David Cronenberg escancara a dinâmica grotesca do show business.
Em tempos de Birdman (2014) e outras peculiaridades autoconscientes de Hollywood, fica até difícil para o cinéfilo mais desavisado localizar Mapas para as Estrelas (2014) em meio a um circuito de sacadinhas pretensamente críticas e investidas cínicas afins. Não deixa de ser um alívio constatar que David Cronenberg funda sua dimensão analítica sobre uma base mais do que superficial. Ou pelo menos, assim como talvez em grande parte de sua obra recente, o diretor parte dessa base aparente e explícita, escancarada e muito frontal, para atingir as vísceras mais elementares da sua temática alvo.
É até um pouco previsível constatar que o filme venha sendo recebido como uma espécie de crítica caricata ou sátira mordaz. Até concordo em algum sentido com a questão da sátira, mas me parece que o filme está muito mais interessado em partir de uma ontologia evidente de toda essa superfície hollywoodiana do que exatamente em uma caricaturização extrema.
Cronenberg lida diretamente com algumas questões já mais do que implícitas naquele universo. A caricaturização já é da natureza daquele mundo, o filme apenas pega todo esse drama especulativo da fama – a mais pura e primária narratividade de um E! Television – e evidencia um ambiente que já é constantemente aterrorizado por uma iminência: a iminência de um escândalo, de uma difamação pública, de uma fotografia vazada.
A família de Benjie, o astro teen sociopata que tem a arrogância como parte de seu DNA, já é envolta nesse constante senso de sobrevivência, esse survival film doméstico das aparências que precisa preservar a todo custo uma imagem de sucesso, manter cada coisa em seu devido lugar nessa mais do que calculada engenharia social do show business.
O espectador acostumado com toda aquela velha piscadela charmosa no que diz respeito aos filmes de Hollywood sobre Hollywood pode até se assustar com o imaginário deliciosamente barato de Mapas para as Estrelas. Aparições novelescas, imaginário incestuoso e toda uma gama de espectros sobrenaturais reprimidos. Mas não seria justamente desses ingredientes já essencialmente B que se alimenta essa especulação da difamação? Cronenberg apenas os assume com a devida franqueza.
Essa lógica social dos bastidores que por si só já a maior das encenações, com suas festas-rituais, suas pequenas orgias e seus hábitos excêntricos. A frontalidade com que a câmera filma a personagem de Julianne Moore nada mais é do que a evidência de uma abordagem livre de artifícios, desarmada, exposta simplesmente, que está interessada em um registro fundamentalmente cotidiano, por mais bizarro que ele seja.
Frontalidade essa, aliás, que só reitera a aptidão de Cronenberg para o digital. O filme usa e abusa de toda essa profundidade de campo cristalina e da limpidez da alta definição para subverter uma estética higiênica e invariavelmente publicitária do vídeo. Justamente por assumir essa nitidez extrema, essa lógica encenativa de corpos tão evidentes, já muito presente na fotografia digital de Cosmópolis (2012), Cronenberg concebe uma aproximação explícita quase que livre de uma intervenção estilística. Nada mais apropriado para esse ambiente luminoso e ultra impessoal de arquitetura conceitual, camarins-trailers genéricos, espaços meditativos e todo tipo de picaretagem zen.
Mesmo o fato do filme ser estrelado por atores como Robert Pattinson e John Cusack, uma estrela teen em um franco processo de ressignificação e uma estrela mainstream relativamente genérica, já nos dá essa dimensão histórica de um cinema que se autoevidencia ao mesmo tempo que se recicla, que parte do seu próprio imaginário para conceber novas dimensões autorais. O reconhecimento de uma vocação industrial autosustentável mais do que conveniente. E Cronenberg, feito o autor dentro do sistema que ele é, se aproveita muito bem disso.
Até a figura de Julianne Moore, que em um primeiro momento parece reencenar o seu próprio arquétipo do descontrole já mais do que popularizado em outros filmes, consegue se renovar frente a lógica frontal do diretor, frente esse escancaro anatômico íntimo. Aliás, se Alejandro González Iñárritu precisa de toda aquela pirotecnia para refletir sobre uma dimensão decadente das celebridades, aqui uma simples e bela Julianne Moore peidando em uma privada com toda a espiritualidade que lhe convém já faz muito mais!
Talvez o único momento de fato mais simbólico do filme, quando ele ultrapassa a sua vocação ontológica e assume a fantasia, ainda que seja uma fantasia que nasce diretamente dessa realidade surreal e grotesca, desse mundo fictício tão bizarro justamente por ser de algum modo fiel aos fantasmas de um mundo real, é a cena da autocombustão.
Um corpo que se anula e se auto-sacrifica pela culpa? Mesmo todo o pano de fundo piromaníaco do filme já nos dá essa dimensão de uma natureza destrutiva que rege a vida dos personagens. Até mesmo o instinto de preservação dos irmãos, que se casam entre si como em uma tradição da realeza que precisa ser conservada, é um ato final suicida. Seria a autocombustão a imagem final do corpo que, enfim, se rebela contra si mesmo? Aquele que só encontra a salvação no seu próprio aniquilamento.
Se um impulso de destruição, em sua essência capitalista, é também um impulso criativo, que destrói antigas demandas apenas para criar novas, não seria esse o princípio básico da indústria de entretenimento? Destruir para reinventar. Reinventar para destruir. Um ciclo natural que se renova com uma rapidez cada vez maior, dispensando elementos em voga apenas para substituir por novos. Em suma, uma obsessão pelo próximo, pelo mais novo, uma fixação pelo futuro que nada mais é do que uma obsessão pelo poder. Se o próprio Cosmópolis já nos deixava isso mais do que claro em toda a sua literalidade, Mapas para as Estrelas não deixa de ser uma espécie de continuação ideológica, convicta em sua inclinação anárquica e impiedosamente verídica.
Publicado originalmente na Revista Multiplot! em março de 2015.