VALOR SENTIMENTAL (2025): O Medo do Conflito

Joachim Trier propõe um realismo performativo que apenas simula profundidade afetiva

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As irmãs Nora e Agnes se reencontram com o pai ausente, Gustav, um cineasta outrora renomado que tenta retomar sua carreira oferecendo a Nora, uma atriz de teatro, o papel principal em seu novo projeto. Quando Nora recusa a proposta, a dinâmica familiar se torna ainda mais tensa ao descobrir que Gustav a substituiu por uma jovem e ambiciosa estrela de Hollywood, desencadeando um conflito sobre ego, traição e a busca por validação artística.

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SOBRIEDADE COMO MEDO DE CONFLITO

Existe, em Valor Sentimental, a sensação persistente de que Joachim Trier gostaria de ter feito uma continuação direta de A Pior Pessoa do Mundo (2021), ainda que se recuse a assumir essa vontade de maneira explícita.

Em vez de enfrentar frontalmente a repetição de temas, climas e estruturas dramáticas que já estavam delineados no filme anterior, o diretor parece optar por um desvio estratégico

A introdução de um dispositivo metalinguístico – o filme dentro do filme – funciona menos como uma necessidade orgânica da dramaturgia e mais como um álibi narrativo para justificar essa insistência.

Esse recurso não se afirma como um verdadeiro motor formal ou conceitual da obra. Ele soa frequentemente como um truque defensivo, uma camada suplementar destinada a amortecer a sensação de déjà-vu e a conferir uma aparência de autorreflexividade a um material que, no fundo, permanece confortavelmente preso aos mesmos registros emocionais e narrativos do longa anterior.

O núcleo do filme-dentro-do-filme nunca alcança uma densidade própria. Ele até esboça uma direção potencialmente instigante ao articular um jogo de manipulação emocional e simbólica no interior da célula familiar, borrando as fronteiras entre criação artística e abuso afetivo.

No entanto, esse caminho é sistematicamente abandonado antes de se consolidar. Trier parece recuar a cada possibilidade de conflito mais incisivo, como se temesse que uma radicalização desse material pudesse comprometer a “sobriedade” do drama realista que ele insiste em preservar.

O resultado é um filme que permanece em estado constante de sugestão, evitando qualquer consequência formal ou dramática mais contundente.

As tensões são insinuadas, mas nunca plenamente assumidas. Os conflitos são apresentados como espectros, jamais como forças capazes de reconfigurar a abordagem estética ou a estrutura narrativa. Essa recusa em levar o material às últimas consequências transforma o que poderia ser um campo de atrito estética em um exercício de cautela excessiva.

Esse problema se torna particularmente evidente no núcleo do pai, talvez o ponto em que Trier mais funciona em um modo de piloto automático. Ali, os vícios mais recentes de sua filmografia se escancaram. A confiança excessiva em gestos emocionalmente codificados, a aposta em uma gravidade afetiva que não encontra correspondência na construção formal das cenas, e a tendência a substituir encenação por atmosfera genérica.

As sequências envolvendo a personagem de Elle Fanning exemplificam de maneira clara essa limitação. São cenas quase desprovidas de encenação propriamente dita, reduzidas a corpos esteticamente idealizados que se observam com uma solenidade vazia, enquadrados de forma neutra, enquanto uma trilha de piano sublinha emoções que a imagem, por si só, não consegue sustentar.

O primeiro encontro entre o pai e a personagem de Elle Fanning é particularmente revelador. A cena se aproxima perigosamente de um pastiche do Malick tardio, mas esvaziado de sua dimensão espiritual e de sua relação orgânica com o mundo natural.

Resta apenas o gesto automatizado do “olhar profundo”, uma contemplação genérica que simula transcendência sem jamais alcançá-la, reduzindo-se a um repertório de signos já gastos e desprovidos de pulsão interna.

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A SIMULAÇÃO DA PROFUNDIDADE AFETIVA

O núcleo dramático das irmãs é relativamente mais consistente e talvez seja o espaço em que se tornam mais legíveis alguns dos apelos do filme. Ali, ao menos, percebe-se uma tentativa mais concreta de lidar com questões como ressentimento, deslocamento e herança afetiva, elementos que emergem das relações familiares e da memória compartilhada.

Existe uma sensação de conflito latente que, em certos momentos, sugere a possibilidade de um drama menos protocolar e mais atento às fissuras emocionais que atravessam essas personagens.

Ainda assim, mesmo nesse núcleo mais promissor, o filme permanece rigidamente preso a um realismo que opera de forma performativa, mais preocupado em simular profundidade psicológica do que em efetivamente construí-la.

É um realismo que se apresenta como código estilístico reconhecível, mas que raramente se converte em investigação formal ou dramática mais rigorosa. A impressão é a de um cinema que reproduz os gestos do drama íntimo contemporâneo sem colocá-los verdadeiramente em risco.

Esse funcionamento se repete a partir de um conjunto de procedimentos já cristalizados: diálogos proferidos em tom baixo, quase sussurrado; cenas interrompidas antes de atingirem densidade suficiente para se desenvolverem plenamente; elipses constantes que substituem o conflito pela sugestão; e a presença onipresente de uma trilha de piano que organiza a experiência emocional do espectador de fora para dentro, funcionando como guia afetivo mais do que como elemento integrado à unidade estilística da obra..

Sempre que o drama ameaça ganhar espessura real – ou quando a novelinha corre o risco de se transformar em uma novela – Trier recua. O corte surge como mecanismo de contenção, interrompendo o fluxo dramático no exato momento em que ele poderia se tornar menos controlável.

O resultado é um cinema permanentemente autocensurado que privilegia a elegância do corte precoce e a moderação calculada em detrimento da exposição plena do conflito e de suas possíveis consequências formais e emocionais.

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TRIVIALIDADE SEM PESO LÍRICO

Do ponto de vista estrutural, o cinema de Joachim Trier se aproxima de maneira evidente a certos procedimentos recorrentes na obra de Mia Hansen-Løve, sobretudo no que diz respeito à construção narrativa fragmentada, ao acúmulo de cenas breves, ao uso constante de elipses e à aposta na passagem do tempo como eixo organizador do drama.

É uma dramaturgia que privilegia a impressão de continuidade afetiva em detrimento de arcos narrativos clássicos, sugerindo que o sentido emerge menos de eventos pontuais do que da sedimentação progressiva de experiências.

A diferença fundamental, no entanto, reside na maneira como essa estrutura é sensivelmente habitada. Em Hansen-Løve, existe uma atenção muito particular à transformação gradual da trivialidade cotidiana em peso lírico e dramático.

As cenas da cineasta, embora pequenas em escala e aparentemente banais, carregam uma ambiguidade efetiva entre o gesto ordinário e aquilo que, silenciosamente, se revela emocionalmente devastador. O cotidiano não é apenas registrado, mas atravessado por uma tensão interna que permite que o mínimo adquira densidade e reverbere para além de si mesmo.

Em Valor Sentimental, essa ambiguidade jamais se concretiza de maneira plena. As cenas se acumulam sem que o filme consiga converter esse acúmulo em experiência sensível ou em espessura dramática.

O que permanece é apenas a ideia genérica de um drama contido, cuidadosamente calibrado, cuja moderação parece pensada para circular com eficiência no circuito de festivais, mas que carece de personalidade formal suficiente para transformar seus procedimentos em gesto autoral consistente.

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Valor Sentimental é um filme que opera sob o signo da contenção permanente, tanto no plano temático quanto formal.

Ao recorrer a dispositivos metalinguísticos que funcionam mais como justificativa do que como necessidade dramatúrgica e ao reiterar um realismo performativo que simula profundidade sem assumir riscos Joachim Trier acaba produzindo um cinema autocontrolado, excessivamente preocupado em preservar uma imagem de sobriedade e elegância.

O acúmulo de cenas fragmentadas, elipses e afetos sugeridos jamais se converte em verdadeira ambiguidade ou em experiência sensível duradoura. O que resulta em um drama que parece sempre recuar diante de suas próprias possibilidades.