No melhor filme da franquia, Chad Stahelski equilibra a ação realista com a ritualização dos seus espaços
JOHN WICK: PERSONAGEM E ÍCONE
A franquia John Wick é um fenômeno que deve ser celebrado. Não é sempre que uma história original atinge, em tão pouco tempo, a condição icônica que os filmes de Chad Stahelski alcançaram. Com certeza a presença de Keanu Reeves – e de tudo o que envolve a sua figura no cinema de blockbuster – ajudaram nessa trajetória. Mas, para além disso, o principal fator do sucesso e da qualidade destas obras é sua consciência de uma lógica do espetáculo bastante objetiva que perpassa os longas.
Mais do que simplesmente narrar uma história de vingança que sai de controle, a série de filmes foca seus esforços em elementos de atração. Imagens marcantes e sequências frenéticas. Uma abordagem peculiar que se equilibra entre a fantasia – a caracterização cartunesca e excessiva daquele mundo; algo que, em vários sentidos, soa como uma história em quadrinhos – e o realismo brutal da ação corpo a corpo.
Ou seja, John Wick pega o melhor de dois mundos. Usa de uma liberdade imaginativa muito particular na criação da sua sociedade de assassinos e tudo que envolve a concepção do seu universo e, ainda assim, nunca deixa de lado a essência performática crua das suas cenas de luta. O que interessa ao cineasta, acima de tudo, é a evidência espetacular dessas possibilidades. A reinvenção contemporânea e, do mesmo modo, a reverência a certos códigos do cinema de gênero que envolvem esses elementos.
Com o sucesso desse muito bem elaborado projeto de entretenimento, nada mais natural do que o personagem se transformar em ícone. Sua natureza até já poderia envolver essa possibilidade – o protagonista, já no primeiro filme, é uma espécie de lenda viva – mas a legitimação universal se deu, certamente, nas experiências únicas que os espectadores, ao redor do mundo, tiveram com essas obras.
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UMA DECLARAÇÃO ANTINARRATIVA
Este terceiro filme segue os acontecimentos do anterior: após quebrar as regras da alta cúpula, a cabeça de Wick é colocada a prêmio por 14 milhões de dólares. O protagonista passa, então, a ser procurado por todo e qualquer assassino em busca dessa quantia.
A principal diferença deste longa para o anterior é a forma como Stahelski harmoniza a hiperconstrução dos espaços – os cenários temáticos, as caracterizações excêntricas dos ambientes em que as lutas se passam – e a coreografia prática da ação. Ainda que John Wick: Um Novo Dia Para Matar (2017) seja um filme muito bem coreografado, a repetição da sua ação tornava o desenrolar da obra um pouco mecânico. Já John Wick 3: Parabellum (2019) encontra um raro equilíbrio entre a agilidade do que está em cena e a ritualização dos elementos ao redor.
Acima de tudo, o atual filme assume com todas as letras a sua vocação para um filme de peças isoladas. Sequências independentes que funcionam separadamente ao mesmo tempo que forjam uma jornada maior. E o mais curioso é que o longa não parece preocupado em justificar os acontecimentos dessa trajetória. O roteiro é muito mais uma bela desculpa para os elementos de atração que o diretor domina do que, exatamente, parte essencial no acabamento da obra.
Nesse sentido John Wick 3 é um musical. Ou, para quem preferir, um videogame. Uma obra separada por fases temáticas. Fases que, de certa forma, até afetam o quebra-pau em cena, mas, antes de tudo, assumem a sua condição conceitual de um pano de fundo maleável. Um jogo cíclico em que o personagem pode até lutar pela sua vida, mas a emoção está muito mais nesse trajeto, nesses modos de operação que vão se reinventando, do que exatamente em descobrir se Wick irá sobreviver. Até porque, na atual condição da história, já está mais do que claro uma certa sobrevida do protagonista.
Essa recusa por uma trama concreta pode parecer coisa fácil. Ou, ainda, mera desculpa para um roteiro subdesenvolvido. A questão toda é que estamos diante de um filme que, objetivamente, se assume como uma obra de encenação espetacular. Um trabalho que enfatiza os excessos da sua premissa através de uma frenética reformulação espacial do corpo em cena. A luta, aqui, é uma dança. E essa dança é o espetáculo por si só.
A declaração antinarrativa de John Wick 3 é clara desde o início. O filme está muito mais interessado em uma evolução inventiva das suas fases, em aptidões gráficas que, constantemente, se reestruturam, do que em contar uma história.
Até mesmo o drama – quando existe – é submisso a essa lógica de projeções espetaculares exageradas. Toda a sequência no teatro russo mostra isso muito bem. Os ambientes possuem um tom cerimonioso e, novamente, encenado (o ensaio de ballet, o treino com os garotos lutando) que se apresentam como a materialização do imaginário do passado misterioso do personagem. As cenas assumem aquele espaço como um misto de passado e presente vivo. Não existe uma preocupação realista, mas a evidência de um mundo maleável em que a força da imagem é o imperativo soberano.
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A RITUALIZAÇÃO DO QUEBRA-PAU
Seja ao lidar com o folclore russo ou os elementos sempre singulares da alta cúpula e da sociedade dos assassinos, John Wick 3 encara seus símbolos a partir das suas competências práticas e visuais, não meramente metafóricas. E nesse ponto o longa trabalha muito bem com seus exageros, se dá várias liberdades sem nunca soar apelativo ou meramente irônico. Apesar da obra possuir várias referências reconhecíveis (especialmente de cinema oriental), ela nunca é submissa a um simples jogo de homenagens ou pequenas odes insinuantes.
A forma como Stahelski ritualiza as cenas de luta com certeza é o ponto forte dessas alusões. De um lado temos uma ação sempre prática, uma luta realista, gráfica e de resoluções explícitas. Do outro, a composição de um ambiente ultra elaborado em que essa prática se dá. Uma ritualização que faz questão de evidenciar sua variedade em diversos sentidos: cenas que ocorrem em áreas opostas do mundo (do urbano ao desértico), sequências que se dão em ambientes simples e minimalistas (uma biblioteca) ou plasticamente hipersugestivos (a sala de espelhos e imagens virtuais da última cena).
O ponto forte dessa pluralidade que assume o seu fator ultra flexível como um adorno carnavalesco é a forma como o longa mistura esses elementos em uma anacronia sempre imprevisível: Wick fugindo a cavalo pela cidade, ninjas de moto, espadas e facas em meio a armas e espingardas.
Além dessa constante consciência do seu elemento espetacular, a obra propõe uma convergência absolutamente estimulante entre os imaginários que resgata. Vários elementos remetem a uma estética retrô – do escritório da alta cúpula aos espaços do hotel – porém são abordados, visualmente, de forma contemporânea. Até nisso o diretor é prático.
Se por uma lado existe uma solenidade tanto na construção visual daquele mundo como na reverência do longa ao cinema de artes marciais e ao próprio trabalho minucioso da coreografia da ação (Stahelski, antes de se tornar diretor, foi dublê em vários filmes), a obra rejeita qualquer purismo em sua concepção. Nada é sagrado: diferentes tradições se misturam em uma dinâmica de cenários, espaços e acessórios sempre excêntrica.
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A FAROFAGEM GRACIOSA
A franquia John Wick, no fim das contas, é a farofagem em seu estado mais gracioso. A maneira como o diretor lida com as suas referências de forma contemporânea pode remeter, em alguma medida, ao cinema de Quentin Tarantino. Especialmente em como os embates possuem uma qualidade cerimoniosa característica. Mas Stahelski, diferente de Tarantino, assume a dissonância de seus elementos mais abertamente.
John Wick 3 parte dessa ritualização exposta na sua encenação, mas vai para um lado efêmero na resolução de tudo. A obra se foca em uma ação essencial que, aos poucos, vai se tornando banal. São tantas lutas que os gestos de Wick vão perdendo significado enquanto o entorno se debruça sobre uma reinvenção maníaca (os cenários se reformulam, as viradas dramáticas se transformam em meras desculpas para mais porradaria, inimigos saem de todos os cantos).
Estamos diante de uma espécie de Kill Bill (2003) pós-moderno. As referências convergem uma com as outras de forma prática e assumida. As temáticas se misturam e, propositalmente, perdem sua identidade. As sequências se orgulham das suas extravagâncias gamificadas: recusa-se a narrativa dramática (ou se dá uma desculpa para ela) enquanto o foco é o progresso entre os espaços ritualizados e os obstáculos peculiares.
John Wick 3: Parabellum, no fim das contas, é um filme sobre a resistências das imagens. Um cinema de atração que assume os seus excessos não como simples motivação presunçosa ou piscadela apelativa, mas reitera o espetáculo – e, principalmente, a sua constante reinvenção – como força fundamental do cinema.