A partir da ambiguidade entre o aparente e o implícito, Olivier Assayas concebe uma lógica misteriosa.
Existe um paradoxo essencial no cinema de Olivier Assayas. Uma dialética entre o aparente e o alegórico que encontra nos elementos culturais e na gama referencial de filmes como Espionagem na Rede (2002), Traição em Hong-Kong (2007) e este Personal Shopper (2016) norteadores emblemáticos de uma era.
Essa bagagem de menções e apontamentos, através de uma conceituação do e pelo aparente, ao mesmo tempo que assume tais elementos pelo que eles são – perspectivas tecnológicas em voga e premissas de um cinema de gênero que refundam a relação imediata dos personagens com o mundo material –, oculta uma dimensão abstrata, mesmo mística, que acaba convertendo seus significados em componentes autônomos dentro de uma lógica narrativa bastante específica.
A dimensão da superfície, nestes filmes, age tanto como símbolo de si mesma, em posições pragmáticas e problematizações mais óbvias das coisas como elas aparentam ser, como também enquanto signo de um presente enigmático, de um processo de investigação no qual existe uma apreensão obscura e misteriosa do contemporâneo.
Em Personal Shopper, a moda, além de servir como perspectiva contextual, atua também como mote de presentificação. As relações de presença e ausência do filme que se refletem em acontecimentos espirituais e tecnológicos ganham uma ambiguidade ainda mais misteriosa quando postas lado a lado desse aspecto assumidamente materialista da estética e do corpo.
É um componente essencial que intui a vocação sagrada que esses objetos emanam, seja pelo seu valor especulativo de mercado, seja pelo próprio aspecto esotérico de seus materiais. Vestir-se é, muitas vezes, incorporar um outro, é a ilusão de contato com um mundo inacessível que origina uma forma de devoção.
No caso específico do filme de Assayas, a moda opera, além de tudo, como elemento vital na produção do longa, já que a ajuda da Chanel de Karl Lagerfeld foi essencial no financiamento da obra. Ou seja, mais do que unidade circunstancial e alegórica, a referência engole o filme – processo que, dentro da lógica das aparências do diretor, não parece surtir muitos problemas. Pelo contrário, as roupas da marca e a figura de Kristen Stewart (modelo de várias campanhas de Lagerfeld) contribuíram para um imaginário ideal na concepção icônica do longa, localizando na relação da moda com a atriz não apenas uma premissa comercialmente oportuna, mas uma possibilidade inventiva de desconstrução temática pelos seus próprios meios.
Este elo com o efêmero, para além das roupas e acessórios de grife, parece ser o principal norteador fantástico do longa: circunstância contemporânea que encontra em elementos digitais o seu mote de contato. Um momento atual em que a tecnologia vem se tornando o mediador principal de relações imateriais, de ausências e presenças que perdem e ganham significado pelo toque de uma tela.
Maureen, a personagem de Stewart, vive nessa espécie de limbo espectral em constante desarticulação com seu meio, tanto o físico como o astral. E, como de praxe no caso de Assayas, esse deslocamento não é mediado só pela tecnologia, mas pela incitação ao gênero. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o filme assume uma frontalidade nas aparições espirituais, conserva, também, um apreço pelo drama como unidade definidora da narrativa.
Personal Shopper se mostra mais como a atualização de um terror tourneuriano de sugestão – o sobrenatural como incitação dramática e sublimação psicológica – do que uma tentativa mais direta de desconstrução do gênero. O horror, no filme, não atua só como mediador atmosférico das relações, mas é um elemento dramaticamente ativo, uma força implícita em gestos e nuances que contamina as relações concretas.
Toda a dinâmica material é submissa a uma lógica sobrenatural. O ectoplasma não surge como uma referência distante, mas se concretiza no espaço da cena. O místico não é só um mote de fetiche, mas se converte em um espaço conceitual de presenças impalpáveis: o elevador que abre sozinho; o sexting do além; os copos voadores.
A principal diferença entre este e os outros filmes de Assays é que a extensão conceitual do gênero atua menos como comentário e mais como elemento funcional. O pano de fundo aparente ainda está lá, brilhoso e recheado de referências, mas a dinâmica narrativa do trabalho de fato se aplica dentro de uma estrutura onde o terror é mais do que um simples flerte referencial.
Mesmo o formalismo que o filme ganha, na relação da câmera com a arquitetura dos espaços, inaugura uma gramática muito única. É como se, sujeita a essa força hermética, a câmera também fosse guiada por uma presença que é ao mesmo tempo potência espiritual (o fantasma voyeur) e revitalização de uma noção purista. Outra vez, o naturalismo neoformalista (um espectro em CGI, aqui, é também um corpo a ser elegantemente enquadrado pela limpidez do digital) que atualiza a dimensão tourneuriana da sugestão.
Na cena em que Maureen veste as roupas de Kyra (Nara von Waldstätten), durante o sexting misterioso, a câmera demonstra uma atitude bastante autoconsciente ao espiar as ações da personagem, reiterando a ideia de presença que conserva um rigor em seus movimentos ao mesmo tempo que revela um vislumbre subjetivo, um prazer por parte daquele que observa.
O maquinário cinematográfico, mediador entre a relação da personagem e esse observador misterioso, vai construindo um encadeamento íntimo nos movimentos, culminando na cena em que Stewart se masturba na cama da celebridade e, após testemunhar seus primeiros gestos, a câmera-presença aos poucos se afasta da personagem e sai do quarto em um fade out, como se, literalmente, fechasse os olhos.
Esse equilíbrio entre rigor e percepção voyerística acaba se revelando a gramática ideal para o método de aparição do longa. Existe uma naturalidade nas manifestações dos espíritos, filmadas em certa medida descaradamente (especialmente na sequência na casa mal-assombrada) que é fruto de uma ingenuidade talvez didática ou primária em seu encadeamento figurativo (a representação translúcida fabular das entidades), mas é bastante revigoradora justamente devido a sua indiscrição. Uma singeleza do mostrar que assume a clarividência como um mote do aparente, do que está ali por si só. Seja um corpo material ou uma manifestação desencarnada, o físico e o impalpável fazem parte de uma mesma dimensão visual da superfície.
O gênero, em Personal Shopper, parece desapegado da prerrogativa contemporânea de um horror psicológico que mais esconde do que mostra, que artificializa seus entornos para se esquivar de uma mediação mais direta, prática em voga principalmente em algumas produções de realizadores europeus como Deixa Ela Entrar (Tomas Alfredson, 2008), Boa Noite, Mamãe (Severin Fiala & Veronika Franz, 2014) e Demônio de Neon (Nicolas Winding Refn, 2016). Filmes tutelados ou por um discurso misterioso e uma austeridade formal oportuna (os dois primeiros), ou que se utilizam de um maneirismo extravagante, pseudo-simbólico, para se safar de qualquer associação de gênero mais direta (o longa de Refn).
Os diálogos de tons espiritualistas do filme de Assayas são bastante claros – e, novamente, didáticos – em suas reflexões sobre uma vida após a morte. Um tom solene e aberto, quase juvenil, confirma o traço pedagógico da narrativa. Mesmo os desejos mais sombrios de Maureen não são tratados como uma repressão culposa, mas como motivação de um contato ativo com o desconhecido. O medo surge como uma demanda de autonomia, de fé em um outro mundo que é também uma motivação inocente de superação pessoal.
Ainda que dentro desse esquema indiscreto, o filme não se limita a uma resolução definidora. Confirma-se, assim, a lógica de Assayas de um mote de superfície que, mesmo materialmente muito concreto em sua representatividade, perpassa por uma exploração alegórica. Seu interesse é pela potência que se abriga nessas misteriosas dinâmicas da contemporaneidade, que desloca suas energias através de dispositivos tecnológicos e dimensões universais entre a aparência e o significado.
Essa potência abstrata é idealmente representada no personagem Ingo (Lars Eidinger) e sua misteriosa função no filme. Desde o primeiro contato de Maureen com Ingo existe uma indefinição mística, afinal é naquele encontro que, pela primeira vez, a personagem comenta objetivamente seus périplos espirituais. E o faz justamente para um homem estranho, de ar superior e misterioso, mas de serenidade altamente convidativa. Ingo atua como uma presença que possui não a chave espiritual da obra, mas – enfim – sua dimensão declaradamente oculta.
A última sequência no hotel é bastante reveladora da assimilação metafísica que o filme acaba revelando. A força misteriosa que vai embora pelo hall, que é ao mesmo tempo corpo transparente (não tem forma material, não a vemos) mas real o suficiente para ser percebido pelos dispositivos tecnológicos (os elevadores e a porta automática do hotel), parece declarar uma concepção de matéria energética que só existe enquanto força assimilada pelo campo da tecnologia.
Assayas, aqui, não deixa de renovar alguns complexos fantasmagóricos já estabelecidos no j-horror – particularmente o de aproximação comportamental de Pulse (Kiyoshi Kurosawa, 2001) – bastante apropriados na contextualização corrente de seu filme.
Mesmo o fato de Maureen trocar o chip do seu celular antes deste último encontro demonstra uma ambiguidade ao evitar tanto a presença de Ingo, que provavelmente a tentava incriminar, como a da força misteriosa que a acompanhava pelo telefone. Só após a tal presença sair do hotel e se dissipar pela rua é que o personagem de Eidinger acaba capturado pela polícia, como se abandonado por o que quer que o auxiliava até então.
Apesar de um didatismo sempre implícito em sua contextualização, Personal Shopper acaba anunciando um universo muito mais ambíguo do que qualquer tentativa de categorização. Tanto pela sequência no hotel ou pela cena final, na qual Maureen trava um contato com uma entidade que tinha tudo para ser seu irmão, mas novamente se revela evasiva, o mundo se manifesta de forma misteriosa e irracional, mais apegado a possibilidades simbólicas abertas do que definitivas.
O trabalho termina, por fim, atestando essa dicotomia entre o aparente e o implícito que percorre a obra de Assayas, uma alusão universal que não aceita a ordem como elemento institucionalizado na contemporaneidade, mas evidencia a desarticulação entre o natural e o tecnológico – o humano e o seu espaço presente – não apenas como contingência dramática, mas como coexistência de forças frágeis, instáveis e, inevitavelmente, altamente esotéricas.
Publicado originalmente na Revista Cinética em setembro de 2017.