DEPOIS DA CAÇADA (2025): Dramaturgia da Omissão

Luca Guadagnino transforma a neutralidade estética e moral em um motor dramático

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Uma professora universitária se vê em uma encruzilhada pessoal e profissional quando uma aluna faz uma grave acusação de agressão sexual contra um de seus colegas professores. Enquanto o caso gera caos e investigações na universidade, a professora é forçada a confrontar um segredo sombrio de seu próprio passado que ameaça vir à tona e complicar sua vida e carreira.

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SUSPENSE DE PALAVRAS

Depois da Caçada se organiza como uma espécie de suspense de diálogos, cuidadosamente arquitetado para deslocar o centro da tensão das ações visíveis para a engrenagem verbal que sustenta cada cena.

O conflito não avança por meio de reviravoltas espetaculares ou gestos decisivos, mas pela acumulação progressiva de falas, silêncios estratégicos e pequenas inflexões discursivas que tornam cada conversa um campo de forças instável.

Existe, nesse sentido, uma clara afinidade tanto com o Fincher de A Rede Social (2010) – sobretudo na cadência acelerada dos diálogos e na fricção constante entre o que é dito e o que permanece apenas como subtexto – quanto com o cinema de Whit Stillman, especialmente na maneira como um universo de elite intelectual é observado a partir de uma abordagem deliberadamente mundana e quase prosaica.

Guadagnino combina essas duas matrizes ao tratar a palavra como instrumento de poder e de autopreservação, mas também como mecanismo de exposição involuntária.

Dentro dessa arquitetura rigorosamente controlada, o andamento do filme depende fundamentalmente da hesitação da personagem interpretada por Julia Roberts.

É a sua dificuldade em estabelecer uma posição clara – tanto ética quanto afetiva – que regula o ritmo narrativo. O filme se constrói a partir dessa zona de ambiguidade. Aquilo que ela escolhe acreditar, aquilo que prefere ignorar e, sobretudo, aquilo que se recusa a ver. Cada decisão é menos uma tomada de partido do que uma tentativa de adiar o confronto com as implicações do caso.

Paradoxalmente, toda tentativa de afastamento apenas intensifica o envolvimento da protagonista. O gesto de recuo não produz alívio, mas funciona como um ímã narrativo, reforçando sua centralidade no conflito.

A omissão deixa de ser um espaço de neutralidade para se tornar uma forma ativa de participação, ainda que negativa. O filme sugere, assim, que não existe exterioridade possível diante do impasse que se instala.

Essa dinâmica faz com que a crise pessoal da personagem se torne rapidamente indissociável da crise institucional da universidade, tratada como organismo simbólico em colapso.

Guadagnino intensifica essa relação ao estruturar a narrativa como uma espiral dramática na qual cada volta reduz o espaço da ambiguidade confortável. A neutralidade, inicialmente apresentada como opção viável, vai sendo progressivamente corroída até se revelar não apenas moralmente frágil, mas dramaturgicamente impossível.

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A CÂMERA PASSIVO-AGRESSIVA

Do ponto de vista estético, Depois da Caçada adota uma decupagem consideravelmente mais clássica e sóbria do que aquela presente em projetos anteriores de Guadagnino.

Sua abordagem é regida por um rigor de controle absoluto – a câmera e a montagem nunca perdem o domínio da situação -, mas esse controle se manifesta sem o exibicionismo formal que frequentemente marca o cinema do diretor.

É uma encenação que prefere a contenção à exuberância, deslocando o impacto expressivo para o interior do quadro e para o trabalho dos atores.

A câmera funciona aqui em um registro que poderia ser descrito como “passivo-agressivo”: ela raramente se impõe de maneira ostensiva, mas permanece constantemente vigilante.

Confia no corpo dos intérpretes, no ritmo preciso das falas e na dinâmica espacial das cenas, intervindo apenas nos momentos exatos em que uma mudança de enquadramento se torna necessária para intensificar a tensão. É uma presença que provoca sem se anunciar plenamente, criando um jogo sutil entre observação e intervenção.

O confronto entre Alma e Maggie, no pátio da faculdade, talvez seja o exemplo mais eloquente dessa estratégia. Em termos de construção formal, trata-se de uma cena quase acadêmica, baseada em princípios clássicos de encenação e continuidade.

No entanto, é justamente essa aparente simplicidade que potencializa sua força dramática. A cena se sustenta menos em gestos enfáticos do que na calibragem milimétrica do espaço, do tempo e das reações.

A montagem alterna com precisão planos médios, introduz closes frontais nos instantes de maior vulnerabilidade emocional e, em seguida, recua novamente para restabelecer a distância entre as personagens.

Esse movimento cria uma tensão de natureza quase matemática, um crescendo que se constrói exclusivamente por meios visuais e performáticos. Embora o filme seja atravessado por uma estética aparentemente neutra, é justamente essa neutralidade que acaba se convertendo em sua marca mais distintiva.

O tom deliberadamente flat das atuações, o ritmo cuidadosamente calibrado dos diálogos e a economia nos movimentos de câmera compõem aquilo que se poderia chamar de uma neutralidade performativa.

Tudo é mantido limpo, controlado e funcional, de modo que qualquer mínima alteração – um deslocamento de eixo, um gesto ligeiramente deslocado, uma pausa inesperada – se torne imediatamente perceptível.

Essa coerência é reforçada pela decisão técnica de utilizar uma única distância focal (35mm) ao longo de todo o filme, conforme comentado pelo diretor de fotografia Malik Hassan Sayeed.

A escolha produz uma unidade espacial quase clínica, como se todos os ambientes estivessem submetidos à mesma lógica ótica, sem variações hierárquicas. Nenhum espaço se impõe sobre outro, assim como nenhum personagem recebe um privilégio visual evidente.

Consequentemente, nada se destaca por construção formal. A imagem se recusa a orientar o olhar do espectador por meio de sinais expressivos claros. A verdade – se é que ela existe – precisa emergir exclusivamente das falas, dos silêncios e da articulação entre os planos.

Essa opção estética dialoga diretamente com a temática da ambiguidade moral que estrutura o filme, já que Guadagnino se recusa a oferecer “dicas visuais” sobre quem estaria certo ou errado, ou sobre qual personagem mereceria maior proximidade emocional.

O abuso permanece em estado de suspensão ao longo de quase toda a narrativa, e essa suspensão só se sustenta porque a abordagem formal evita inclinar o espectador para qualquer lado, inclusive no plano visual.

É apenas nos minutos finais que o filme parece, ainda que de maneira contida, romper parcialmente com essa lógica, sugerindo uma tomada de posição mais clara.

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A OPACIDADE COMO PRINCÍPIO VISUAL

Pode-se argumentar que Depois da Caçada não é, à primeira vista, um filme visual­mente arriscado no sentido mais imediato do termo, sobretudo se pensarmos em estilizações marcadas ou em escolhas formais ostensivas.

Entretanto, essa aparência de neutralidade constitui, em si mesma, um risco calculado e uma construção extremamente rigorosa. Sustentar uma abordagem tão contida exige um grau de precisão na direção e na montagem que dificilmente admite desvios.

Qualquer oscilação mínima de tom – um excesso de ênfase, um corte fora de tempo, uma inflexão performática mal calibrada – seria suficiente para comprometer a progressão dramática e fazer com que o filme perdesse tração.

Essa contenção formal não implica ausência de estilo. Pelo contrário, ela se manifesta de maneira mais subterrânea, especialmente no trabalho de fotografia.

A opção por uma imagem subexposta e por uma saturação cromática reduzida produz uma estética opaca muito particular, que contribui para um clima de suspensão e indeterminação.

É uma abordagem visual que evita contrastes fortes e cores expressivas, como se o mundo do filme estivesse permanentemente envolto por uma camada de dúvida e desgaste moral. Nesse sentido, é possível pensar essa escolha como uma espécie de impressionismo discreto, construído a partir de um uso específico e pouco óbvio da película.

As imagens não buscam nitidez emocional ou clareza simbólica imediata, mas operam por sugestão e densidade atmosférica, reforçando a sensação de que nada ali se apresenta de forma plenamente acessível ou resolvida.

Talvez o único maneirismo mais evidente do filme esteja no uso da trilha sonora, que introduz distorções pontuais em momentos específicos da narrativa. À primeira vista, trata-se de um recurso que poderia soar gratuito ou excessivamente sublinhado.

No entanto, Guadagnino o emprega com parcimônia, transformando essas distorções em pequenas fissuras sonoras que sinalizam o instante exato em que a estabilidade emocional dos personagens começa a se desagregar.

Essas intervenções não conduzem o espectador a uma leitura fechada, mas funcionam como perturbações momentâneas dentro de uma superfície aparentemente estável. Assim como na encenação e na fotografia, o som não oferece respostas, apenas evidencia rachaduras.

O resultado é um filme cuja força estética reside menos na afirmação de um estilo reconhecível do que na manutenção delicada de um equilíbrio formal permanentemente ameaçado.