A poética do controle em Stanley Kubrick
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Stanley Kubrick costuma ser abordado como um paradoxo. Um cineasta que, ao mesmo tempo, pertence plenamente à indústria e parece sempre trabalhar à margem dela.
Existe, em sua trajetória, um dado inicial decisivo para compreender esse lugar singular. Kubrick se forma como autodidata não apenas no sentido romântico do “gênio sem escola”, mas como alguém que constrói uma inteligência prática do cinema a partir do trabalho direto com o mundo material das imagens.
A passagem pela fotografia e pelo fotojornalismo lhe oferece uma disciplina do olhar e uma noção de decupagem que não nasce de manuais, mas do exercício de organizar eventos em unidades expressivas:
Essa formação “pela prática” se desdobra numa característica rara. Kubrick não pensa o filme apenas como obra a ser dirigida, mas como um sistema a ser construído.
E “sistema” aqui não significa mecanicismo vazio, significa uma forma de conceber a fotografia, a montagem, o som e a atuação como partes interdependentes de uma máquina expressiva.
Nesse sentido, a frieza aparente do rigor formal convive com um núcleo profundamente humano. Em Kubrick, a emoção não é abolida, mas colocada em confronto com forças organizadoras – instituições, arquiteturas, protocolos, tecnologias, convenções sociais – que parecem exceder o indivíduo.
Sua câmera frequentemente sugere um olhar que observa e enquadra, mais do que simplesmente acompanhar. É um ponto de vista que estrutura o espaço como uma ordem que se impõe.
Daí a recorrência de composições simétricas, corredores, eixos, ritmos controlados, movimentos calculados. Nada disso funciona como mero ornamento ou capricho, mas como expressão de uma forma que pensa o mundo como arranjo e como dispositivo.
Este artigo parte dessa hipótese de trabalho. Ao percorrer a filmografia de Kubrick, vale menos buscar temas que se repetem de modo ilustrativo e mais observar como ele organiza, filme a filme, uma ética e uma poética do controle.
E, simultaneamente, uma crítica desse próprio controle quando ele se mostra insuficiente, irracional ou autodestrutivo.
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MEDO E DESEJO (1952)
Das poucas coisas interessantes é perceber a influência mais direta das teorias de montagem soviética na cabeça do Kubrick.
A fragmentação que ele propõe na decupagem – a cena do assassinato na cabana talvez seja a mais explícita – raramente alcança uma coesão interna e até atrapalha os momentos de clímax, mas não deixa de ser curioso observar como ele força o filme a funcionar “na teoria”.
Nesse sentido, a tentativa de subversão do filme de guerra não passa apenas pela desordem mental dos personagens, mas por um experimentalismo formal bem impositivo.
É como se o Kubrick tentasse desmontar o gênero de dentro, via forma de planos desconectados, ritmo sincopado e pequenos saltos na lógica espacial que, mesmo tropeçando, deixam claro um desejo de repensar a narrativa clássica.
Em alguns momentos, a montagem é tão acelerada que os planos praticamente não cortam um com o outro. É um experimentalismo juvenil, meio literal, mas é um risco interessante.
É até pedagógico no sentido de ver alguém forçando uma gramática visual que ainda não domina, mas que está claramente sedento pra transformar em um método.
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A MORTE PASSOU POR PERTO (1955)
Parece, às vezes, um filme b da RKO dirigido pelo Cassavetes.
O Kubrick pega um enredo de noir tardio, desses bem econômicos, mas começa a infiltrar ali uma série de gestos modernos como a câmera mais solta, filmagens em locações reais e composições que comprimem os personagens no quadro de um jeito que até remete e antecipa algumas subversões do Antonioni.
Em certas cenas, ele ainda tem aquele ímpeto de cortar demais, de fragmentar a ação a ponto de, em alguns momentos, a referência espacial quase se dissolver. Mas, comparado ao Fear and Desire, é nítido como ele já está mais controlado.
Dá pra sentir a mão do jovem diretor querendo subverter o discurso clássico, mas sem abrir mão totalmente de uma clareza dramática que mantém o filme de pé.
Ele tenta modernizar a forma sem desmontar o gênero. A deriva documental da câmera, o uso de sombras urbanas, a fisicalidade dos espaços pequenos, tudo isso aparece como experimentação, porém de um jeito menos espalhafatoso e mais funcional do que no filme anterior.
É como assistir um diretor jovem que começa a entender que a forma pode ser uma força narrativa em si e não apenas um ornamento.
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GRANDE GOLPE (1956)
O Kubrick transforma o filme de assalto num estudo sobre a falência do controle.
Todo o plano do roubo é organizado como uma máquina perfeita com funções cronometradas, rotas definidas e tarefas que, em tese, precisam acontecer num fluxo contínuo sem atrito.
Mas a obra faz questão de deixar claro que a menor trinca – um comentário atravessado, um ciúme conjugal, uma informação vazada, um atraso de poucos segundos – já é suficiente para comprometer a integridade de tudo.
Desde aqui já é muito perceptivo essa obsessão do Kubrick por estruturas que prometem controle, mas acabam sempre ruindo, já que o plano funciona como uma espécie de organismo autorregulado e uma engenharia social em miniatura que não tem sucesso.
O que corrói o sistema, nesse caso, é sempre algo interno e profundamente humano. Da mesma forma que Dr. Fantástico transforma uma engrenagem militar perfeita numa espiral de fracassos humanos, ou que O Iluminado mostra uma família que implode por dentro, The Killing já opera nessa lógica de sistemas entrando em colapso porque seres humanos não são engrenagens e porque o acaso está sempre à espreita.
O filme também expressa, de modo sutil, uma espécie de mal-estar pós-Segunda Guerra. Existe ali um clima de desencanto moral, de individualismo e de masculinidades frágeis tentando se afirmar.
Os personagens não são os durões idealizados do noir clássico, mas figuras desajustadas, deprimidas, endividadas e fracassadas.
O caixa do hipódromo é dominado e humilhado pela esposa. O atirador é uma figura quase espectral, isolada, traumatizada. O policial é alguém que se vende por uma dívida com criminosos. E o barman vive soterrado por cuidados domésticos e por uma resignação triste.
Kubrick filma todos eles como homens frágeis tentando desesperadamente performar um tipo de controle que nunca possuem de verdade e não como ícones cool do crime.
A estrutura narrativa ainda soa muito contemporânea mesmo nos dias de hoje. Em vez de explicar o plano didaticamente, o filme faz o espectador montar a lógica do roubo na medida em que os blocos acontecem.
Ele usa uma estrutura não linear, revisita a mesma ação por diferentes pontos de vista, embaralha horários e perspectivas, mas sem cair no flashback tradicional.
O interessante é que essa estrutura reforça a própria temática do filme, já que ao mostrar o mesmo evento a partir de ângulos diferentes o filme evidencia como cada indivíduo enxerga apenas uma parte limitada do sistema e como a verdade total do plano só existe na cabeça do suposto arquiteto de tudo (o personagem do Hayden) que, no caso, também acaba derrotado.
Visualmente, ele já se distancia da fragmentação e até das heranças da montagem soviética dos dois filmes anteriores. Aqui, o Kubrick passa a confiar mais no plano, na continuidade interna da cena, nos travellings que atravessam paredes e seguem personagens em ambientes apertados.
A decupagem deixa de ser tão instável e passa a ser mais segura e centrada na movimentação humana e na blocagem dos atores dentro do quadro.
A câmera também já tem aquela qualidade “autônoma” que ele vai levar ao Iluminado e ao Lolita, no sentido dela acompanhar os personagens, mas ao mesmo tempo possuir uma consciência própria do espaço, como se soubesse antecipadamente para onde eles vão se mover.
O filme já traz, em estado embrionário, a essência que vai marcar grande parte do cinema do Kubrick. Esse olhar duro para a condição humana e essa desconfiança profunda em qualquer projeto de controle absoluto.
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GLÓRIA FEITA DE SANGUE (1957)
Uma das coisas mais poderosas do filme é que, apesar de ser claramente anti-guerra, ele não entrega esse discurso por meio do heroísmo ou da redenção.
O personagem do Dax é um idealista – justo, corajoso, íntegro – mas é um idealista sem qualquer possibilidade de heroísmo. Toda a força moral dele, a retórica brilhante e a coragem no front não significam nada diante de um sistema que já decidiu, de antemão, o destino daqueles três soldados.
O Dax luta, argumenta, expõe o absurdo, mas nada muda. O filme é sobre a impotência do indivíduo, mesmo quando esse indivíduo tem virtudes extraordinárias.
É uma tragédia em que os generais acima do Dax são homens mesquinhos, vaidosos, acomodados, justamente o tipo de gente que costuma se dar muito bem em estruturas hierárquicas rígidas.
O Kubrick filma tudo isso com uma estética muito específica. Ele queria que o filme tivesse o aspecto de um noticiário da Primeira Guerra, menos estilizado que The Killing, mais cru, e documental.
Ainda que não tenha alcançado um aspecto tão rústico, o filme privilegia luz natural e consegue evidenciar o abandono das trincheiras de modo bem realista.
Os movimentos de câmera nas trincheiras, com dolly, são tão fluidos e contínuos que acabam criando uma contradição interessante, já que enquanto a lama e o terreno são irregulares, a câmera se move como uma entidade externa, uma presença fria e quase mecânica.
Ela observa o general caminhando pela trincheira como se estivesse mapeando um sistema, registrando a geometria daquele ambiente opressor.
Esse tipo de movimento seguindo personagens por espaços estreitos vai virar uma espécie marca do Kubrick e, mais tarde, vai se tornar ainda mais extremo com o uso da steadicam e o seu movimento que de fato remete a uma entidade no Iluminado.
A cena do julgamento funciona como um contraponto completo às trincheiras. Se nas trincheiras a câmera desliza de modo fluido, no julgamento ela fragmenta tudo com closes, planos médios. Imagens que isolam personagens e quebram a noção de espaço ao criarem uma espécie de claustrofobia retórica. O julgamento se passa num salão amplo, mas Kubrick filma como se fosse uma jaula.
A caracterização dos ambientes reforça muito bem esse contraste estrutural entre quem controla e quem é controlado. O castelo dos oficiais é amplo, luminoso, quase palaciano, com planos mais abertos, diálogos mais secos e uma atmosfera de conforto distante da guerra real.
Já as trincheiras são um inferno, apertadas, barulhentas, sujas, cheias de corpos comprimidos. Um espaço em que os indivíduos perdem autonomia.
Apenas o Dax parece de fato capaz de transitar entre esses dois mundos. E, mesmo assim, ele transita sem jamais pertencer completamente a nenhum deles. Ele não se deixa contaminar pelo conforto dos oficiais e também não consegue salvar os soldados que representa. Ele é alguém moralmente íntegro num sistema projetado para destruir exatamente esse tipo de integridade.
Tudo isso funciona em grande parte por causa da atuação monumental do Kirk Douglas. É talvez o primeiro filme do Kubrick em que o peso da performance se torna central para o impacto da obra. O Douglas tem uma intensidade que nunca é melodramática, mas é uma força interior controlada e uma raiva lúcida que faz toda a diferença.
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SPARTACUS (1960)
Apesar de não ter sido um projeto do Kubrick (e sim do Douglas), é um filme que se encaixa muito bem no padrão temático das obras dele. Principalmente nessa questão dos indivíduos confrontando sistemas impessoais que os ultrapassam.
De um lado, o desejo de liberdade dos escravos. Do outro, a racionalização brutal do poder romano que se manifesta através de leis, exército, senado, rituais jurídicos e uma máquina administrativa que transforma pessoas em unidades descartáveis.
O Spartacus é um personagem que nasce no fundo da hierarquia, literalmente como mercadoria, e vai se tornando líder de uma massa que tenta reverter essa lógica.
Mas, como no Paths of Glory, o que triunfa no final não é a vitória concreta do indivíduo e sim uma espécie de “vitória moral” que não impede a derrota material. Ele não salva ninguém, não derruba Roma e nem reforma o sistema.
O que fica é um gesto simbólico, a recusa em se entregar, a solidariedade dos outros escravos dizendo “I’m Spartacus” para protegê-lo e a imagem do filho que sobrevive como promessa vaga de algo que talvez mude no futuro.
Toda a história da produção e do roteiro do Trumbo ajuda muito a entender por que o filme ganhou a fama de “épico marxista”.
A estrutura dramática é bem clássica: a classe dominante coloca os escravos – equivalentes aos trabalhadores – uns contra os outros, seja como gladiadores, seja como mão de obra descartável.
A rebelião surge quando essa lógica colapsa e desse movimento surge um herói proletário carismático. A cena dos escravos se levantando um a um e se declarando Spartacus é uma imagem fortíssima que remete diretamente ao silêncio dos artistas perseguidos pelo macartismo.
Ao mesmo tempo, o filme não é um panfleto puro. No momento em que o personagem passa a liderar essa massa, ele também cria um sistema, toma decisões pelo grupo e institui uma espécie de mini-Estado alternativo. O Rosenbaum chegou a escrever muito bem sobre isso.
A figura libertadora também vira, de certo modo, figura controladora. O que já antecipa essa visão mais cínica do poder e até ideologicamente libertária que o Kubrick vai radicalizar em filmes posteriores.
Esteticamente, o super technirama 70 é um formato que permite tanto closes com um nível absurdo de definição como também planos gerais amplos em que exércitos inteiros podem ser organizados como se fossem figuras num tabuleiro.
E o Kubrick de fato aproveita isso até o limite. Nos grandes planos de batalha, cada grupo de figurantes parece ter uma função específica, uma coreografia clara e quase matemática. Tudo é rigorosamente orquestrado para que o quadro tenha uma legibilidade pictórica muito forte.
A cena de batalha final é um belo exemplo do tipo de controle que o Kubrick busca. Em vez de sintetizar o movimento do exército romano em dois ou três planos emblemáticos, ele insiste em mostrar a formação completa. As colunas se reorganizando, os blocos se abrindo, a linha se fechando e os escudos se alinhando.
É quase um tutorial imagético de como uma máquina de guerra se monta. Ao mesmo tempo, os escravos são encenados como uma força mais orgânica e menos geométrica. E a própria violência do confronto não é muito estilizada. Ele nunca foge dos corpos caindo, dos choques diretos e da brutalidade física.
Não deixa de ser um filme paradoxal por alguns motivos. Foi um triunfo da indústria e um gesto de insubordinação (por causa de Trumbo), um épico popular e um drama político ambíguo e uma superprodução com cenários evidentemente falsos dirigido por um diretor obcecado por verossimilhança e controle.
Ainda assim, olhando hoje para a trajetória do Kubrick, é impossível não ver Spartacus como uma espécie de laboratório em grande escala. Um lugar em que ele testa como controlar milhares de corpos, como construir planos épicos e como filmar sistemas de poder em ação.
Tudo isso ainda preso às exigências de um star vehicle do Kirk Douglas, mas já apontando para o cineasta radical que viria logo depois.
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LOLITA (1962)
É um filme que tenta desmontar a narrativa romântica que o próprio Humbert cria sobre si mesmo.
Ele escreve no seu diário, formula frases poéticas, reveste o desejo com uma camada de cultura, citações e refinamento. Mas, na prática, o que ele sente é só ciúme, posse e paranoia.
Ele tenta controlar a Lolita – controlar com quem ela fala, para onde ela vai, o que ela faz na escola, com quem se relaciona – e nunca consegue de fato.
Quanto mais ele tenta apertar esse cerco, mais a situação degringola. Tudo isso se relaciona diretamente com o grande tema do Kubrick: o indivíduo que tenta controlar algo maior do que ele e acaba destruído pelo próprio dispositivo de controle que constrói.
O Humbert cria uma relação que, para ele, supostamente está sob controle, já que ele é o adulto, o dono da casa, é quem dirige o carro e assina os cheques, mas o tempo inteiro existem cadeias de controle acima dele que o atravessam, como a própria Lolita, o Quilty, as normas sociais e as instituições que o cercam.
O Quilty, nesse caso, é meio que a chave dessa leitura. Se o Humbert é o europeu culto, “civilizado”, que tenta racionalizar o desejo num discurso literário, o Quilty é o americano performático, espalhafatoso, cínico e, que não tem a necessidade de maquiar o próprio comportamento imoral.
Ele também abusa da Lolita, também é moralmente abjeto, mas o filme nunca o trata com a gravidade que trata o Humbert. Mesmo que ele passe o filme todo se disfarçando, faz isso apenas pra encarnar várias instituições de controle – a polícia, o sistema educacional, a psiquiatria – e manipular o Humbert.
O que o Kubrick faz, com isso, é colocar o Humbert na posição em que ele mesmo tenta colocar a Lolita, sob vigilância constante de um “olhar” que está sempre um passo à frente.
A Pauline Kael comenta sobre como o Sellers, nesses papéis múltiplos, “desenterra tudo o que o Humbert tenta enterrar”. Sempre que o Humbert pensa que vai conseguir recomeçar, esconder, fugir, mudar de cidade, de hotel, de contexto, aparece o Quilty, com uma nova máscara, para lembrar que não existe fuga possível.
Ou seja, não importa quão refinado seja o seu diário íntimo, a sua culpa, o seu discurso, a imoralidade da situação está sempre voltando à tona, de forma grotesca, cômica e quase farsesca.
Em termos de estrutura, a degradação do Humbert é construída com muita clareza. No início, ele está relativamente “composto”, escrevendo, encenando o fetiche como algo refinado.
No meio, já está paranoico, ciumento, preso em motéis e quartos, tentando controlar os passos da Lolita. No fim, aparece decadente, desesperado, implorando para uma Lolita grávida de outro homem fugir com ele. O arco é, literalmente, uma curva de perda de controle, tanto psicológica quanto social.
Muitos críticos apontam que, da metade pro final, o filme perde ritmo e se alonga em certas situações. Eu também acho que existe uma irregularidade, já que dá pra sentir que o Kubrick ainda está tateando esse equilíbrio entre comédia, drama e deslocamento moral. Mas a própria sensação de arrasto e desgaste acaba combinando com o estado do Humbert que está cada vez mais exausto e patético.
Em termos estéticos, é um filme surpreendentemente claustrofóbico para algo que, em teoria, possui a estrutura de um road movie.
Eles vivem fugindo, mudam de cidade, de hotel, de casa, de escola. Mas o Kubrick raramente abre o espaço, quase tudo se passa em interiores apertados, casas de classe média, quartos de hotel, carros, corredores.
Isso tem relação com as limitações de filmar na Inglaterra um filme que se passa nos EUA, mas também é claramente uma escolha dramática, já que tudo passa a sensação de uma prisão doméstica.
A fotografia é elegante, bem composta, às vezes até demais para um filme com esse teor cômico e sombrio. A Kael reclama disso também, dizendo que a imagem é refinada demais para a sujeira do tema e para a anarquia da comédia.
Visualmente, com certeza é um filme menos inventivo do que outros do Kubrick e que, em alguns momentos, chega a ficar meio correto demais.
No conjunto da obra do Kubrick, Lolita até pode ser um filme irregular e menos coeso, mas extremamente importante, já que também que não deixa de ser um laboratório para o tom satírico bem mais resolvido do Dr Fantástico que veio logo depois.
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DR. FANTÁSTICO (1964)
É quase um manual ilustrado dos sistemas de controle que perpassam todos os filmes do Kubrick. O que está em jogo não é só o indivíduo tentando controlar algo maior, mas um sistema inteiro desenhado para garantir o controle total que entra em autodestruição.
O filme funciona como uma cadeia de sistemas pensados para assegurar estabilidade que, na prática, transforma o mundo num barril de pólvora cuja explosão não depende mais da vontade de ninguém.
É ótimo como ele mostra que tudo isso começa com uma fragilidade humana extremamente banal e quase ridícula. O personagem do Hayden é um paranoico com problemas de masculinidade que transforma uma possível impotência ou insegurança sexual numa teoria geopolítica de contaminação dos “preciosos fluídos corporais”.
Ao mesmo tempo, na Sala de Guerra, o general vivido pelo George C. Scott está completamente excitado pela possibilidade de “ganhar” uma guerra nuclear como se fosse um jogo de tabuleiro.
E, no avião, um piloto caricaturalmente texano (que não deixa de ser o Slim Pickens sendo ele mesmo em algum sentido) trata a missão como se fosse mais uma aventura viril.
Tudo isso converge pra uma ideia bem clara da guerra sendo apresentada como uma fantasia masculina. Uma arena em que questões de potência, performance, virilidade e posse são agenciadas sob a roupagem de decisões estratégicas e patriotismo.
A estrutura do filme é simples e, ao mesmo tempo, muito precisa. Ele é montado alternando entre três espaços: a base de Burpelson em que nasce a ordem insana; o avião B-52, que executa a ordem; e a Sala de Guerra em que o presidente e seus conselheiros tentam, desesperadamente, desfazer o estrago.
Esses três ambientes formam um sistema fechado, compartimentalizado, em que a comunicação é precária ou inexistente.
A base não quer ouvir ordens de fora, o avião foi treinado para ignorar interferências externas em caso de alerta, e a Sala de Guerra reage, mas depende de códigos e canais que já foram cortados.
Isso gera a progressão dramática, já que quanto mais o filme corta entre esses espaços, mais o espectador percebe que cada ambiente pensa por si e é até racional ao seu modo, enquanto o conjunto é completamente irracional.
Esteticamente, o Kubrick diferencia bem esses três núcleos. A Sala de Guerra é o grande palco do poder com aquele cenário icônico do anel de luz suspenso, a mesa redonda, o mapa gigante ao fundo. A fotografia é extremamente contrastada, com muita contraluz, silhuetas recortadas, simetria e geometria forte.
É um espaço grandioso, monumental, a imagem perfeita de onde “os grandes homens” tomam decisões históricas. Só que esse espaço é habitado por figuras infantis, vaidosas, ressentidas e que discutem como crianças.
No avião, a abordagem é mais documental. A fotografia é mais granulada, escura, e os planos são fechados, colados nos rostos, nos painéis e botões. Os procedimentos técnicos são mostrados com precisão minuciosa. Nesse ponto, parece um filme sobre o trabalho de pilotos militares com aquele realismo procedural que o Kubrick gostava.
Na base militar, a decupagem fica num meio-termo entre esses dois polos. Não é tão grandiosa quanto a Sala de Guerra, nem tão claustrofóbica quanto o avião. A câmera às vezes assume angulações mais expressivas, com os contra-plongées do Hayden, enfatizando a paranoia dele, mas em grande parte a cena é montada de forma mais clássica.
A base é um espaço intermediário, tanto em função quanto em estilo. Não é o topo do poder, nem o campo de execução da ordem.
A presença do Peter Sellers em três papéis cria uma espécie de linha de tensão entre diferentes formas de controle. Como presidente, ele é o pólo razoável. Inseguro, um pouco ridículo, mas tentando manter alguma lógica no meio do caos, pedindo desculpas ao premier russo, tentando administrar o desastre diplomático.
Como Mandrake, ele é o sujeito apagado e burocrático, que percebe a gravidade da situação, tenta reverter, mas está preso a uma cadeia de comando que o impede de agir e depende de moedas, de telefone, de autorização e de hierarquia.
E como Dr. Strangelove, ele é o extremo. O cientista ex-nazista com uma pulsão autoritária quase incontrolável que representa o ponto em que conhecimento técnico se junta com ideologia totalitária.
É ele que, no final, descreve com entusiasmo o plano de refúgio com uma proporção de dez mulheres para cada homem, repovoamento seletivo, preservação das elites, tudo numa linguagem científica e muito excitada.
Essa cena final é uma síntese perfeita do filme. À medida que o Dr. Strangelove descreve a solução pós-catástrofe, ele vai se empolgando, deslizando de uma justificativa técnica para uma fantasia autoritária e sexual.
Ele fala de liderança, tradição, hierarquias e a mão direita dele começa, literalmente, a fazer a saudação nazista de forma involuntária. O gesto de “Mein Führer, I can walk!” é ao mesmo tempo uma piada e uma admissão. No momento em que o mundo acaba, ele sente, quase fisicamente, o desejo de reorganizar o futuro como uma nova estrutura de dominação.
E o filme corta disso para imagens reais de explosões nucleares ao som de “We’ll Meet Again”, uma música nostálgica, sentimental e completamente deslocada diante das imagens de fim do mundo. A promessa de reencontro e de continuidade afetiva é sobreposta a uma sequência de destruição irreversível.
A guerra nuclear, que deveria ser o fracasso definitivo da racionalidade militar, vira mais uma oportunidade de desenhar uma nova sociedade baseada nas mesmas ideias de poder, classe e gênero.
À primeira vista, o filme parece um filme muito diferente do Paths of Glory ou Spartacus por causa do tom. Mas embaixo desse tom, a lógica é a mesma. Indivíduos tentando operar dentro de sistemas que os ultrapassam completamente, cadeias de comando que produzem injustiça e catástrofe, e uma sensação de que, no final, não existe saída heróica.
Aqui, não existe sequer a vitória moral do protagonista, já que o mundo acaba e pronto. O que o filme deixa é a ideia de que, enquanto existirem estruturas de poder organizadas a partir de paranoia, masculinidade ferida e tecnocracia, o risco de autodestruição vai estar sempre à espreita.
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2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO (1968)
2001 representa o momento em que o Kubrick leva às últimas consequências tudo o que ele vinha apontando antes sobre controle, forma e desorientação do espectador, e transforma isso num filme que é quase um híbrido impossível entre épico de ficção científica e cinema experimental.
É o momento em que o Kubrick confia totalmente na imagem e no som por si, sem precisar de uma dramaturgia convencional como muleta. Boa parte dos diálogos do filme é banal e parece existir só para reforçar um cotidiano “normal” dentro de uma situação extraordinária.
Logo, o que importa é o que acontece visualmente. A dança coreografada das naves ao som de Strauss, a sensação de suspensão em gravidade zero, a relação entre corpos humanos minúsculos e estruturas gigantescas, a arquitetura geométrica e a trilha sonora funcionando mais como ritual do que como ilustração.
A Annette Michelson coloca o filme como exemplo de uma obra que leva o cinema para um patamar de experiência formal mais “pura” e distanciada da obrigação mimética de representar o real.
Um cinema em que ver passa a ser uma descoberta em si e em que a viagem (no tempo, no espaço, na percepção) é mais importante do que qualquer “mensagem final”.
O filme tem, claro, um conteúdo filosófico. Fala da origem do homem, da relação com a técnica, com o cosmos e com o desconhecido. Mas ele não se organiza como uma alegoria simples em que cada elemento tem um significado fixo.
Ele está menos interessado em explicar o sentido da existência do que em provocar um estado de percepção alterada e uma reflexão que nasce justamente da desorientação narrativa.
Essa desorientação não é anárquica, já que a estrutura é extremamente clara, dividida em quatro grandes blocos: a pré-história dos hominídeos que descobrem o uso do osso como ferramenta/arma, a etapa das viagens de rotina no espaço com a descoberta do monólito na Lua; a missão a Júpiter com os astronautas e o HAL 9000; e o segmento final, em que o Dave atravessa o “portal” e termina no quarto neoclássico-futurista antes de se transformar na Star Child.
O corte que liga a primeira parte à segunda é talvez a elipse mais famosa da história do cinema. O osso arremessado ao céu se transforma num satélite em órbita.
Tecnicamente, o raccord é feito pela forma e pelo movimento – um objeto alongado girando no ar, substituído por outro objeto alongado girando no vácuo – mas o que importa aqui é o abismo de tempo entre um plano e outro.
Milhões de anos são apagados num corte, como se todo o percurso da evolução tecnológica humana fosse um parêntese entre duas fases de um mesmo gesto: usar ferramentas para ampliar o controle sobre o mundo.
Tematicamente, o osso e o satélite são, de certo modo, o mesmo objeto, são extensões do corpo que permitem dominar, atacar e ocupar o espaço.
O controle do espaço – do espaço físico imediato ou do espaço sideral – é sempre uma questão de poder. O filme parece sugerir que, apesar de toda a sofisticação técnica, esse impulso continua o mesmo.
A brutalidade da pré-história se refina, se torna cálculo, engenharia, protocolo, mas a lógica de fundo – ampliar o alcance da ação humana – permanece.
Isso também volta na figura do HAL, que é literalmente uma inteligência de controle. Uma IA construída para garantir o sucesso da missão, que entra em crise e decide matar os tripulantes para preservar o propósito que lhe foi dado.
O HAL é, ao mesmo tempo, vítima e executor de um sistema de controle estatal. A ordem que ele recebe é contraditória, ele colapsa tentando conciliá-las, e, nesse colapso, elimina a tripulação.
Do ponto de vista formal, o filme é todo construído a partir de uma câmera que não está “do lado” dos personagens. Ao contrário do que acontecia em filmes como Paths of Glory ou The Killing, em que o movimento de câmera acompanha o indivíduo, aqui a câmera é distante e quase clínica.
Ela olha para os personagens como elementos de um diagrama, como parte de uma arquitetura maior. A luz é asséptica, os ambientes são iluminados de modo homogêneo, quase sem dramaticidade, e isso reforça a sensação de impessoalidade.
O enquadramento costuma incluir chão e teto, enfatizando o confinamento. É como se a abordagem deixasse claro que o homem já não é o centro da imagem, mas apenas um detalhe preso dentro de formas geométricas que o ultrapassam.
O uso de 65mm, com alta definição e grande profundidade de campo, permite que tudo esteja em foco. Personagem, máquina, arquitetura, horizonte. Nada se perde na penumbra e não existe “refúgio” visual.
A reconfiguração dos eixos horizontais e verticais em função da ausência de gravidade também é crucial. O Kubrick não trata a nave como um cenário normal em que os personagens flutuam, mas de fato reorganiza o próprio conceito de perspectiva com planos inclinados, personagens andando pelo teto e corpos girando em torno de um eixo circular.
O ritmo é outro ponto em que o filme se coloca frontalmente contra a gramática clássica, já que várias ações são dilatadas até o limite. Vemos a aeromoça dando cada passo, lentamente, até alcançar a caneta flutuante; o acoplamento da nave é mostrado em tempo quase real, como um balé mecânico; acompanhamos o Dave assistindo o vídeo de aniversário dos pais do começo ao fim. Nada é resumido para acelerar a narrativa.
É um filme em que o Kubrick de fato começa a usar mais o tempo como matéria plástica, coisa que ele vai levar adiante em Barry Lyndon, Nascido para Matar e De Olhos Bem Fechados.
A sequência do Stargate é, talvez, o momento em que o filme mais se aproxima diretamente de uma estética experimental, remetendo até ao trabalho do Brakhage em algum nível.
O Dave se aproxima de Júpiter, o monólito aparece em órbita, e quando a cápsula se alinha com ele, abre-se um túnel de luzes e texturas que parece tanto um delírio psicodélico como uma passagem metafísica.
O efeito de slit-scan (a técnica em que uma fenda estreita é colocada no negativo enquanto a câmera se move diante de painéis de luz) transforma o quadro numa sucessão de linhas, manchas e explosões cromáticas que não representam nada de reconhecível, mas produzem uma sensação física forte.
Entre essas abstrações, surgem imagens de vales, montanhas, superfícies estranhas que podem ser paisagens alienígenas ou simplesmente alucinações visuais do personagem. É uma sequência que literalmente suspende qualquer referência estável e coloca o espectador num fluxo puro de luz e som.
Depois disso, o filme cai naquele quarto neoclássico “errado” com piso e mobília clássicos franceses, iluminação futurista e silêncio quase absoluto. O Dave aparece em diferentes estágios de envelhecimento, vendo a si mesmo num outro ponto daquele mesmo espaço até chegar ao leito de morte com o monólito diante da cama.
O quarto parece uma simulação, uma réplica imperfeita da ideia de “quarto humano” construída por uma inteligência alienígena ou divina que não domina completamente os códigos do nosso meio.
Tempo e espaço ali não funcionam como no resto do filme, já que o Dave se vê em diferentes idades, envelhece em poucos cortes, como se estivesse deslocado da linha cronológica normal. E, no momento final, ele estende a mão para o monólito, se transforma no feto luminoso, e o filme termina com a Star Child encarando a Terra.
Se tomarmos o monólito como um artefato de controle da evolução – uma espécie de catalisador de saltos evolutivos – esse final pode ser lido como a ideia de que aquela inteligência superior capturou o Dave, o recolocou num ambiente-limite e o fez renascer como uma forma superior de vida.
É um filme que trata de controle em múltiplas escalas – do osso ao satélite, do HAL ao monólito, do protocolo militar ao destino cósmico – e, ao mesmo tempo, esvazia a ideia de que o homem esteja no centro de qualquer uma delas. O personagem humano é só uma etapa, um intermediário e um ser em trânsito entre forças que o excedem.
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LARANJA MECÂNICA (1971)
Em termos ideológicos, é o filme mais direto do Kubrick. O interesse dele em denunciar os perigos de um Estado que se arroga o direito de “consertar” indivíduos à força é bem direto e evidente.
Ele mesmo dizia que a forma mais eficaz de criticar esse tipo de autoritarismo é escolher como vítima alguém absolutamente detestável.
Nesse ponto, o Alex é tudo o que ninguém não quer defender (ladrão, estuprador, sádico e manipulador). Em tese, é o candidato perfeito à cura comportamental. Por isso, quando você percebe que o que fazem com ele é moralmente inaceitável, mesmo nesse caso extremo, o argumento contra o Estado controlador fica ainda mais forte.
Todo o arco do filme é organizado em torno dessa tensão entre liberdade e controle. A primeira parte mostra a violência “livre” do Alex e dos droogs, a segunda mostra o Estado substituindo o livre-arbítrio pelo condicionamento e a terceira devolve o Alex “curado” para um mundo que agora é hostil a ele, mas continua essencialmente cruel e vingativo.
A figura do padre na prisão é quase a única voz mais consciente, já ele insiste que virtude sem escolha não é virtude. A técnica Ludovico não transforma o Alex em alguém melhor, mas o transforma em alguém que perde o seu livre arbítrio e logo qualquer possibilidade de uma recuperação moral genuína.
Quando o governo percebe que se queimou na opinião pública por causa do que Alex sofre, eles simplesmente mudam de estratégia. Em vez do Estado admitir o erro, coopta o próprio Alex.
Isso tudo se encaixa muito bem na visão política meio libertária e até meio anarquista do Kubrick. Ele desconfiava profundamente de instituições, via a autoridade estatal como algo inevitavelmente tendendo à repressão e achava que sistemas jurídicos e políticos eram lentos e frequentemente inúteis.
Ao mesmo tempo, ele não idealiza o indivíduo. Então o filme não é “pró-delinquente” nem simplesmente “anti-Estado” num sentido simplista. É um filme que atesta que se o Estado é autoritário, independente da ideologia, o resultado é deformado.
O ministro é um político de direita, tecnocrático e cínico. O escritor é um intelectual de esquerda, fanático, disposto a torturar Alex para expor o governo. Os dois são igualmente dogmáticos e instrumentalizam o corpo do Alex para suas agendas. Não existe lado bom, mas estratégias de poder diferentes sustentadas pela mesma lógica de controle.
Visualmente, é provavelmente um dos filmes mais crus do Kubrick em termos de fotografia, junto com o Nascido para Matar. A luz é muitas vezes chapada, natural e sem grandes contrastes.
O que é mais estilizado não é tanto a fotografia, mas a direção de arte, o figurino e as locações. Uma mistura de concreto brutalista, interiores kitsch, cores fortes, pop art, erotismo vulgar, propaganda e design futurista barato.
O mundo do filme parece um colapso de tempos e estilos com arquitetura de bloco de conjunto habitacional socialista, esculturas e objetos pop sexualizados, posters, roupas brancas de gangue estilosa, perucas e cílios falsos. É um futuro que parece feito de sobras do presente que reforça a sensação de decadência.
Ao mesmo tempo, o Kubrick não deixa a imagem simplesmente natural. Ele distorce o real com lentes grande angulares, com slow motion, com acelerações de imagem e com encenações coreografadas.
A grande angular, em especial, deforma espaços e corpos, aumenta a sensação de estranhamento e claustrofobia, já que corredores ficam mais fundos, os rostos mais alongados e os ambientes mais distorcidos.
A violência é tratada num registro abertamente estilizado, o que é fundamental para o efeito moral do filme. O uso de slow motion na briga entre Alex e os droogs no lago, por exemplo, transforma a pancadaria numa espécie de balé.
A cena dos ataques noturnos é coreografada com música clássica enquanto o estupro e espancamento do escritor e da esposa são encenados como uma espécie de número musical pervertido (com o Alex cantando Singin’ in the Rain).
Tudo isso aproxima a violência de um espetáculo grandiosa e coloca o espectador próximo do ponto de vista do Alex. Só que, no momento seguinte, o choque moral vem.
O Kubrick fala disso nas entrevistas ao Ciment, sobre a ideia de que nazistas ouviam Beethoven, tinham alta cultura, mas isso não os impedia de cometer atrocidades. A associação da música “nobre” com imagens brutais é um comentário direto sobre o fracasso da cultura como garantia de moralidade.
A trilha com versões eletrônicas de música clássica reforça esse deslocamento. Beethoven, Purcell e outros são “recodificados” eletronicamente, transformando o repertório do concerto em trilha de um futuro degenerado.
O final, na versão do filme e da edição americana do livro, é coerente com esse universo. O Alex não se torna “bom”, não amadurece, não abandona a violência por conta própria. O que acontece é um rearranjo de forças, já que ele passa de criminoso autônomo a criminoso domesticado pelo Estado.
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BARRY LYNDON (1975)
Se formos pensar em Barry Lyndon dentro da chave do cinema do controle que perpassa a obra do Kubrick, o Redmond é quase o inverso de vários protagonistas anteriores.
Ele não é alguém esmagado de cara pelo sistema, mas a pessoa que tenta usar o próprio sistema a seu favor. Ele entende que nobreza, exército, casamento, patronagem são, na prática, palcos.
E aí aprende a performar aquilo que se espera de um “cavalheiro”, de um oficial, de um aristocrata, mesmo não tendo origem, nem formação e nem “direito” a isso.
Ele é bom soldado quando precisa, mas deserta quando percebe que não existe futuro ali para ele. Finge ser um viajante distinto, mas mente, trapaceia, joga e manipula quando é oportuno.
Em certo sentido, ele expõe a superficialidade dessas instituições ao deixar claro que o que vale não é tanto quem você é, mas o quão bem você incorpora um papel.
Mas ao mesmo tempo em que é malandro, oportunista e não hesita em usar e descartar outras pessoas, ele não é um monstro absoluto. Ele tem afetos, fraquezas, carências e, principalmente, um desejo de pertencimento.
Não é um herói ou um vilão, mas um sujeito comum jogado num mundo de aparências rígidas que é sempre enganado pelo próprio destino.
O Kubrick olha pra ele sem um sentimentalismo completo, mas também sem demonização total. Isso faz com que o espectador nunca feche completamente o personagem.
Outro elemento que reforça esse sentido de destino que atropela as ambições individuais é o narrador. Ele antecipa eventos cruciais que reforçam uma gravidade dramática de várias situações.
Quando ouvimos, por exemplo, que o filho do Barry vai morrer, ainda estamos vendo o menino vivo, brincando e em cenas quase banais. De repente, tudo ganha um peso trágico e cada gesto passa a ser lido como a última vez.
Esse narrador, que entrega “spoilers” o tempo todo, funciona como uma espécie de voz do destino, já que sempre coloca o Barry num universo em que o fim já está decidido. A vida dele parece atravessada por uma força maior, histórica, social, moral, que vai puxando os fios.
O que interessa, a partir dessa estrutura, não é “o que vai acontecer”, mas “como acontece”. O filme não está preocupado em te enganar com twists de roteiro, mas o investimento dele está em como cada situação é construída visualmente, no ritmo e no peso dos planos, em como isso afeta sensorialmente o espectador
A cena da sedução da Lady Lyndon é um grande exemplo desse poder absolutamente visual do filme.
O narrador já nos disse que o Barry vai se casar com ela, que vai usá-la como degrau social e quando os dois ficam frente a frente pela primeira vez, não existe diálogo entre eles. Tudo é alongado ao máximo e a situação se resolve inteiramente por olhares e pequenas hesitações. O gesto dele se aproximando, o dela desviando e depois aceitando com a música do Schubert costurando tudo.
O Michel Ciment compara essa cena ao cinema mudo enquanto o próprio Kubrick diz que o que ela sente por ele é puramente físico e que por isso não havia necessidade de diálogo. O desejo, a encenação social e o cálculo ficam todos ali na superfície da imagem.
Visualmente, o filme virou um marco e um clichê ao mesmo tempo. A fotografia do Alcott ganhou o Oscar e foi muito comentada pelo uso da luz natural e da luz de velas.
Nas cenas noturnas, a famosa lente 50mm f/0.7 – adaptada de uma lente usada pela NASA – permite filmar com uma abertura absurdamente grande, captando a luz das velas quase direto e com pouquíssima assistência de luz artificial.
O resultado é uma imagem com profundidade de campo baixíssima nessas cenas, em que só uma faixa do quadro está em foco, e o restante se dissolve num blur suave e quente.
O tom amarelado, a vibração da chama e as sombras suaves no rosto dos personagens contribuem para uma sensação de intimidade e, ao mesmo tempo, de clausura.
Já nas cenas internas diurnas, o Kubrick faz o caminho oposto. Ele coloca luzes só fora das janelas, com difusores, simulando luz natural entrando e evita ao máximo qualquer fonte de luz que não possa ser justificada diegeticamente.
Os exteriores parecem quadros do século XVIII ganhando vida. Ele se inspira diretamente em pintores como Gainsborough, Reynolds, Watteau, com composições amplas, figuras pequenas no meio de paisagens bucólicas em enquadramentos em que tudo está em foco, sem hierarquia óbvia.
Conceitualmente, isso também prende o Barry. Assim como no 2001 o Kubrick confinava os personagens dentro de estruturas geométricas impessoais, aqui ele aprisiona o protagonista dentro de quadros que remetem à pintura aristocrática.
É como se Redmond estivesse sempre sendo “emoldurado” por um mundo que não é o dele, tentando se encaixar literalmente numa paisagem social que o rejeita.
Em paralelo a esse controle formal quase obsessivo, a narrativa vai esmigalhando o Barry aos poucos. O casamento com Lady Lyndon garante título, dinheiro, prestígio, mas também instala um ressentimento na figura do enteado, o Lord Bullingdon.
O duelo final com o enteado resume tudo. O garoto, que desde o início representa a aristocracia “de sangue”, castra simbolicamente o intruso.
Barry, que passa o filme inteiro usando o corpo para se impor – brigas, batalhas, duelos, bailes, seduções – termina amputado, sem perna, sem título e sem lugar na sociedade.
O epílogo com a cartela final fecha o filme com um humor muito seco e propício. A legenda lembra que tudo aquilo se passou “no reinado de George III”, num período específico de conflitos políticos, guerras, rigidez aristocrática e conclui dizendo, em essência, que todos – nobres, plebeus, heróis, canalhas – agora estão mortos, iguais.
Toda aquela intriga, aquela ambição e sofrimento, não significam nada diante do tempo. É um comentário bem típico do Kubrick. Uma espécie de zoom out máximo, não mais da figura para a paisagem, mas da história individual para a História com H maiúsculo.
O indivíduo pode até tentar burlar o sistema, passar entre as brechas e representar papéis diferentes, mas no fim ele é só mais um corpo que se apaga no meio de forças maiores.
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O ILUMINADO (1980)
Querendo ou não, o terror combina muito com o cinema do Kubrick. Em vários dos seus filmes, os personagens estão submetidos a sistemas que os controlam. O sistema militar, o político, o científico e o tecnológico.
No terror, essa lógica aparece deslocada pra uma força invisível ou sobrenatural. Os personagens sentem que estão sendo controlados por algo que não entendem totalmente.
No Iluminado, o Kubrick usa a premissa do livro pra radicalizar isso, já que o foco não está no arco psicológico clássico do Jack, mas nessa força difusa que parece reorganizar tudo.
O hotel vira um microcosmo fechado, um sistema autônomo. Existem mistérios explícitos – como o quarto 237 – e outros muito mais sutis.
A arquitetura não faz sentido (portas levam a lugares impossíveis, janelas aparecem onde não poderiam existir, corredores se reorganizam). A decoração é cheia de padrões, cores agressivas, símbolos que parecem se repetir ou se comunicar entre si.
Nada ali transmite estabilidade. É como se o espaço estivesse constantemente sabotando qualquer tentativa de orientação racional.
Isso conversa diretamente com o tema da família nuclear se desestabilizando. A presença do hotel não cria do nada os problemas daquela família, mas amplifica tudo que já estava ali.
O Jack se torna cada vez mais autoritário e esse autoritarismo vira um delírio, uma espécie de vocação até. O Danny, que já tinha uma sensibilidade particular, passa a sofrer fisicamente com as visões.
E a Wendy, que já era uma figura mais passiva, vai sendo empurrada pra uma posição de submissão e terror absoluto. É como se o hotel estivesse interessado em destruir aquele núcleo doméstico por dentro.
O Kubrick já tinha filmado a falência de sistemas de ordem em vários filmes. Aqui, o sistema atacado é o lar. O hotel, fisicamente inclusive, corrompe a ideia de casa como espaço de acolhimento. Ele é grande, iluminado, bonito, mas profundamente hostil.
Em termos técnicos, o uso da steadicam permite um movimento fluido, estabilizado e quase indiferente ao terreno. O inventor do aparelho, Garrett Brown, operou várias dessas cenas em que a câmera parece não pertencer ao espaço físico que percorre.
Mesmo quando o filme não usa steadicam, como nos planos aéreos iniciais em que a câmera desvia das árvores e parece caçar o carro na estrada, a sensação é de uma câmera que não está apenas seguindo os personagens, mas observando, perseguindo e até antecipando os seus movimentos.
Os movimentos seguindo o Danny no triciclo tornam isso ainda mais explícito. Quando o Danny para diante do quarto 237, a câmera para um pouco depois, quase como se precisasse reagir.
Em outro momento, ela se distancia, deixa ele ir embora, como se soubesse que no corredor seguinte o Danny terá a visão das irmãs mortas.
Um ponto que ajuda a amarrar tudo isso de forma mais teórica é o que o Paul Sunderland observa sobre esse uso da steadicam. Para ele, a imagem produzida por esse aparato promove um deslocamento da realidade material do mundo porque a câmera deixa de negociar com o terreno que atravessa.
Ela não reage ao atrito do chão, às irregularidades do espaço e à gravidade do corpo que a opera. É uma imagem estabilizada demais e, justamente por isso, estranha.
No contexto do filme, esse deslocamento reforça a sensação de que a câmera não pertence ao hotel como os personagens pertencem.
Ela flui pelos corredores como uma presença que não sofre as limitações físicas daquele espaço, o que a aproxima da própria lógica sobrenatural do Overlook.
A steadicam, nesse sentido, vira quase uma entidade. Uma presença que paira pelo hotel. No labirinto, no final, isso fica ainda mais evidente quando a câmera parece conhecer o espaço melhor do que os personagens.
Essa sensação é reforçada pela estética geral da obra, já que o filme é um terror banhado a luz. Quase tudo é bem iluminado, com profundidade de campo alta e tudo em foco. Não existe aquela proteção ou mistério do escuro.
Mesmo as cenas mais claramente sobrenaturais – o banheiro vermelho, a mulher do quarto 237, o baile – são filmadas com uma luz limpa. O absurdo acontece, mas a imagem não se “assume” como um elemento sombrio em termos convencionais.
Isso cria um desconforto enorme porque os personagens estão sempre expostos. A câmera vê tudo e o espaço se revela por inteiro.
Paradoxalmente, isso não diminui a tensão, mas aumenta. Vemos a loucura do Jack claramente, o medo da Wendy sem filtros e os machucados do Danny. Não existe um esconderijo visual ou uma mera ideia de sugestão.
Até o uso do zoom dialoga com isso. O Kubrick sempre usou zoom, mas aqui ele ganha um caráter quase metafísico.
Em certos momentos, especialmente nos planos do Jack parado, com aquele olhar fixo e perturbador, o zoom parece menos um gesto contemplativo e mais um sinal de que algo está tomando posse da cena. Muitas vezes, ele vem acompanhado de um som agudo e estranho que reforça essa ideia de invasão.
Outro elemento fundamental é a ambiguidade dos cenários e ambientes. Objetos mudam, cores se alteram, elementos surgem e desaparecem.
A máquina de escrever muda de cor, cadeiras aparecem do nada, adesivos somem, personagens entram por um lugar e saem por outro.
Tudo isso poderia ser erro de continuidade, mas no caso do Kubrick é difícil acreditar que seja descuido. Esses detalhes alimentam teorias infinitas, algumas ótimas, outras completamente delirantes (como mostra o documentário Room 237).
Mas o filme não pede uma decifração final. Esses detalhes funcionam mais como sintomas. Eles reforçam a ideia de que o hotel não é confiável e de que o espaço está vivo, reorganizando a realidade ao seu redor. As cores e texturas dominam os quadros, muitas vezes mais do que os próprios personagens.
Em relação a todo o final e a foto do Jack, não parece que ele viaja no tempo ou algo assim. Parece que ele se perde nos imaginários do lugar.
O hotel foi construído sobre um cemitério indígena, carrega rastros de violência, de genocídio, de apagamento histórico (presente, inclusive, na iconografia dos cenários).
Ao mesmo tempo, carrega o imaginário glamouroso dos anos 20, dos bailes, da elite branca. Essas camadas coexistem e personagens como Grady (e agora, talvez o próprio Jack) parecem vagar por esses rastros sem identidade fixa.
Como o Dick Hallorann diz no começo, certos lugares guardam marcas. O Iluminado é um filme sobre espaços que acumulam violência e ambientes que moldam comportamentos.
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NASCIDO PARA MATAR (1987)
Assim como Paths of Glory, é um filme de guerra anti-guerra, só que filtrado por uma sensibilidade bem diferente. Lá ainda existia uma espécie de idealismo encarnado no personagem do Kirk Douglas, cuja virtude esbarrava numa instituição corrupta.
Aqui, o olhar é muito mais desencantado. O Kubrick está menos interessado em apontar “injustiçados nobres” versus “vilões de farda” e mais em mostrar como um sistema inteiro é construído para transformar seres humanos em ferramentas e engrenagens.
Nesse sentido, o filme dialoga mais com Laranja Mecânica do que com Paths of Gloy. Se lá o condicionamento era voltado para pretensamente curar o indivíduo da violência (e acabava destruindo o livre-arbítrio), aqui o condicionamento é o oposto. É uma doutrinação para legitimar e canalizar a violência.
O Pyle, nesse sentido, vira uma figura-chave. Ele é o “defeituoso” do sistema. Gordo, descoordenado, tímido e medroso. No começo ele fracassa em tudo, apanha, é punido e atrapalha o pelotão inteiro.
Quando finalmente “aprende”, se torna um bom atirador, desmonta e remonta o fuzil com eficiência, acerta todos os alvos, começa a encarnar o ideal técnico do fuzileiro e, justamente nessa hora, enlouquece.
A sequência final do bloco da ilha é perturbadora porque mostra uma espécie de fusão total entre homem e arma. À noite, no banheiro, ele recita as frases do treinamento, acaricia o fuzil, fala com ele, como se tivesse incorporado a lógica do Corpo de Fuzileiros a um ponto tão extremo que a única saída fosse usar essa violência contra o próprio sistema.
Em relação a estrutura do filme, ela reforça a ideia de blocos relativamente autônomos. A primeira metade em Parris Island é quase um filme fechado sobre o processo de condicionamento (o tratamento Ludovico do Laranja Mecânica às avessas).
A segunda, no Vietnã, é outro filme. Novo espaço, novos personagens em destaque e novas dinâmicas. O Joker já estava lá desde o início, mas ele não era exatamente o foco. Na segunda parte ele assume o centro da narrativa como se o filme mudasse de eixo.
E mesmo na parte da guerra a progressão dramática não é totalmente clássica. Existem sequências que não avançam o enredo de forma tradicional, mas servem para construir ambiente, rotina, humor mórbido e tédio,
O Joker, na segunda parte, sintetiza muito bem uma certa individualidade kubrickiana. Ele é ao mesmo tempo soldado e jornalista. Participa da engrenagem militar, mas também a observa, escreve frases de efeito sobre a guerra, mas é cobrado a produzir textos que “levantem a moral da tropa”.
Ele usa um capacete com “Born to Kill” e, ao mesmo tempo, um broche da paz no uniforme. Não é um herói pacifista escondido no exército, nem um psicopata entregue à máquina, mas alguém que tenta manter algum mínimo senso de individualidade, algum humor e algum distanciamento dentro de um sistema que exige alinhamento total.
Ele também participa da lógica de punição coletiva em relação ao Pyle, mas também é o único que parece ver, depois, o absurdo disso tudo e o ajuda de algum modo. Não é “o bom” ou “o mau”, mas um sujeito que encarna esse meio-termo incômodo, típico de alguns personagens do Kubrick.
Outro ponto importante é como o filme trata a guerra como algo fabricado e narrativo. O Joker trabalha para uma revista militar, participa de reuniões de pauta em que os superiores deixam bem claro que querem notícias que vendam o Vietnã como uma campanha bem-sucedida e controlada.
Ao longo da segunda parte, vemos equipes de filmagem registrando os soldados, pedindo depoimentos pra câmera e os próprios fuzileiros performam um discurso meio delirante, meio publicitário com slogans, piadas e frases de efeito sobre matar vietnamitas.
A guerra, nesse sentido, não é só um campo de batalha, mas também uma produção imagética com briefings, fotos posadas e até linguagem padronizada. O Kubrick, que sempre se interessou pela ideia de como sistemas produzem discursos, usa esses momentos para mostrar que o Vietnã, além de massacre real, funciona também como um espetáculo controlado.
Esteticamente, o filme acompanha essa proposta de realismo controlado. Em Parris Island, a decupagem é rigorosa, com poucos movimentos de câmera gratuitos, composição simétrica e enquadramentos limpos.
Mas a fotografia é, geralmente, crua e com uma luz muito limpa. A textura lembra um pouco o Laranja Mecânica, só que sem as distorções mais agressivas de grande angular e sem os artifícios de montagem que quebravam a realidade.
Do modo como o sargento ocupa o quadro e os recrutas se alinham até a forma como o espaço repete cama após cama, armário após armário, reforça a ideia de padronização e de linha de montagem humana.
No Vietnã, essa câmera fica um pouco mais próxima dos corpos. O Kubrick usa steadicam, mas não como no Iluminado em que a câmera flutuava pelos corredores. Aqui ela trepida um pouco e acompanha a marcha dos soldados em terreno irregular.
O final é um fechamento perfeito desse ciclo de desumanização. A sequência da sniper vietnamita isola o pelotão entre ruínas com um inimigo invisível que vai derrubando um por um.
Quando eles finalmente localizam a atiradora, ela é uma jovem, ferida, agonizando, pedindo para ser morta. Ninguém quer se aproximar e a decisão recai sobre o Joker, que hesita, mas no fim executa.
Logo depois, vemos o pelotão caminhando à noite por um cenário devastado cantando em coro a música do Mickey Mouse Club. Uma canção infantil, de programa de TV, usada para embalar aquele desfile de sombras armadas.
É uma cena claramente mais estilizada do que o resto do filme, justamente porque funciona como um comentário direto de como o horror virou rotina a ponto de ser cantado com jingle de infância.
A força desse final está nessa justaposição entre a infância pop americana, símbolo de inocência, integrada num cenário de destruição total. Os rostos dos soldados praticamente não aparecem, eles são silhuetas anônimas atuando como um corpo coletivo marchando.
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DE OLHOS BEM FECHADOS (1999)
Dentro da lógica dos indivíduos controlados que atravessa a filmografia do Kubrick, o Bill é menos um rebelde e mais um homem perfeitamente integrado à sua classe que por algumas noites tenta escapar dessas fronteiras e descobre que não tem tanto espaço assim para sair do trilho.
Ele é um médico, mora em um apartamento grande em Manhattan, atende pacientes ricos e circula em festas de elite. O casamento com a Alice, apesar de ter conflitos, é o arranjo que garante toda a identidade dele de marido, pai e profissional bem-sucedido.
Quando ela admite ter desejado um marinheiro – e que, por um momento, teria sido capaz de abandonar tudo por um encontro com esse homem -, o que se rompe não é só a ideia de fidelidade, mas a ideia de controle sobre a realidade da esposa, sobre o corpo dela e sobre o papel dele como “homem suficiente”.
A partir daí, toda a noite dele vira um teste de ego. Como se ele precisasse provar, para si mesmo, que também pode ser desejado, que também pode trair e que também pode atravessar classes e fronteiras sexuais.
Só que em cada tentativa de transpor um limite, o filme lembra que existe uma estrutura maior que o impede.
Quando se aproxima de uma prostituta, a cena parece caminhar para um adultério “simples” e quase banal, mas acaba interrompida, e mais tarde ele descobre que ela está contaminada por HIV. Logo, aquela via de transgressão se revela perigosa.
Quando ele é puxado para dentro daquela sociedade secreta (uma classe mais alta do que a dele), é rapidamente desmascarado como intruso, humilhado e depois ameaçado de forma velada.
O protagonista não pertence àquele mundo e também não é aceito no topo. Ele está preso numa faixa muito específica de classe e o filme vai mostrando, de forma muito concreta, que essa faixa é uma cerca.
A estrutura narrativa reforça muito bem essa sensação de falso movimento. O filme acompanha dois ou três dias das vidas de Bill e Alice com ênfase nas duas noites em que ele vaga pela cidade.
Superficialmente, parece um filme “solto” nesse sentido, já que o protagonista anda, encontra alguém, aquele encontro leva a outro lugar, outro encontro e outro ambiente. Não é um filme de trajetória tão clara, parece mais um fluxo de episódios e situações específicas.
Só que, à medida que observamos tudo, percebemos que o protagonista está sempre voltando a pontos parecidos. Volta para a mesma rua, para o mesmo clube de jazz, para a mesma loja de fantasias, refaz os trajetos do táxi, tenta revisitar os espaços da orgia.
É como se a cidade fosse grande, mas o percurso dele fosse um circuito fechado e um labirinto de poucas ruas. O Nicolas Saada fala muito sobre isso, que o espectador sente vontade de seguir o Bill como se ele estivesse sendo guiado por um impulso próprio, mas ao mesmo tempo suspeita que esse instinto responde a uma força maior e mais abstrata que o mantém em uma órbita específica.
O filme parece controlado e solto ao mesmo tempo, como o próprio personagem. Ele acredita estar tomando decisões impulsivas, mas na prática gira em torno do mesmo eixo (o casamento, a classe, o trauma da confissão).
Esse mecanismo de suspense meio hipnótico com lógica de sonho aproxima muito o filme do Lynch. O subgênero em que o ele encaixa (thriller erótico e investigação meio noir contaminada por desejo) é um terreno que o Lynch também explora, mas sempre deslocando pro onírico.
O Kubrick faz algo semelhante à sua maneira. Ele não explica totalmente certas motivações, hierarquias e ameaças enquanto combina elementos de filme de gênero (conspiração, sociedade secreta, personagem perseguido) com uma atmosfera de paranoia constante.
Vários elementos (máscaras, espelhos, cores específicas, músicas recorrentes) vão ganhando status de signo, como se o filme criasse uma gramática simbólica própria, mas que nunca se fecha numa chave única. O que também é algo bem Lynchiano por si só.
A sequência da mansão é o ápice dessa lógica onírica. Desde o deslocamento para aquele espaço (a estrada, o portão, a senha), passando pelo ritual com música litúrgica, pela coreografia dos participantes, até a “descoberta” do Bill e a sua exposição. Tudo é filmado como se estivéssemos vendo uma encenação sacramental de algo que não se deixa traduzir facilmente em termos sociais diretos.
O erotismo é frio e sem afeto, com gestos impecavelmente coreografados e sem nenhum tipo de intimidade. O sexo, ali, atua mais como uma imagem e até redenção impossível.
É o desejo como projeção. Por isso mesmo é um erotismo que não satisfaz, só alimenta fantasias, especialmente a fantasia masculina ferida do protagonista que tenta purgar o desejo não satisfeito da sua esposa, exatamente como no Estrada Perdida, do Lynch.
Visualmente, esse é talvez o filme mais assumidamente estilizado do Kubrick, mas é uma estilização que parte muito bem de elementos práticos, como as luzes de Natal, vitrines coloridas, lâmpadas, abajures e fachadas iluminadas.
Como a história se passa no período natalino, o Kubrick e o Larry Smith enchem o quadro de pequenas fontes de luz coloridas no fundo.
Através de um uso muito meticuloso do foco e de processos de laboratório – em especial o push processing, aumentando o contraste e o grão da película – essas luzes ganham uma textura meio líquida, quase alucinada, que casa perfeitamente com o estado mental do Bill.
Ele anda pela cidade, mas o mundo ao redor parece sempre um pouco embaçado e distorcido pela própria obsessão. O resultado é que o realismo espacial (apartamento, ruas, consultório) convive com uma sensação constante de “irrealidade luminosa”.
Esse efeito é amplificado pelo fato de que pouca coisa ali foi filmada em Nova York e toda a cidade foi reconstruída na Inglaterra. Você percebe que existe algo artificial naquele cenário – o tamanho das ruas, a ausência de horizonte, o número limitado de locais por onde ele circula –, mas é uma artificialidade que reforça ainda mais essa sensação de alienação do personagem.
Como o Kent Jones aponta, se o filme tivesse sido rodado numa Manhattan realista, com locações caóticas, provavelmente perderia esse clima de sonho urbano e de teatro noturno. O fato de ser uma Nova York de estúdio torna os elementos urbanos até mais simbólicos.
A atuação é crucial para esse filme, talvez mais do que em qualquer outro do Kubrick, porque boa parte da tensão está em diálogos longos, confissões e hesitações. O processo exaustivo de filmagem aparece na tela no melhor sentido, já que os atores parecem sempre levemente desgastados e tensos.
O jeito que o Kubrick decupa esses diálogos, com contraplanos e muitos closes, permite que ele costure micro variações de performance na montagem (ainda mais pensando no fato dele filmar vários takes), criando uma textura emocional muito particular.
A cena da Nicole Kidman chapada, rindo e depois explodindo na confissão, é um exemplo disso, mas outras cenas “menores” também carregam esse peso, como o momento da Marie Richardson confessando ao personagem do Cruise que estava apaixonada por ele.
É uma fala realista em termos de conteúdo, mas a maneira como ela hesita, como os olhos oscilam entre desejo e culpa, como a boca parece não conseguir formar as palavras com tranquilidade, tudo isso cria um “excesso” emocional forte, quase desconfortável, bem típico do Kubrick quando ele se debruça nessas performances.
Essa cena, inclusive, já antecipa o tom do filme. Num ambiente ligado à morte (o pai da personagem da Richardson tinha acabado de morrer) surge uma pulsão erótica e amorosa, deslocada, inadequada e que se mistura com a culpa.
O final é um estranho retorno à ordem e, ao mesmo tempo, uma reafirmação da impossibilidade de sair dessa ordem. Depois de ser seguido, ameaçado, advertido, de revisitarem todos os lugares onde esteve, o Bill volta para o apartamento e conta para a Alice o que viveu.
Ela ouve, processa e comenta que talvez nunca consigam saber até que ponto aquilo foi “real” ou apenas fantasia – tanto aquilo que ele viveu quanto aquilo que ela imaginou – e afirma que, apesar de tudo, eles devem ser gratos por terem sobrevivido.
Quando ele pergunta o que eles devem fazer diante desse aprendizado e ela responde, simplesmente, transar, ela reinscreve a fantasia e o desejo dentro do laço conjugal. Em vez de tentar abolir o desejo, ou fingir que ele não existe, propõe incorporá-lo ali, entre eles.
Só que a reconciliação não é exatamente redentora. O que o filme sugere é que o Bill tentou atravessar os limites de classe e casamento, tentou brincar com forças que ele não controla, e descobriu que existe gente poderosa demais por trás daquele ritual, que existe risco demais em flertar com realidades que estão acima dele e que existe fragilidade demais na sua própria identidade.
A única segurança possível é voltar para dentro do sistema – para o casamento, para a profissão, para o apartamento aquecido por luzes de Natal – e aceitar que a liberdade dele vai existir ali em algum lugar entre o que se pode viver e o que se sonha.
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