A PAIXÃO SEGUNDO G.H. (2023): A Matéria do Pensamento

Luiz Fernando Carvalho converte o fluxo interior de Clarice Lispector em um dispositivo cinematográfico de intensidade sensorial

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Adaptado do romance homônimo de Clarice Lispector, o filme mostra G.H., uma mulher da alta classe carioca isolada em seu apartamento após a partida da empregada. Ela entra no quarto de serviço e se depara com um espaço que rompe a ordem silenciosa de sua rotina. O encontro inesperado com uma barata desencadeia uma experiência limite em que o tempo se dilata e o pensamento se fragmenta.

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A adaptação de A Paixão Segundo G.H., dirigida por Luiz Fernando Carvalho, parte de um gesto que beira o obsessivo. Um compromisso radical com a materialidade do texto de Clarice Lispector.

Não se trata apenas de fidelidade temática ou conceitual, mas de uma tentativa explícita de transpor para o cinema o próprio ritmo da escrita, sua cadência, seus desvios, sua respiração irregular e seu movimento contínuo de avanço e recuo do pensamento.

Carvalho parece menos interessado em “traduzir” a obra para uma linguagem narrativa convencional do que em construir um dispositivo audiovisual capaz de sustentar a experiência sensorial e mental que o texto provoca.

Em vez de suavizar ou domesticar as digressões internas da protagonista para torná-las mais palatáveis ao cinema narrativo, o filme assume esses desvios como matéria-prima formal.

Cada inflexão do pensamento de G.H., cada interrupção ou reaprendizado do olhar, encontra um correlato direto na organização da imagem, do som, da atuação e da montagem.

O que, no romance, se manifesta como deriva interior e fluxo de consciência, aqui se converte em um processo constante de reorganização dos estímulos cinematográficos, como se o próprio filme estivesse pensando junto com a personagem e, às vezes, contra ela.

Carvalho parece identificar, no interior do texto de Lispector, não clímax narrativos no sentido clássico, mas pontos de condensação intensiva. Momentos em que o pensamento de G.H. se adensa, se torna mais opaco ou mais vertiginoso.

É a partir desses núcleos que o filme se estrutura, rearranjando elementos formais para dar corpo a essa intensificação. O resultado é uma dramaturgia rarefeita em que a progressão não se dá pela ação, mas pela modulação da percepção e pela variação quase microscópica dos afetos.

Um dos aspectos mais instigantes do filme é a recusa sistemática de qualquer chave simbólica estável. A barata, o quarto, a matéria branca – elementos centrais da obra – jamais se fixam como metáforas fechadas ou signos unívocos.

Tudo permanece em estado de suspensão, à beira de significar algo sem nunca se cristalizar completamente. Essa instabilidade funciona como uma escolha coerente com o projeto do filme de preservar o caráter inquieto, ambíguo e irredutível da experiência proposta por Lispector, evitando leituras ilustrativas ou alegóricas.

Em vários sentidos, o filme também pode ser descrito como um “falso minimalismo”. À primeira vista, trata-se de uma obra de espaço único, centrada em uma única personagem, com poucos elementos narrativos e uma situação quase imóvel.

Entretanto, essa economia aparente esconde um filme densamente carregado, que repensa de forma radical a lógica dos estímulos mínimos. Pequenas variações de enquadramento, som, respiração, textura da luz ou entonação da voz ganham uma dimensão monumental, ampliando o íntimo até que ele se torne quase épico em sua intensidade sensorial.

O filme funciona como uma espécie de ópera interior em que cada gesto, cada pausa e cada silêncio carrega um peso desproporcional à sua escala objetiva.

Ao mesmo tempo, essa grandiloquência formal não elimina a dimensão febril e íntima do texto de Lispector. Pelo contrário, parece ser o meio encontrado pelo diretor para preservar essa intensidade sem reduzi-la a um esquema narrativo ou psicológico padrão.

A atuação de Maria Fernanda Cândido é central nesse processo. O filme organiza seus takes de modo a fragmentar a presença da atriz, criando a sensação de que ela atua como um duplo de si mesma ou como uma consciência que observa a própria encenação.

Em diversos momentos, a performance se desdobra em registros distintos, como se a personagem estivesse simultaneamente vivendo, narrando e analisando a própria experiência.

O resultado é algo próximo a um plano e contraplano interno, não entre personagens diferentes, mas entre estados diversos de uma mesma consciência em conflito.

Essa estratégia se intensifica quando Carvalho fragmenta uma mesma passagem do texto em múltiplos registros visuais e performáticos. A repetição, a variação e o deslocamento desses fragmentos criam a impressão de um diálogo interno contínuo, em que G.H. se confronta, se observa e se reescreve a cada instante.

O filme, nesse sentido, não apenas representa um fluxo de consciência, mas constrói uma forma cinematográfica capaz de tensioná-lo, expô-lo e reconfigurá-lo.

Goste-se ou não do resultado final, trata-se de uma adaptação que compreende com clareza os riscos e os limites de seu projeto. A Paixão Segundo G.H. entende que adaptar um texto como o de Lispector não é encontrar equivalentes narrativos ou soluções ilustrativas, mas criar uma experiência cinematográfica autônoma que dialogue com o regime de intensidade proposto pela obra original.