Berserk (1997) intercala apelos íntimos e épicos para construir uma narrativa violenta e melancólica
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Berserk (1997) é uma série de anime baseada em um arco dramático do mangá de mesmo nome escrito e ilustrado por Kentaro Miura.
Com um narrativa que se passa em um mundo inspirado na Europa medieval, o anime é focado na figura de Guts, um guerreiro solitário que se envolve com um grupo de mercenários chamado Bando do Falcão, liderado por Griffith.
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O ÉPICO E O ÍNTIMO
Berserk (1997) me remete muito a uma ideia de filme de guerra no modo em que dá a devida atenção tanto para o aspecto violento e para as batalhas, como também para a maneira que isso afeta a dimensão íntima dos personagens e até mesmo a percepção deles da realidade.
São duas dimensões (a épica e a íntima, a ação e o drama) que funcionam muito bem de modo isolado durante a série, principalmente pela forma como esse arco explora apelos bem clássicos dessas abordagens, mas também dependem diretamente de uma relação muito próxima para a narrativa evoluir.
A estrutura de toda a história é uma espécie de jogo de xadrez literal e mental, já que a cada episódio vários elementos podem ser redefinidos tanto pelos seus aspectos práticos como psicológicos.
É interessante como, em alguns momentos de ápice das relações entre os personagens, a série junta essas duas dimensões de maneira mais melodramática.
Depois de Guts reencontrar Casca após aquele ano longe do grupo do Bando do Falcão, por exemplo, ela vai para cima dele com a espada ao invés de conversar ou tentar resolver tudo civilizadamente, como que querendo se utilizar da violência (a única linguagem que ele conhece) para resolver o aspecto íntimo.
A série, como um todo, já sublima os sentimentos dos seus personagens em atos violentos de modo geral, mas nessa cena com a Casca, isso é colocado de modo bem mais sentimental e simbólico. A violência é a purgação final antes do amor. No caso deles, literalmente, levando em conta as cenas seguintes.
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O IMPACTO PICTÓRICO DA AÇÃO
Em relação às cenas de ação, é provavelmente o anime que eu assisti que melhor explora os quadros estáticos nos momentos de clímax.
Me lembra a lógica de uma ação mais “imóvel” e posada de um diretor como Zack Snyder. Uma ação que até vai explorar uma certa velocidade e tensão nos golpes, mas que tira o seu principal impacto da postura que os elementos do quadro adquirem quando ficam suspensos no tempo por alguns segundos.
Isso é algo que, provavelmente, já deve partir das ideias pictóricas de Kentaro Miura, mas que aqui é muito bem adaptado quando integra uma noção de tempo e ritmo. Ainda que a decupagem dos quadros no mangá seja bem complexa, ela também possui quadros chaves bem limpos que reiteram essa ideia.
O que até pode remeter a uma convenção de mangás e animes de modo geral, mas a série, talvez para além da média, prioriza poucos elementos em cena que são sempre abordados de modo grandioso. Isso potencializa muito um caráter épico do corpo e das poses desses corpos.
Em algumas cenas mais dramáticas, existe uma variação de ritmos e um minimalismo nas ações que ilustra isso bem. Em certos momentos, como quando Guts mata Julius, o protagonista tira a espada das costas para golpear o adversário e, quase que instantaneamente, o sangue do Julius começa a jorrar.
É como se a decupagem se focasse na objetividade de alguns gestos simbólicos e pulasse algumas partes de uma evolução natural das ações para tornar esses gestos essenciais mais poderosos e expressivos. Mesmo que o mangá já priorizasse isso, propor o tempo certo de cada coisa na montagem das cenas do anime requer um rigor bem específico.
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O SOBRENATURAL COMO UM ELEMENTO CONCRETO
Outro elemento bastante marcante de Berserk (1997) é o modo como a realidade sobrenatural de alguns personagens e ambientes é abordada como um aspecto concreto. No episódio em que Guts e Griffith lutam contra Zodd isso já fica claro, mas o ápice dessa relação é toda a sequência final do eclipse.
Mesmo que dentro de um ambiente teoricamente sobrenatural, a lógica da violência material, nessa sequência final, ainda se conserva. É uma violência, em todo caso, inútil, já que não importa o quanto os guerreiros lutem, eles serão devorados por aqueles seres ou por aquele contexto, mas é interessante como a violência se transforma em uma resistência da realidade perante esse fim iminente que a fantasia os condena.
O modo como Guts, principalmente, luta de modo obsessivo sem se importar exatamente com uma saída é bem inspirador. É claro que as suas habilidades humanas são superestimadas em termos lógicos e verossímeis, mas ainda assim a cena evidencia relações muito interessante entre a dimensão concreta e a fantasiosa
Algo que me lembra até alguns grandes momentos dos filmes de José Mojica Marins em que ele mostra um ambiente sobrenatural que segue uma lógica realista. O final de Exorcismo Negro (1974), especialmente, explora isso muito bem.
Esse final também torna mais gráfico aspectos essenciais da trama que o anime já trabalhava implicitamente. Tanto quando trata do sentimento de inferioridade de Guts em relação ao Griffith, que renasce ao moldes de um 2001 – Uma Odisseia No Espaço (1968) das profundezas, como no triângulo amoroso entre eles e a Casca.
Em uma aproximação com Evangelion (1995 – 1996), é como um Terceiro Impacto que externaliza de modo inconclusivo as neuroses e medos sombrios dos personagens. Ou que pelo menos acontece devido a esses sentimentos que foram cozinhando por todo o arco dramático e ali se materializam do modo mais visceral possível quando encontram a mediação sombria oportuna na presença do Behelit.