Leos Carax constrói uma fábula pessoal
sobre a perda da inocência
Leos Carax é um diretor que equilibra muito bem uma visão atormentada do mundo com uma abordagem poética. Seus personagens, mesmo que passando por sofrimentos, sempre nos revelam um lado lírico do amor.
Através de uma visão sombria do mundo, o francês construiu um estilo próprio que assume uma relação estilizada com a realidade e se apropria de modo muito particular – por vezes excêntrico – de figuras e gêneros do cinema.
No musical Annette, Adam Driver vive um comediante que deve cuidar de sua filha pequena após a morte de sua esposa, a cantora Ann, vivida por Marion Cotillard.
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O LADO ESSENCIAL DO ESPETÁCULO
Desde o início, fica muito claro que não existem momentos banais no filme. Tudo é um pequeno acontecimento operístico. Do modo como os amantes vivem em casa à forma como o personagem de Driver se prepara para suas apresentações em um camarim, temos a impressão que todos estão, constantemente, em um palco.
O show business não é apenas um tema corrente da premissa de Annette, mas funciona como uma temática que incorpora todos os aspectos dessa história. O diretor, em suas cenas, faz questão de assumir um tom artificial que sempre nos remete a uma ideia de espetáculo.
Um espetáculo que, apesar de assumir seu lado dramático exagerado, é construído por escolhas estilísticas minimalistas. Carax até mesmo recusa um uso virtuoso óbvio da fotografia e se foca em elementos pontuais do espaço (uma contraluz exagerada, paredes que projetam imagens) e nas performances artificiais do elenco (o que inclui, invariavelmente, os momentos musicais) para causar esse efeito antinatural.
Diferente de algumas de suas obras anteriores, como Sangue Ruim (1986), que investiam em uma fotografia com composições mais complexas e um desenho de luz muito específico, Annette possui um aspecto mais cru nesse sentido.
Existe uma busca pelo espetáculo que é muito mais essencial, quase primitiva, do que épica. Mesmo a sua decupagem mais econômica, que se utiliza de muitos planos abertos e, em certos casos, takes longos, reforça esse aspecto.
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A IMPORTÂNCIA DA DIMENSÃO FÍSICA
Por seguir essa lógica mais crua e minimalista com seus espaços, a obra acaba dando mais ênfase para a presença física dos personagens do que para uma estilização mais direta da imagem. Ou, pelo menos, constrói a fabulação das suas situações muito mais através de uma relação de estranheza das performances e pela caracterização dos ambientes do que por imagens obviamente fantasiosas.
Percebemos até mesmo uma relação mais ambígua com uma abordagem que beira o documental em certas cenas. Principalmente nas sequências urbanas no início e no final com as imagens da turnê musical de Annette.
É possível reconhecer até uma espécie de progressão dramática nesse sentido. Enquanto a personagem da Cotillard atua como uma “aura” que vai se dissipando, um espectro fantasioso que se despede da obra na metade da narrativa, o personagem de Driver, que possui uma presença física muito mais bruta e impositiva (os seus stand-up, de certa forma, são até mesmo baseados nisso) vai se impondo.
O filme assume uma espécie de desilusão por uma ideia sublime do espetáculo e faz com que aspectos cruéis da realidade, representados por essa relação mais direta com o mundo, contamine todo esse entorno idílico.
Mesmo o modo como a personagem de Annette realmente “encarna” em uma criança real no final do longa funciona como o ápice dessa dimensão física. Annette nasce como um boneco de palco misterioso (a referência a um ventríloquo ou marionete reforça essa busca por um espetáculo mais primitivo) para depois virar humana e, consequentemente, deixar de ser uma artista, deixar de ser apenas um espectro mágico que performa nos palcos.
Se Ann, a mãe de Annette, “transcende” justamente devido a esse teor artístico e fantasioso que envolve a sua aura – morre em uma tempestade cinematográfica e afunda como uma personagem de Georges Méliès – a filha assume um lado mais humano em todos os sentidos.
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UMA RELAÇÃO PESSOAL COM A MORTE
A ideia de espetáculo, ao longo do filme, não vai adquirindo um tom apenas mais realista e físico, mas diretamente mórbido.
A imagem de Annette como uma criança real chegando ao lado do boneco na cena no presídio no ato final é, sem dúvidas, uma das imagens mais fortes que o Carax já fez. Algo que, de um modo muito sugestivo, se relaciona com a cena inicial em que a própria filha do diretor faz um movimento muito parecido quando se aproxima do pai. Uma mulher que literalmente soa como um fantasma da mãe (Yekaterina Golubeva, morta em 2011) devido a sua aparência.
É inevitável pensarmos nessa relação de luto e de pai que o próprio diretor integra no filme ao evidenciar a presença da filha no começo da obra e nesses possíveis planos espelhos. Podemos até reconhecer essa relação entre o espetáculo e a morte do longa como um aspecto universal das artes e do cinema (as tragédias, as óperas, os melodramas), mas em Annette o cineasta traça um vínculo mais claro com essa possível purgação íntima.
Em seu filme mais pessoal, Leos Carax decide lidar com seus fantasmas de uma forma muito mais crua do que estamos acostumados a ver em seu cinema. Com certeza isso não é gratuito. O artista mescla ideias que envolvem a fabulação e a realidade de modo muito sugestivo e criativo em um filme que, no fim das contas, reflete sobre a perda da inocência.
Mesmo que Annette não se filie diretamente ao maneirismo mais sofisticado do cineasta, a obra ainda segue temas comuns de suas obras como a desilusão e o fatalismo. Aqui, expressos de modo até mais pungente devido a essa relação diretamente pessoal do realizador com a premissa.