James Cameron desloca o eixo sensorial para a ação em filme menos imersivo do que os anteriores
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Avatar: Fogo e Cinzas se passa após as marcas profundas deixadas pela guerra contra a RDA e por uma perda irreparável na família Sully. Em Pandora, Jake e Neytiri se veem diante de uma nova ameaça interna: um clã Na’vi marcado pela violência e pela ambição de poder, cuja ascensão redefine o equilíbrio entre os povos do planeta.
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A LÓGICA DO EVENTO
Em relação aos dois capítulos anteriores da franquia, Avatar: Fogo e Cinzas se afirma como o episódio que mais depende de reviravoltas narrativas para sustentar seu avanço dramático.
James Cameron parece deliberadamente deslocar o eixo do filme, já que existe uma redução sensível do tempo dedicado à contemplação pura, às derivações sensoriais e à imersão mais livre no universo de Pandora, em favor de uma dramaturgia mais orientada por ações concretas, conflitos objetivos e acontecimentos organizados segundo uma lógica de causalidade imediata.
Essa opção se traduz numa progressão dramática que passa menos pela experiência dilatada do tempo e dos espaços – elemento fundamental nos filmes anteriores – e mais pela lógica do evento.
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Um acontecimento desencadeia o seguinte quase sem intervalos de suspensão. Algo ocorre, produz uma consequência direta, que por sua vez aciona a próxima situação narrativa.
Em si mesma, essa escolha não constitui necessariamente um problema. Cameron sempre foi um cineasta profundamente consciente do funcionamento interno do cinema de gênero, em especial do cinema de ação e aventura, e demonstra, mais uma vez, um domínio absoluto desses mecanismos.
O “problema” surge quando esse acúmulo de viradas narrativas passa a operar de modo excessivamente circular. A narrativa avança menos por um arco dramático claramente centralizado e mais por um encadeamento sucessivo de incidentes que, embora eficientes isoladamente, não se organizam em torno de uma linha de força emocional verdadeiramente dominante.
O movimento é constante, mas a sensação é a de um deslocamento que, paradoxalmente, gira em torno de si mesmo.
Nesse sentido, falta ao filme um eixo dramático mais definido que organize afetivamente a experiência e hierarquize os conflitos apresentados. Mesmo quando a narrativa progride e se multiplica em diferentes frentes, existe a impressão de que ela se dispersa, incapaz de concentrar sua energia em um núcleo emocional capaz de estruturar o todo.
As reviravoltas funcionam em termos pontuais e Cameron explora com habilidade os diversos núcleos narrativos que o filme propõe, mas o peso dramático se distribui por um número excessivo de personagens, sem que nenhum deles assuma plenamente a função de centro gravitacional da obra.
O resultado é uma certa dissipação da energia emocional. A tensão está presente de forma quase ininterrupta, mas se espalha de tal maneira que raramente se condensa em momentos de impacto mais contundente, como ocorria nos filmes anteriores.
O filme mantém o espectador em estado de alerta constante, porém sem alcançar aqueles picos emocionais mais nítidos e duradouros que conferiam maior densidade dramática à experiência.
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O ARCO DE SPIDER E A FRATURA DO CENTRO DRAMÁTICO
O arco narrativo do personagem Spider é um exemplo particularmente revelador desse processo de dispersão dramática.
Em termos conceituais, trata-se de um núcleo bastante fértil, já que introduz questões relevantes sobre a integração – ou mesmo a impossibilidade dessa integração – entre humanos e Na’vi, além de tocar em um tema sensível de autopreservação mediado por um ressentimento profundo em relação aos humanos.
Esse vetor dramático encontra eco direto na crise interna de Neytiri, funcionando como um ponto de contato entre conflitos íntimos e tensões políticas mais amplas.
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Do ponto de vista das ideias, portanto, esse arco possui um potencial considerável para sustentar dilemas morais mais densos, ambíguos e contraditórios. Ele poderia funcionar como um espaço privilegiado de atrito ética dentro do universo do filme, articulando identidade, pertencimento e violência de forma mais complexa.
Entretanto, na prática, esse potencial não se traduz plenamente. O arco acaba ancorado em um personagem de menor carisma e sustentado por uma atuação que não alcança o mesmo peso expressivo do resto do elenco, o que enfraquece seu impacto emocional.
Ainda assim, esse núcleo ocupa uma parcela significativa do tempo e da atenção do filme, deixando de ser um elemento periférico para assumir quase a função de eixo central da narrativa.
Apesar dessas limitações, o filme nunca chega a se tornar fraco ou desinteressante. É impossível ignorar o senso de espetáculo de James Cameron, um cineasta que possui uma habilidade rara de articular tensão dramática com uma noção de grandiosidade espacial e visual.
Mesmo quando a estrutura narrativa parece excessivamente travada ou sobrecarregada por seus próprios mecanismos, o filme mantém uma tração constante, evitando a estagnação.
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A MAESTRIA DO DIRETOR DE AÇÃO
Neste capítulo específico, James Cameron parece se apoiar com ainda mais ênfase em seu perfil de diretor de ação.
As longas perseguições, os jogos de captura e resgate, a recorrência de personagens feitos reféns e posteriormente salvos funcionam como motores estruturais da narrativa, organizando não apenas o ritmo do filme, mas também sua arquitetura dramática.
São sequências concebidas a partir de um princípio rigoroso de clareza espacial, progressão física e causalidade visual.
Cada ação é perfeitamente legível, cada deslocamento possui uma função narrativa precisa e cada gesto contribui efetivamente para o avanço da cena. A encenação nunca se perde em excesso ou arbitrariedade. O espectador compreende com nitidez onde os personagens estão, o que está em jogo e como as forças em conflito se reorganizam a cada novo movimento.
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Esses momentos de ação também cumprem um papel estratégico na expansão do universo ficcional. Ao acompanhar perseguições e confrontos, o filme apresenta de maneira mais detalhada a colônia humana, os territórios do povo das cinzas e as zonas intermediárias de conflito, espaços marcados por tensão constante e instabilidade política.
A ação, nesse sentido, funciona como um dispositivo de exploração do mundo e não apenas como um intervalo espetacular.
Cameron demonstra especial habilidade ao integrar as características físicas e culturais desses ambientes à própria dramaturgia. Arquitetura, relevo, textura e tecnologia não aparecem como simples pano de fundo, mas como elementos ativos da encenação audiovisual, condicionando os movimentos dos personagens, definindo estratégias e modulando o ritmo das cenas.
Por isso, o espetáculo nunca se reduz a um exercício meramente decorativo. Ele nasce sempre da relação concreta entre os corpos em movimento e os ambientes que os cercam.
Mesmo sendo um filme irregular em seu conjunto, este capítulo reafirma Cameron como um dos mais competentes diretores de ação em atividade. Suas cenas são “funcionais” no sentido mais clássico do termo – claras, eficientes, orientadas por objetivos dramáticos precisos -, mas jamais banais.
Existe nelas uma inteligência de encenação que extrai das situações uma força visual e uma dinâmica rítmica profundamente cinematográficas, sem recorrer a soluções confusas ou a uma montagem excessivamente fragmentada e hiperestimulante.
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De modo geral, fica a impressão de que esta continuação busca responder de forma quase direta a certas críticas dirigidas ao segundo filme, frequentemente acusado de se apoiar demais na contemplação e na dilatação sensorial.
Cameron, agora, parece deliberadamente tornar tudo mais prático, mais direto e mais orientado à ação, numa tentativa consciente de acelerar o ritmo e tornar a experiência mais “dinâmica”.
Curiosamente, é justamente essa escolha que acaba impondo limites ao filme. Ao deixar de lado aquele aspecto mais livre e quase intuitivo que conferia aos capítulos anteriores uma respiração própria, este episódio perde parte de sua singularidade.
O dinamismo está presente, mas se manifesta de maneira mais funcional do que sensorial, abrindo mão, em certa medida, daquela força autoral mais específica que torna o cinema de Cameron não apenas eficiente, mas também singularmente imersivo.