THE LEGEND OF HEI 2 (2025): Forças em Atrito

The Legend of Hei 2 transforma o embate humano-sobrenatural em reflexão política e afetiva

*

Após um ataque devastador à Guilda Espiritual, a frágil paz entre espíritos e humanos é quebrada. As evidências incriminam Wuxian, o mestre de Xiaohei, colocando ambos em perigo. Xiaohei e sua “irmã” aprendiz, Luye, embarcam em uma perigosa jornada para desvendar a verdade por trás do ataque e provar a inocência de seu mestre.

*

DOIS REGIMES DE MUNDO EM CONFRONTO

Se o primeiro The Legend of Hei concentrava-se essencialmente em apresentar personagens, estabelecer um cosmo coerente e delimitar as regras básicas daquele universo híbrido, sua continuação demonstra uma ambição mais ampla.

O filme desloca o foco da mera apresentação para um exame mais profundo das tensões estruturais que atravessam a convivência entre espíritos e humanos. Não se trata apenas de um conflito físico ou de uma oposição moral entre dois grupos, mas de um atrito político, ontológico e afetivo entre modos de existência inconciliáveis por natureza.

Desde os primeiros minutos, o filme deixa claro que sua dramaturgia não será impulsionada apenas pela fantasia, mas por uma lógica de embates que opera em múltiplos níveis.

A coreografia das cenas de ação abandona a gratuidade do “efeito mágico pelo efeito mágico” e passa a depender da colisão entre dois regimes materiais. De um lado, existe a racionalidade humana: a física aplicada, a engenharia bélica, os aparatos tecnológicos de vigilância e contenção – aviões, drones, armamentos que simulam uma forma de controle total.

De outro, manifestam-se os princípios metafísicos que regem o poder dos espíritos, um conjunto de leis imanentes que opera fora da causalidade ordinária e desafia qualquer tentativa de mensuração objetiva.

Essa escolha estética e narrativa revela o filme em seu ponto mais instigante. As sequências de confronto deixam de ser simples demonstrações de habilidade técnica para se tornarem verdadeiros acontecimentos visuais sobre sistemas de força.

O mundo humano, armado com sua racionalidade instrumental, tenta impor regras, limites e protocolos a entidades cuja própria essência reside na recusa do confinamento. Cada embate, portanto, funciona como um microcosmo do conflito maior.

A sequência do avião funciona como um dos momentos paradigmáticos desse diálogo entre realismo e fantasia que estrutura o filme. O perigo imediato – um avião lotado à beira de um colapso catastrófico – ancora a cena numa lógica de urgência física, reconhecível e até cotidiana dentro do imaginário do desastre.

No entanto, esse mesmo cenário é atravessado por um embate que segue uma física alternativa, um tempo elástico e uma materialidade que não obedece às leis ordinárias.

O resultado é um espaço híbrido em que a ameaça concreta se torna o palco para uma coreografia sobrenatural e o risco humano intensifica a percepção da potência espiritual. A cena sintetiza a habilidade da obra em aproximar aquilo que, em princípio, parece inconciliável: o peso do real e a leveza do fantástico.

.
NUANCES MORAIS EM MOVIMENTO

Em sintonia com uma tendência cada vez mais presente nas animações chinesas contemporâneas mais ambiciosas , The Legend of Hei 2 assume deliberadamente uma moralidade cinzenta, feita de negociações constantes entre propósitos, deveres e afetos.

Não existe, no sentido clássico, um “lado correto” que sirva de âncora moral absoluta. O que existe é um campo de tensões em que cada decisão carrega, simultaneamente, uma carga de responsabilidade individual e uma implicação coletiva.

Essa ambiguidade manifesta-se de modos distintos ao longo do filme. Em alguns momentos, ela aparece como uma simulação visível, quase programática, como no caso de Wuxian, cuja figura maléfica é construída como parte de um artifício narrativo assumido que tensiona a percepção do espectador.

Em outros casos, porém, a obra alcança um registro mais complexo e emocional. Luye encarna uma ambiguidade vivida, subjetiva, que não pode ser reduzida a um gesto manipulativo ou a uma função dramática. Sua trajetória é marcada por contradições internas, conflitos morais e um afeto que se dobra sobre si mesmo, revelando um mundo em que a fronteira entre o bem e o mal é continuamente desestabilizada.

Ao incorporar essas nuances, o filme demonstra que o gênero pode articular espetáculo e densidade ética sem sacrificar seu apelo popular.