preserva o tema fundamental da obra: o corpo como território de dominação e resistência.
O corpo que pertence ao Estado, mas que insiste em desejar. O corpo que sofre, mas se ancora nos vícios materiais mínimos – a torrada, a geleia, o toque, o afeto – como forma de afirmar a própria existência.
Esse paradoxo, formulado de maneira quase política, é o coração pulsante de Chainsaw Man. O corpo não me pertence, mas minhas vontades ainda são minhas. É nesse gesto de afirmação mínima, nesse refúgio do desejo, que o anime encontra sua vitalidade.
