As imagens artificiais de Luca Guadagnino colocam seus personagens em um limite físico e emocional
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A ex-jogadora de tênis Tashi, vivida por Zendaya, é treinadora de seu marido Art, um campeão do esporte. Para tentar livrá-lo de uma série de derrotas, ela o inscreve em um torneio challenger, onde ele deve vencer um antigo amigo e atual rival.
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A HIPERCONSTRUÇÃO DAS IMAGENS
Rivais (2024) é o filme em que Luca Guadagnino melhor equilibra um apelo orgânico dos corpos em cena e tudo o que exala deles (suor, sexo, esforço físico, humilhação) com uma manipulação artificial e hiperconstruída das imagens (a veia maneirista que ele nunca abandona).
Talvez a grande diferença do maneirismo desse filme com o maneirismo de alguns dos seus filmes anteriores é que certos movimentos de câmera e escolhas estéticas que antes entravam de modo mais natural nas cenas — como, por exemplo, o plano sequência acompanhando Tilda Swinton descendo as escadas em Um Sonho de Amor (2009) —, agora funcionam como movimentos aberrantes de trajetória absolutamente explícita e marcada.
Se o maneirismo de alguns filmes anteriores funcionava como um virtuosismo elegante — a câmera até realizava ações desafiadoras na sua relação com os cenários, mas deslizava suavemente por eles —, aqui o diretor assume muito mais essa reelaboração artificial das imagens e esses movimentos antinaturais por parte do dispositivo que filma.
Os movimentos bruscos de aproximação, o slow motion exagerado, os closes nas superfícies dos corpos, todo tipo de plano fisicamente “impossível” (ou, pelo menos, fora do comum) é muito mais marcado e sentido pelo espectador.
Como se a câmera fosse uma entidade maníaca viciada naquelas formas humanas e tentasse possuir elas a qualquer custo. Não é por menos que o ápice disso tudo acontece quando a câmera de fato se encarna na bola de tênis.
Um momento que pode soar como um simples gimmick para algumas pessoas (e eu concordaria com isso se todo o filme fosse filmado de modo comum e só a conclusão fosse diferente), mas a cena final é, em todos os sentidos, o ápice formal desse movimento aberrante e antinatural que a decupagem já vinha construindo.
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OS LIMITES DO CORPO E DA APARÊNCIA
A montagem e o uso da música também respondem a uma lógica agressiva, explícita e descontínua.
A montagem até pode cair em alguns artifícios fáceis nesse sentido, principalmente quando repete uma mesma ideia de raccord em elipses diferentes (a bola sendo rebatida funcionando como o plano de corte mais comum nesse sentido), mas não é nada que afeta a boa descontinuidade de tudo.
Essa descontinuidade que sempre frustra o espectador ao cortar as cenas em momentos decisivos ou deixar certas construções dramáticas pela metade e essa abordagem antinatural da câmera fazem bastante sentido dentro da temática doentia do filme.
Rivais é quase um body horror sobre uma obsessão com a ideia de performar e sobre a falta de significado concreto que essa obsessão traz.
Performar tanto no sentido esportivo, uma ação usada para colocar o corpo num limite físico que reflete um limite emocional — e a purgação vem, muitas vezes, na forma das lesões e machucados constantes —, como também performar no sentido de que os personagens nunca são claros sobre seus afetos e êxtases.
Nunca conseguimos saber até que ponto os personagens estão sendo sinceros. Tudo é uma imagem, um corpo performando que vale pela sua aparência e pelo seu desempenho imediato. Essa potência do falso é também uma potência do descontínuo.
Até a maneira como a estrutura do filme rejeita desenvolver a trama até certo ponto e se basta nessas tensões imediatas que nunca se definem por completo dialoga com a ideia de que tudo é uma performance para o outro.
Um constante jogo de bate e volta em que, ao mesmo tempo que todos são agressivos e egocêntricos, nunca podem revelar totalmente suas intenções; devem jogar e, simultaneamente, esconder o jogo, como em qualquer esporte de competição.
Talvez apenas o personagem de Mike Faist tenha algum pingo de inocência. Não que seja ingênuo (ele mesmo atiça propositalmente esse jogo em certos momentos), mas é o único que revela um desgaste dos jogos físicos e afetivos e, consequentemente, revela uma humanidade.
Ele é, talvez, o único personagem de fato rohmeriano do triângulo amoroso, já que não se entrega totalmente a esses desvios pelo simples êxtase e busca um sentido em aspectos mais naturais da vida.
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A PELÍCULA 35 MM COMO UM VÍNCULO COM O REAL
É interessante como, apesar dessa hiperconstrução e artificialismo da composição e movimento da imagem, o diretor sempre respeita a textura da película 35 mm.
Para além de poucos planos em que a luz incide diretamente na lente e o branco estourado da película cria um efeito difuso que torna a imagem relativamente abstrata, o cineasta estabelece a textura do 35 mm como uma espécie de âncora do real.
Mesmo que tudo seja mediado por esses movimentos e planos aberrantes, existe um pacto com a textura e a luz realista da película (em contraste com uma ideia de luz clínica do digital) que conserva os personagens em mundo muito maior do que eles.
Essa concepção representa, por exemplo, o oposto da concepção estética dos filmes de David Fincher em que o mundo mediado pela câmera digital é, também, um mundo falso e frágil.
Nesse ponto, Guadagnino apresenta um ótimo contraste entre suas composições artificiais e um mundo dramático que se funda em resoluções reais que também evidencia certa fragilidade de seus personagens. Todos estão acostumados a performar, mas no fim do dia devem encarar a realidade de seus jogos e ações.