MENUS-PLAISIRS – LES TROISGROS (2023): Da natureza ao capital

Frederick Wiseman evidencia a transformação de elementos da natureza em experiências culinárias de alto valor

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O documentário mostra a rotina profissional da família Troisgros, formada por chefs que mantêm três restaurantes de prestígio na França.

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A MAIS-VALIA DOS INGREDIENTES

Menus-plaisirs – Les Troisgros é um daqueles casos em que o processo e a abordagem de Frederick Wiseman revelam uma espécie de paradoxo essencial do seu tema.

Enquanto existe uma delicadeza na elaboração dos pratos culinários que o filme mostra e mesmo um senso artístico sendo definido e redefinido pelos chefs, também existe uma ação rotineira, mecânica e extremamente rápida por parte dos cozinheiros.

Essencialmente, é um filme sobre os estágios da matéria-prima da cozinha e sobre as suas relações de valor. O fato dele intercalar o processo na cozinha com os processos na natureza quando mostra rebanhos, plantações e todo tipo de cultivo também remete a essa ideia de uma mais-valia dos ingredientes.

Os cozinheiros estão sempre remodelando a natureza a partir de uma reestruturação contínua dos alimentos. Quando um prato minimalista é finalmente montado, pouco restou de vida natural mas, inversamente, o seu valor atinge um ápice.

O modo como Wiseman faz questão de mostrar uma inadequação dos chefs nos ambientes de cultivo e nas fazendas reforça esse lado

Eles até se mostram curiosos sobre o processo desses lugares, mas é algo que soa mais como uma conversa simpática com os fazendeiros do que um interesse de fato. A única exceção talvez seja o momento à Eric Rohmer dos cozinheiros, e não chefs, indo colher flores.

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O DISCURSO INDIRETO DO COTIDIANO

Essa inadequação dos chefs (e da sua arte) com a natureza não é uma crítica tão explícita por parte do diretor, mas como é de praxe de Wiseman, o seu tom crítico funciona muito mais na dilatação dos acontecimentos e na repetição de algumas ações do que em um discurso direto.

É um discurso indireto do cotidiano e, em última análise, da vida acontecendo. Algo que só um filme de 4 horas sobre as mesmas ações consegue dar conta.

É interessante também como, ao enfatizar essa ideia das mãos remodelando a natureza na cozinha, o diretor constrói cenas que remetem ao cinema de Robert Bresson. Assim como em vários filmes de Bresson, o que guia a transformação e o que conecta os ambientes são ações das mãos e planos detalhes das mãos

É uma lógica de tatilidade que, acima de tudo, funciona como o grande mediador dessa ação de tirar o valor da natureza e construir o sentido do capital.

O fato do processo de Wiseman não buscar um aspecto pessoal explícito ou óbvio dos participantes transforma vários deles em mãos que se movem sozinhas e respondem a esse processo. São, de fato, modelos de cozinheiros de restaurantes de prestígio, um deles com 3 estrelas Michelin.

Não é por menos que o filme possui pouquíssimos closes de pessoas, mas vários planos detalhes de mãos. Assim como nas obras de Bresson, o interesse está mais nos atos essenciais do processo do que nas pessoas que o induzem propriamente. É um cinema do fenômeno e não do drama.

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A INTERAÇÃO ENTRE OS ATORES SOCIAIS

Nesse sentido de desdramatização, até as conversas e diálogos nas mesas soam um pouco como uma atração que está inclusa no pacote dos clientes.

Em alguns casos específicos, Michel Troisgros parece estar realmente à vontade conversando com velhos amigos (como, por exemplo, quando conversa com o casal que produz vinhos no final do filme), mas na maioria das vezes existe uma cordialidade que remete a uma relação profissional entre clientes de luxo e chef, apreciadores da obra e artista.

Existe uma preocupação individualizada por cada cliente (seus nomes e particularidades são repassados entre os funcionários que servem e os próprios chefs precisam fazer modificações dependendo do gosto ou alergia de cada um), mas é algo que responde mais a uma experiência exclusiva capitalista do que a uma relação dramática espontânea.

Também como é de praxe de Wiseman, a repetição revela um ciclo que, em um primeiro momento apresenta uma naturalidade do meio em questão para, depois, retornar para a evidência de um aspecto mecânico que está implícito em qualquer realidade.

Assim como Bresson, Wiseman sabe que só se atinge a essência das coisas quando elas se revelam na sua automatização desnuda.