Shyamalan relata a vilania como uma jornada patológica.
Fragmentado (2016) vai contra um princípio básico do cinema de M. Night Shyamalan: o equilíbrio. Da concepção básica do seu personagem principal – uma elaboração que preza pela alteridade tanto em sua construção mitológica como em sua dimensão performática – ao próprio desenrolar da narrativa, existe uma constante diversidade de tons que implica da constituição formal a uma variante metafísica daquele mundo.
É claro que a variação de gêneros é uma das maiores, e mais bem exploradas, características do diretor. Mas Fragmentado subverte um senso de jornada fabular que, antes estabilizado no arco de um herói, encontra, agora, uma noção destrutiva de possibilidades ainda pouco exploradas pelo indiano. A noção da fé como um elemento positivo de confrontação, tão cara em todo o universo shyamalaniano, se transforma em um embrião do mal. Qual é a grande arma de Kevin (James McAvoy) se não, simplesmente, acreditar em si mesmo?
Se em Corpo Fechado (2000) a origem do herói se dava através de sua “hiperfuncionalidade”, também por meio de um claro processo de fé, de acreditar nas possibilidades daquele mundo e, novamente, de si mesmo, em Fragmentado é a “hiperdisfuncionalidade” que encontra um mote de força e de superação às avessas.
A 24ª personalidade de Kevin está ali para superar todas as outras. A doença não é mais aquilo que o martiriza, mas a solução que irá torná-lo superior aos demais cidadãos do mundo. Enquanto o herói de Bruce Willis exalta o saudável, o vilão de McAvoy potencializa a enfermidade. A redenção é alcançada não por um altruísmo enaltecedor, mas através da própria patologia do personagem.
Além das referências indiretas e diretas ao filme de 17 anos atrás, Shyamalan parece interessado na reposição de várias operações passadas. Uma dualidade que, ao mesmo tempo, oferece semelhanças já implícitas em toda a sua filmografia – especialmente na relação entre fábula e realidade, na questão essencial de como mitos reagiram, hoje, na contemporaneidade – e apresenta uma abordagem muito mais crua e realista. O torture porn pode até funcionar apenas como uma premissa conveniente, mas existe, no filme, uma contextualização sombria que alia a origem da vilania com uma construção dramática soturna e histriônica.
O porão onde vive Kevin, suas personalidades e as vítimas, atua como um espaço-dispositivo que constantemente reintegra a esquizofrenia do personagem dentro de uma perspectiva dramática. As relações entre as personalidades do vilão vão se transformando em crônicas complexas, dramas que convertem aquele ambiente não só em um terror de câmara, mas em um palco inventivo, narrativa de sugestão oral confinada em um ambiente que nos remete à dinâmica fabular de A Dama na Água (2006).
Mas o que no filme de 2006 era guiado por um equilíbrio lúdico, uma tradição universal que tinha no poder sugestivo do contar o seu guia fundamental, aqui é marcada pelo desequilíbrio psiquiátrico e sua dinâmica de temperamentos que vai redefinindo o rumo fantástico do filme. Não é mais a inocência do storytelling que idealiza o místico, mas os princípios da loucura humana.
Casey (Anya Taylor-Joy), a vítima principal, sabe que, para sobreviver, é preciso compreender isso, entrar no drama e integrar-se a prática complexa do seu sequestrador. Mas diferente do personagem de Paul Giamatti em A Dama na Água, não existe uma regra universal que irá levá-la ao sucesso. Somente um instinto de compreensão, provido pela sua percepção de caçadora, que irá guiá-la nessa busca pela sobrevivência.
Ou seja, existem, em Fragmentado, dinâmicas comuns à filmografia de Shyamalan que tomam partido nessas variações extremas da trama. Mesmo alguns elementos formais já largamente utilizados pelo diretor aparecem muito mais explícitos: o uso dos closes, a profundidade de campo, a construção do suspense em si como um elemento a la Brian De Palma que atrasa o acontecimento. Logo no início do filme, quando o personagem de McAvoy sequestra as garotas, a construção tensional na mise-en-scène está muito mais interessada em um tempo psicológico de construção de expectativa do que em um tempo de resposta realista. A cena reprograma a sua noção temporal para aguardar o reflexo de Casey frente um perigo iminente.
Mesmo uma simples conversa entre a psiquiatra (Betty Buckley) e Kevin, no apartamento da médica, integra uma dinâmica franca muito explícita no plano e contra-plano. Uma relação de claustrofobia, de prisão implícita, que consegue se fazer presente através de um simples diálogo. Sem falar na relação espacial no porão que, como já de praxe na carreira do diretor, utiliza-se de lentes de distância focal curta para reforçar a expressão dos personagens, e, no caso deste Fragmentado, para conservar ainda mais a sua vocação de drama interior, de filme de rostos, faces que preenchem a tela e se bastam para dar conta de toda a dinâmica dramática do filme.
A relação arquetípica, outro elemento essencial na filmografia do diretor, também parece desestabilizada. Enquanto Casey, ao longo dos flashbacks, vai sendo identificada como uma caçadora, uma vocação para lidar com a ameaça muito mais propícia do que qualquer outra das duas vítimas, ela nunca fecha o ciclo nessa sua jornada de extermínio. Casey não consegue enganar seu inimigo e muito menos exterminá-lo. Somente quando a fera vê as marcas em seu corpo e a reconhece como uma vítima, consequentemente como um indivíduo superior (“The broken are the more evolved”), existe uma conexão.
Não apenas uma noção de sintonia que a vítima buscava para sobreviver, como também uma noção de insubmissão por parte dela, um novo estímulo que, na busca perigosa por compreender o seu inimigo simplesmente para se manter viva, implica em uma nova resolução de si mesma que sugere, no final do filme, um olhar corajoso ao anúncio da presença do tio abusador.
Casey, como a protagonista-heroína, pode até fracassar em sua luta concreta contra o vilão, mas existe uma vitória simbólica que retoma o embate como um processo de conquista pessoal. O trauma não é mais uma patologia, um elemento debilitador, mas a origem de uma força.
É como se Casey, reiterando a vocação de antítese do filme, integrasse para si a dinâmica do seu inimigo. Herói e vilão se reconhecem dentro de um mesmo processo de superação e, a partir disso, cada um segue seu caminho: mais fortes, mais decididos. Não é apenas o bem que se esclarece a partir dessa elucidação de forças, mas o mal também se torna mais vigoroso.
Daí a vocação destrutiva inédita deste filme: a formação do vilão parte de um processo de superação elucidativa reversa, mas ainda de uma fé legítima. Uma ambiguidade que remonta não só um preceito mitológico muito sutil, mas concebe ao trabalho uma variação inventiva entre o fantástico e o dramático das mais fascinantes.
Publicado originalmente na Revista Cinética em abril de 2017.