Dennison Ramalho concilia realismo com tradições clássicas do horror.
Ainda que Morto Não Fala (2018) seja o primeiro longa-metragem de Dennison Ramalho, o diretor já possui uma carreira de bastante prestígio dedicada ao cinema de horror. Ramalho foi coroteirista e diretor-assistente de Encarnação do Demônio (2008), realizou curtas como Amor só de Mãe (2002) e Ninjas (2010) – este último um dos melhores curtas nacionais de terror dos últimos anos – e foi responsável por um segmento do filme de produção norte-americana O ABC da Morte 2 (2014).
Pensado inicialmente como um seriado para a rede Globo, Morto Não Fala acabou se transformando em um filme produzido em parceria pela Globo Filmes, Casa de Cinema de Porto Alegre e Canal Brasil. O longa conta a história de Stênio, o plantonista de um necrotério que tem a capacidade de se comunicar com os mortos que são levados até ele todas as noites.
O primeiro ato de Morto Não Fala remete diretamente a uma tendência de thriller realista do cinema brasileiro. Em suas primeiras sequências, o filme lembra até mesmo alguns trabalhos do cineasta Beto Brant, especialmente pela forma como o imaginário urbano é integrado na experiência de mal estar do protagonista. Ou, pensando em um exemplo relativamente recente, a narrativa chega até a sugerir um suspense próximo de O Lobo Atrás da Porta (2013).
Mesmo com o tom sobrenatural, pelo menos nesse primeiro ato, tudo no longa de Ramalho é submisso ao jogo realista do contexto social e da violência implícita nesse ambiente. Até os primeiros mortos que conversam com Stênio fazem parte dessas circunstâncias.
Toda essa construção gera, sem dúvida, alguns dos momentos mais originais de todo o cinema brasileiro recente, já que o cineasta articula muito bem tanto essa agressividade urbana (a caracterização dos personagens, o uso das gírias, a confusão entre grupos rivais que o protagonista se envolve) como o tom fantasioso nos diálogos com os mortos.
Os diálogos com os cadáveres são, ironicamente, muito espontâneos. Não existe um espanto inicial de um filme de terror comum. O protagonista não descobre, de uma hora para outra, esse seu dom. O filme já se inicia com o elemento sobrenatural estabelecido. O realismo e a fantasia, nesse sentido, convivem entre si naturalmente. Existe, até mesmo, um humor implícito nessa descontração.
A partir do segundo ato, o filme passa a se dedicar abertamente a uma tradição mais clássica do horror. Uma tradição que, inclusive, lembra muito a estrutura ágil do cinema de gênero norte-americano contemporâneo. O diretor começa a obra a partir de um tom abertamente brasileiro, tanto em relação ao contexto como a essa abordagem realista e, aos poucos, vai subvertendo isso a partir de uma disposição mais clássica.
Quando o personagem do Daniel de Oliveira passa a lutar, diretamente, com a assombração da sua esposa morta, o cineasta usa e abusa de um arsenal que vai desde uma reelaboração psicológica (o protagonista perde a sua espontaneidade e passa a ficar perturbado) a cenas explícitas que lidam diretamente com uma aproximação mais gráfica.
É aí que entram efeitos especiais que abrangem tanto imagens icônicas do horror (o espírito no forno puxando a filha, o rosto da mãe na janela) como construções que prezam por uma reformulação do espaço físico (a sala infestada por linhas de cerol) e que agem em uma dimensão mais prática.
Ou seja, não resta dúvidas de que o cineasta tem apreço tanto por uma tendência realista que alude a uma tradição brasileira como por aproximações tradicionais do gênero que vão desde a agilidade industrial norte-americana ao flerte com um torture porn à Takashi Miike. O curta Ninjas (2010) já estabelecia muito bem esse trânsito. Morto Não Fala expande esse universo para a estrutura de um longa-metragem.
Uma estrutura que, apesar de toda a sua versatilidade, apresenta certas limitações a partir da metade do filme. Todo o drama central da narrativa permanece, sempre, muito forte, mas talvez o excesso de alguns acontecimentos isolados torne a obra um pouco cansativa em alguns momentos.
Não é nada que afete a qualidade do filme de modo geral, mas é inegável que o trabalho, a medida que vai se entregando a esse arsenal de referências do horror, acaba se desviando levemente de uma unidade que, no início, fluía com mais naturalidade.
Nesse sentido, poderíamos dizer que o filme peca pelo excesso. Não o excesso de mostrar demais, de ser gráfico demais, mas um certo exagero na fragmentação narrativa do ato final. A ameaça da assombração da esposa perde alguma da força que havia na premissa devido a pequenos incidentes isolados que o longa mistura. A personagem da mãe de Lara e alguns acontecimentos específicos com os filhos de Stênio soam desnecessários frente à premissa inicial. Ainda assim, não é nada que abale a obra como um todo.
Na soma final, Morto Não Fala possui muito mais acertos do que erros. A inventividade de Dennison Ramalho é, sem dúvida, um respiro que vai muito além do nicho de horror. Ao usar da fantasia para lidar, sem concessões, com elementos sombrios e reveladores do cotidiano comportamental e social do país, o cineasta se firma como um dos artistas mais estimulantes da sua geração.