ANDREI TARKOVSKI: Filmografia comentada

Em seu livro Esculpir o Tempo, Andrei Tarkovski defende uma abordagem essencialmente realista do cinema. Para ele, o realismo já está implícito na natureza da linguagem cinematográfica, que deve ser respeitada a partir do olhar artístico de cada cineasta.

Na visão de Tarkovski, o papel do diretor não deve ser o de manipular a realidade em prol de motivações individualistas, mas o de usar o cinema para reter uma verdade implícita e engrandecedora do mundo.

Para isso, o artista nunca serve apenas a si próprio; ele responde a uma força sagrada acima dele, agindo como instrumento de uma ordem divina.

Apesar de seus filmes lidarem com temas metafísicos e oníricos, o cineasta sempre alcançava tais resultados conservando elementos concretos em cena, sem recorrer a meras simbologias limitadoras.

Uma imagem, no cinema de Tarkovski, nunca se restringe a um símbolo que faz alusão a um conceito pré-determinado. Ela evidencia elementos materiais em cena — a natureza, um rosto, uma pintura — que funcionam como formas de transfiguração para definições metafísicas.

Confira, a seguir, alguns comentários sobre os filmes de Andrei Tarkovski.

O ROLO COMPRESSOR E O VIOLINISTA (1961)

Mesmo sendo um filme em que Tarkovski ainda não havia definido plenamente os aspectos centrais de sua assinatura como diretor —algo que ele próprio afirma só ter ocorrido após A Infância de Ivan (1962) O Rolo Compressor e o Violinista (1961) é uma obra que passa longe de ser um mero exercício protocolar de conclusão de curso.

O apelo central nunca está na resolução da história ou na evidência de possíveis conflitos dramáticos, mas sim em uma ideia de nostalgia — o fato de o protagonista ser um garoto transforma a narrativa em uma espécie de memória marcante que ele levará para a vida — e de confidência entre duas figuras que se completam: o menino e a figura ausente do pai; o olhar inocente do primeiro, que se encanta com esse entorno urbano, e o olhar cansado do trabalhador, que se fascina pela curiosidade do menino.

Tudo isso é construído de forma implícita, a partir de ações e diálogos que, num primeiro momento, podem soar banais, mas que fazem completo sentido dentro da teoria realista que Tarkovski sempre defendeu.

Nesse sentido, o cinema nunca deveria manipular o real para tornar esses temas explícitos, mas sim encenar uma situação realista a partir de um olhar sensível que os revele. Como ele próprio diria: “conquistar a realidade mediante uma experiência subjetiva”.

Esteticamente, já há uma decupagem que, embora siga algumas convenções de maneira mais tradicional, demonstra um rigor nos enquadramentos que remete a uma concepção pictórica do quadro — especialmente na forma milimetricamente organizada com que certos elementos são dispostos nos planos abertos — além de movimentos de câmera muito bem calculados, que flutuam junto com os personagens e conservam um registro integral das cenas.

Mesmo quando há um jogo visual mais impositivo (como os espelhos na vitrine da loja no início, o reflexo da água no rosto dos dois personagens quando o garoto toca o violino, ou a demolição de um prédio em ruínas), tudo parte sempre de um elemento prático.

Essa estilização, que repensa os aspectos perceptivos da cena — algo que ele também irá desenvolver nos filmes posteriores — não é forçada por um simples “estilo poético”, mas construída como um novo olhar sobre o real.

Ainda que existam certos elementos líricos que, vez ou outra, soem um pouco premeditados, no geral tudo é muito bem integrado à naturalidade dos acontecimentos.

A INFÂNCIA DE IVAN (1962)

É interessante comparar A Infância de Ivan (1962) com outras obras modernas sobre a perda da inocência na infância, como Os Incompreendidos (1959), Crônica de um Menino Só (1965), os filmes dos anos 40 de Vittorio De Sica, entre outros.

Apesar de ser mais trágico e violento — por se tratar, também, de um filme de guerra — Tarkovski apresenta uma perspectiva metafísica que contrapõe os traumas, resiste a eles e ao estado do mundo como o percebemos.

É claro que o filme propõe um retrato desolador da guerra e do destino do personagem. Ele enfatiza essa realidade e desolação de modo muito objetivo. No entanto, todo elemento real, desde o início, é associado a um elemento de redenção por meio dos sonhos.

A sequência final é tão poderosa porque sugere que, embora o garoto não seja salvo em vida, sua alma se encontra na eternidade dos seus sonhos. A infância não foi perdida; é o personagem que vive como criança para sempre. Afinal de contas, o Reino d’Ele não é deste mundo.

Essa lógica foi bastante definidora em todos os outros filmes — o próprio Tarkovski não sabia se realmente seria cineasta antes de fazer este, e o enxergava como seu verdadeiro exame de qualificação — porque apresenta uma associação vital entre o acontecimento concreto em cena e um efeito transcendental, revelador de uma verdade espiritual (na perspectiva religiosa e de mundo do cineasta).

Mesmo o destino do protagonista, que se sacrifica em nome de uma crença ou obsessão, uma fé no sentido mais irrestrito, se tornaria comum em quase todos os outros longas do diretor. Em Esculpir o Tempo, ao criticar o homem moderno, Tarkovski afirma que “a verdadeira afirmação do eu só pode se expressar no sacrifício”.

A partir disso, todos os personagens passam a incorporar esse ideal. Não que sejam exemplos morais (longe disso — quase sempre são homens doentes que perderam um vínculo essencial com o mundo), mas ainda assim respondem a essa autonegação cristã que nasce como uma evidência natural da realidade. É a mesma evidência de uma moral metafísica que desencadeia uma luta interior no homem que Dostoiévski também trabalha em sua obra.

Em termos estéticos, o estilo mais barroco, com momentos que beiram o expressionismo, funciona muito bem na medida em que torna a própria realidade ambígua. Como se, em certos momentos, ela fosse um pesadelo real contrastado com os sonhos irreais do garoto.

Ainda assim, é uma abordagem que, em certo sentido, Tarkovski abandonaria posteriormente. Muito provavelmente porque é um estilo com certas imposições estéticas das quais, em seus escritos, ele demonstra uma relação ambígua.

Andrei Rublev (1966) já rejeita essa estilização das sombras e dos cenários, voltando-se para uma abordagem realista, com uma câmera mais distanciada, observadora — que dialoga de forma mais direta e integral com a teoria realista de cinema que o diretor defendeu em vida.

ANDREI RUBLEV (1966)

Andrei Rublev (1966) é o filme de Tarkovski que melhor dá conta da teoria realista que ele defende em Esculpir o Tempo.

O efeito poético nasce mais da observação singular dos acontecimentos do que de qualquer imposição lírica. Essa observação se torna igualmente poética, mas por meio de uma abordagem que nunca sugere símbolos ou outros elementos mediadores para a experiência sensível da obra.

Até os detalhes da terra e de outros elementos da natureza estão menos estilizados do que nos seus outros filmes. O preto e branco contribui muito nesse sentido, na medida em que reduz o volume dos elementos em quadro e confere à imagem um aspecto mais bidimensional. O próprio Tarkovski dizia que a imagem em preto e branco se aproximava mais da verdade psicológica e naturalista da arte.

O mais impressionante é como ele integra isso a uma experiência de santidade. Esse olhar singular do filme — o olhar que testemunha barbaridades na Rússia medieval e as ameaças dos tártaros — é, de alguma forma, o olhar humano de Rublev, que descobre o mundo e é profundamente afetado por ele.

Mesmo quando ele mergulha em um certo derrotismo, em que já não vê sentido na sua arte diante da realidade, é essa mesma realidade que o faz reencontrar a graça, quando se depara com o filho do fundidor de sinos.

Quando Rublev reconhece a arte desse outro personagem como uma dádiva de Deus, ele se reconecta com o sentido criador e sagrado da própria arte. A realidade concreta do mundo é capaz de desiludir o personagem como também de santificá-lo.

Outro ponto interessante é que, apesar de ser um filme sobre uma figura histórica e de conter até mesmo uma caracterização épica em certos momentos, Tarkovski consegue “banalizar” toda a experiência do personagem no sentido de torná-la humana e palpável.

Para alcançar essa intimidade com o personagem, e mesmo para testemunhar aspectos de sua vida interior, há um processo, presente desde o início do filme, que torna a presença de Rublev trivial. Nesse sentido, a experiência do filme concretiza a experiência de humildade e autonegação do santo.

Mesmo os estímulos simultâneos entre os elementos da cena, algo que Tarkovski trabalha com intensidade em outros filmes, aqui são minimizados. Há uma condição relativamente ascética na forma do filme, que remete a Robert Bresson ao atenuar os elementos sensoriais da obra, enfatizando tanto o contato com a realidade crua quanto a crise dos personagens diante do silêncio de Deus — ainda mais se pensarmos em Diário de um Pároco de Aldeia (1951).

SOLARIS (1972)

Em termos temáticos, Solaris (1972) é quase o oposto de Andrei Rublev (1966).

Enquanto Andrei Rublev (1966) é um filme ambientado na Rússia medieval, sobre a presença natural de Deus mesmo na mais terrível das realidades, Solaris (1972) se passa em um futuro onde Deus é substituído pelo oceano de um outro planeta, uma entidade que responde aos desejos individualistas e materialistas da alma humana por meio de um processo que trai a ordem natural.

Tarkovski transforma a nave espacial em algo próximo de um purgatório: um ambiente que evidencia a dor que precisa ser superada, ao mesmo tempo que testa seus habitantes com diversas tentações. Dentro dessa lógica materialista, a presença da água assume agora uma caracterização muito mais sombria, quase infernal.

Não vejo muita lógica nesse discurso de que o filme seria um “anti-2001”, de Stanley Kubrick — pelo menos não além do contexto de uma rivalidade entre EUA e URSS. Apesar de adotarem escolhas formais distintas, Kubrick também encara seu filme como uma jornada da percepção, que se sustenta pelas próprias declarações formais, sem tentar racionalizar tudo. Não vejo 2001 como um filme anti-espiritual ou algo do tipo.

Mas, com certeza, Solaris (1972) é a ficção científica mais anti-Nolan que existe. Tudo está além de qualquer tentativa de sistematização ou de uma estrutura racional de compreensão do desconhecido — algo que o Nolan, em certa medida, tenta trabalhar em Interestelar (2014).

Na verdade, o maior problema de Interestelar (2014) é como Nolan é incapaz de integrar qualquer apelo metafísico ao apelo dramático. Tudo funciona em um paralelo muito forçado. Já Tarkovski, aqui, faz isso com maestria: não existe distinção entre os mistérios das aparições e os traumas e dores de Kris.

Acho que, na maior parte do tempo, ele resolve bem as limitações dos cenários da estação espacial, principalmente na forma como os cenários funcionam como um ambiente de isolamento e alienação. Mas também sinto que isso limita um pouco a decupagem e os possíveis estímulos das cenas (o próprio Tarkovski já afirmou que o ideal teria sido adaptar o livro sem essa reconstituição).

É interessante também como, dado o tema materialista e as tentações às quais Kris se entrega (ou das quais ele não consegue escapar?), o destino do personagem soa mais como uma condenação do que uma redenção. Algo que o diferencia do final de outros filmes de Tarkovski, que, mesmo com conclusões trágicas, sugerem uma possível redenção do protagonista.

O ESPELHO (1975)

O Espelho (1975) é o filme mais radical de Tarkovski e, na minha opinião, o melhor, porque a lógica do sonho e da memória deixa de ser mera referência ou associação e se transforma na própria estrutura da obra.

Cada sequência é um fragmento que funciona de modo isolado, mas também se conecta com o restante e se espelha por meio de figuras e elementos específicos: a mãe e a esposa são interpretadas pela mesma atriz; o filho do narrador e o narrador aos 12 anos são vividos pelo mesmo garoto; e a própria presença do narrador é incorporada pela câmera, que observa o entorno e reage a ele — protagonista e “câmera-entidade” tornam-se reflexos um do outro.

É um filme que incorpora os métodos dos trabalhos anteriores — os sonhos, a associação com a memória, a câmera como entidade observadora, a história da Rússia como um tema envolvendo lembrança e perda — numa espécie de experiência que se volta sobre si mesma.

Ainda assim, ele preserva seu método realista na maneira de filmar cada fragmento. É, inclusive, um dos filmes que melhor trabalha certas sutilezas nesse sentido.

No início, por exemplo, quando o personagem de Anatoliy Solonitsyn está indo embora após conversar com a personagem da mãe, junto à cerca, há uma rajada de vento e, só então, ele volta a olhar para ela. Um aspecto naturalista que é preservado em seus mínimos detalhes e gera um efeito dramático e poético singular.

Os planos-sequências — especialmente os mais rigorosos, que se passam na infância do narrador — não apenas representam muito bem a ideia de “pressão do tempo” descrita por Tarkovski em Esculpir o Tempo (o “tempo interno” do plano que determina todo o ritmo da obra), como também retêm uma impressão de múltiplas temporalidades, como uma espécie de concentração de camadas de tempo implícitas numa mesma imagem.

Nesses flashbacks da infância, o fato de os planos-sequências atravessarem portas ou ambientes escuros reforça ainda mais a ideia de frestas no tempo-espaço, por onde o discurso da obra se infiltra.

Quando Tarkovski modifica a cor e usa o slow motion em certos momentos — nos quais não fica claro se a cena é um sonho ou não — é como se a câmera adentrasse uma fresta entre esses regimes estabelecidos (sonho e passado), e permanecesse em um estado de suspensão nessa outra realidade.

STALKER (1979)

Stalker (1979) é um filme em que Tarkovski explora algumas ideias de Solaris (1972), mas com mais liberdade e trabalhando com escolhas formais que, assim como em Andrei Rublev (1966) , reforçam sua abordagem realista de modo mais direto.

Apesar de apresentar elementos possivelmente mais simbólicos do que Andrei Rublev (1966) , tudo em Stalker (1979) surge da realidade concreta da cena. Além disso, é um filme que não faz uso de flashbacks ou sequências de sonho. Ele apenas segue a jornada dos personagens de forma linear, em uma reconstituição naturalista dos cenários propostos pela premissa.

Não há nenhuma distorção temporal impondo alguma impressão ou redefinindo o drama. O filme inteiro é o registro direto da jornada. A evidência de outras temporalidades é sugerida apenas no estrato de tempo que os cenários e ambientes revelam — na sedimentação da memória que existe nas paredes, nos resíduos do solo e nos objetos que surgem no caminho.

O mais interessante é como Tarkovski conserva os elementos formais de uma abordagem realista (a câmera distante e observadora, a montagem pouco impositiva) para filmar duas realidades ambíguas.

As cenas em sépia monocromático mostram um mundo moderno de aparência pós-apocalíptica, dessacralizado e antinatural (a ausência de cor funciona mais como uma caracterização nesse sentido do que como uma escolha maneirista). Já as cenas coloridas sugerem a presença de um espaço místico, dominado pela Zona.

Essas cenas na Zona não representam exatamente o mundo natural, mas uma espécie de fissura esotérica, controlada por uma entidade superior. O caminho até o Quarto — o local onde os desejos inconscientes são realizados — é específico e cuidadoso, como uma liturgia ou uma peregrinação religiosa, que só pode ser conduzida por alguém de fé: o Stalker.

É um filme que inventa uma prática litúrgica a partir de uma prática cotidiana e real (caminhar, perseguir) nessa busca dos personagens pelo desconhecido. E, mais do que isso, registra essa prática religiosa com uma fidelidade ao tempo e ao espaço que é única neste filme.

Essa fidelidade ao tempo dilatado e a um espaço de cena preservado por enquadramentos amplos deriva diretamente da forma ascética e realista de Andrei Rublev (1966). Logo, em termos de fidelidade ao método que Tarkovski descreve em seu livro, esses dois filmes seriam os mais exemplares.

NOSTALGIA (1983)

A melhor coisa de Nostalgia (1983) é como a possível perda de identidade do protagonista se transforma em uma experiência assumida de desorientação. É como se, longe da terra natal, ele perdesse toda a orientação espiritual e metafísica que guiava sua vida.

Mesmo visualmente, é o filme mais sombrio e escuro de Tarkovski. As cenas em cores possuem pouca saturação, e a fotografia, no geral, tem um aspecto ocre. Além disso, os espaços que o protagonista percorre funcionam quase como um limbo — ambientes nebulosos e ruínas que, apesar de dispararem os flashbacks, também possuem uma identidade estranha a ele.

Os flashbacks são filmados de maneira bem mais distanciada do que em O Espelho (1975). A câmera nunca mostra muitos detalhes da pequena casa de campo na Rússia, e os familiares são espectros inalcançáveis. A própria miniatura da casa sugere a ideia de uma espécie de simulacro, de um ambiente que, agora, é só uma projeção fantasmagórica.

Ainda nessa questão visual, acho que o filme trabalha bem com a falta de identidade dos ambientes (ou pelo menos com alguns questionamentos envolvendo essa ideia), mas também acho Tarkovski menos criativo na decupagem do que em outros filmes.

Em algumas cenas, ele repete a mesma solução formal — como, por exemplo, quando usa planos abertos em um ângulo frontal que torna a imagem bidimensional enquanto a câmera se aproxima ou se afasta da ação — sem intuir um aspecto específico de cada situação.

Entendo a intenção por trás do personagem de Domenico e até acho que ele funciona dentro do possível discurso sobre uma falência espiritual de ordem coletiva que Tarkovski critica. Mas, no final, suas ações parecem um pouco aleatórias, e o discurso, talvez, um tanto óbvio.

Gosto muito da cena final com a vela. O plano-sequência de quase dez minutos, em que o protagonista tenta atravessar toda a extensão da piscina sem deixar a vela apagar, dialoga diretamente com a essência do cinema de Tarkovski: mostrar um elemento religioso e ritualístico a partir de uma abordagem realista.

É como se esse pequeno ato, herdado de Domenico na tentativa de restaurar um senso de ordem, reconectasse o personagem a uma presença transcendente da qual ele sente falta, mas que nunca se evidencia para além de suas ações práticas.

A última imagem propriamente — a casa russa dentro da catedral italiana — tem uma artificialidade muito interessante que, novamente, contrasta bastante com O Espelho (1975). O filme assume essa ideia explícita de um imaginário distorcido, dado o exílio do homem.

O SACRIFÍCIO (1986)

A ideia de sacrifício e da autonegação cristã, virtudes presentes em praticamente todos os filmes do diretor, é levada às últimas consequências neste último longa: o protagonista promete abrir mão de tudo, inclusive do filho que ama mais do que qualquer outra pessoa, para salvar o mundo.

É interessante como todos os atos de fé são retratados como atos de loucura. Ou, em certa medida, como gestos que escapam à lógica da dinâmica moderna. No final, em um último ato de purificação e desprendimento material, ao queimar a própria casa, o protagonista é literalmente tratado como um louco e levado em uma ambulância.

Enquanto a dinâmica familiar, formada por neuroses e ressentimentos, evidenciada em alguns diálogos e até na relação dos personagens com o médico, é normalizada, a fé é retratada como delírio.

E mesmo quando o filme aborda a fé ou o aspecto espiritual de maneira mais direta, isso se dá por uma via dogmática ambígua, especialmente pela forma como evoca o divino na figura mariana a partir de uma perspectiva pagã e erótica — o homem deve se deitar com Maria, a bruxa, para salvar a humanidade.

Levando em conta que a tradição ortodoxa tende a valorizar mais a corporeidade e o êxtase do que a tradição católica romana, essa solução até pode dialogar, de certa forma, com as crenças de Tarkovski. Mas também pode ser entendida como uma alternativa para se pensar uma reorientação do mundo para uma ordem natural por meio de certo sincretismo.

Esteticamente, a abordagem rígida da decupagem assume, agora, uma dinâmica mais teatral pelo modo como os atores são organizados nos cenários e locações. Todo o primeiro ato dentro da casa é filmado em um único ambiente que remete diretamente a um palco com um trabalho de blocagem bastante explícito com o elenco.

Até o fato de os planos-sequências que abrem e fecham o filme — Alexander com o filho e Alexander incendiando a casa — serem filmados exclusivamente a partir de um eixo paralelo (a câmera nunca abandona o travelling) remete a uma lógica de movimentação teatral.

Diferente dos outros filmes, em que a câmera tinha muito mais liberdade sobre o ambiente, adentrando arestas, frestas e se movimentando de forma mais variada, aqui há a sensação de um ponto de vista pré-definido que contempla aquela realidade apenas até certo ponto.

O diretor, de algum modo, se coloca muito mais como um observador do que como alguém totalmente familiarizado com o que está em cena. É o oposto da relação íntima da câmera com os elementos em O Espelho (1975).

Talvez Sven Nykvist e todo o contexto da produção na Suécia tenham influenciado o filme nesse sentido, já que essas escolhas formais remetem aos filmes de Bergman. Mas é provável que isso também seja um efeito do exílio em que Tarkovski se encontrava.

Mesmo realizando um novo filme e se mantendo produtivo dentro do possível, nada se aproxima da percepção de intimidade com a realidade presente nos filmes anteriores a Nostalgia (1983) . Essa mudança forçada da URSS afetou profundamente seu cinema.

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