Através de aproximação crua, André De Toth evidencia relações de autoridade e submissão
Cidade Tenebrosa (1953) é mais marcante como um filme de ação do que, exatamente, como um clássico do cinema noir. Obviamente a obra possui elementos bastante característicos do noir, mas o que chama mais atenção no trabalho de André De Toth é como o cineasta integra um realismo peculiar na caracterização de tudo – do uso das locações em Los Angeles aos trejeitos particulares de cada personagem – com uma dinâmica bastante ágil dos acontecimentos em cena.
O filme remete diretamente aos trabalhos de um diretor contemporâneo como Michael Mann, por exemplo. Seja no sentido da sua abordagem crua que assume a cidade como um campo de batalha fundamental, seja em seu discurso ideológico que, visivelmente, comenta sobre vínculos de autoridade implícitos nas relações entre os indivíduos (a tensão externa que afeta um núcleo familiar é comum no cinema de André De Toh) e as instituições do estado (o papel da polícia e das autoridades).
O longa narra história de um ex-criminoso que, agora casado e vivendo na segurança de um lar com sua esposa, é obrigado a participar de um assalto a banco orquestrado por antigos companheiros de cela.
O que percebemos logo de cara é que o diretor rejeita uma romantização característica do noir. É claro que De Toh está interessado na essência dramática de uma história policial, mas, acima de tudo, o seu método se foca em um desenrolar bastante prático do que é proposto. A história acontece sem muitos rodeios. O casal protagonista, vivido por Gene Nelson e Phyllis Kirk, está preocupado com a sua simples sobrevivência em meio aos problemas que o personagem de Nelson se meteu. Não são aflições românticas ou frases de efeito que movem a narrativa, mas uma ordem de causa e consequência bastante franca.
Enquanto o casal marca o lado dos indivíduos da trama, o detetive Sims (interpretado por um mais do que inspirado Sterling Hayden) retrata uma força autoritária plenamente assertiva em seus objetivos e, ao mesmo tempo, resignada a um mero instrumento policial.
A obra faz questão de evidenciar um certo mecanismo prático da organização policial tanto em seu sentido técnico como humano. Aproveita da sua abordagem realista para mostrar desde o sistema de comunicação da polícia (elemento que, geralmente, nunca ganha uma representação visual em grande parte desses filmes) aos métodos absolutamente pragmáticos de Sims.
Ainda que Gene Nelson possua o carisma de bom moço que faz dele o protagonista de boas intenções, a figura do detetive Sims centraliza muito bem todos os conflitos do longa. Um homem que não confia em ninguém e parte em uma busca concreta pela verdade. Ou seja, o que está em jogo, em Cidade Tenebrosa, é evidenciar essa objetividade da gestão policial. Destacar uma autoridade que não toma lados – Sims nunca se comove por nenhum testemunho, acredita apenas no que vê – e demanda por resoluções concretas.
Mesmo que a obra traga uma polarização entre bem e mal, ela nunca se limita a uma representação meramente ilustrativa da polícia e do bandido. Existe uma ambiguidade que perpassa o lado autoritário do personagem de Sterling Hayden. Um homem que responde, unicamente, a uma moral própria em busca da autenticidade dos fatos, custe o que custar.
A câmera de André De Toth, do mesmo modo, segue em uma busca pelo que é concreto. Ainda que o trabalho faça uso bastante inventivo dos espaços da cidade e das locações, o cineasta nunca estiliza seus planos. O longa se equilibra muito bem entre uma mise-en-scène sóbria e direta (sequências rápidas com elementos centrais muito bem definidos) e uma articulação que beira o documental no seu trato com o ambiente urbano.
As sequências dentro da delegacia, quando Sims interroga e até intimida os personagens, são cruas e claustrofóbicos. Os corpos, literalmente, se apertam em pequenos cômodos. Já a cidade de Los Angeles nunca é representada como um cartão postal. O diretor assume as trivialidades das ruas e expõe suas peculiaridades sombrias. Não existe uma idealização pelo espaço urbano. Mas uma apreensão direta das suas possibilidades gráficas ríspidas. Não é raro que algumas externas de Cidade Tenebrosa sejam mais escuras do que em outros filmes policiais da época. De Toh, nesse sentido, articula muito bem o seu orçamento limitado com uma linguagem que usa das limitações em prol de uma identidade própria.
A perseguição no ato final resume muito bem essa aptidão visual realista. Após ser obrigado a participar da frustrada tentativa de assalto, o personagem de Nelson entra em um carro e vai até o encontro da esposa, que era mantida refém pelos criminosos. O detetive Sims, por sua vez, persegue Nelson nesse trajeto. Os carros do detetive e do mocinho fazem, de fato, o caminho real do banco em Glendale ao bairro de Chinatown, tornando a abordagem do diretor ainda mais autêntica, especialmente nos planos externos da perseguição. As ruas se tornam parte da iminência dramática. O espaço se integra ao ápice narrativo. Mais um elemento que faz do longa um marco do cinema moderno nessa sua aptidão espontânea e livre com os espaços que filma.
A última cena é, definitivamente, das mais marcantes de todo o cinema norte-americano: Sims encontra o casal protagonista e os despacha para a sua vida de impostos e segurança. “Vão em frente, aí está o seu ônibus”, diz ele. O casal obedece e o detetive se encosta na parede, melancólico e resignado em sua função.
Mais do que um mero filme policial de baixo orçamento, André De Toth constrói, neste Cidade Tenebrosa, uma evidência das relações de autoridade em que o mundo é submisso. Usa o gênero policial para refletir, de modo sensível e ao mesmo tempo direto, sobre a fragilidade dos indivíduos nesse contexto.