CHAINSAW MAN: ARCO DA REZE (2025): Estética do Colapso

Em longa-metragem mais fiel ao traço do mangá, o sentimento resiste dentro da máquina da violência

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Após os eventos da primeira temporada de Chainsaw Man, Denji conhece Reze, uma jovem misteriosa que parece oferecer afeto e normalidade, até que o encontro se transforma em tragédia. Entre o desejo e a destruição, o filme acompanha o protagonista em um ciclo de amor, perda e violência inevitável.

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O COLAPSO DO AFETO E DA FORMA

A transposição cinematográfica de Chainsaw Man – O Filme: Arco da Reze (2025) reafirma a centralidade da tensão entre violência e sentimentalismo que sempre definiu o universo de Tatsuki Fujimoto.

Mas o longa não se limita a reencenar esse binômio narrativo. Ele o reconfigura dentro de uma gramática visual própria que flerta com o experimental sem abandonar a legibilidade do espetáculo.

É um filme que entende a si mesmo como uma tradução audiovisual da pulsão emocional e gráfica do mangá, e que encontra na fragmentação formal o meio de expressar o excesso afetivo de seus personagens.

Desde os primeiros minutos, percebe-se que a direção aposta numa estética de ruptura. O enquadramento torna-se menos clássico e mais “retalhado”, a montagem intensifica o ritmo e o som se articula como elemento rítmico, não apenas diegético.

Tudo parece organizado para sugerir que, em Chainsaw Man, a emoção e a destruição são inseparáveis porque uma se converte na outra. A cena da piscina, ápice do sentimentalismo, e o embate final entre Denji e Reze, auge da violência, condensam essa dialética: ambos os momentos operam no limite entre o lirismo e a vertigem, entre a ternura e o colapso.

O filme, nesse sentido, parece interessado menos em contar uma história de modo convencional e mais em traduzir visualmente uma emoção. A fragmentação de sua linguagem, longe de ser mero artifício estilístico, funciona como método expressivo. Uma tentativa de materializar graficamente o conflito entre o desejo e a destruição.

É o cinema se aproximando do gesto do desenho, e o desenho reencontrando no cinema o seu movimento interno. Fujimoto, no mangá, já fazia da elipse uma forma de violência; aqui, o filme a transforma em ritmo, cor e impacto.

Narrativamente, Arco da Reze desfruta da vantagem da autossuficiência de sua premissa. O filme não precisa recorrer a artifícios de roteiro para sustentar o interesse do espectador, ele parte de um arco emocional já consolidado na série e o desenvolve como experiência estética.

Essa liberdade permite ao diretor conceber o longa como espetáculo audiovisual no sentido mais puro. Um estudo sobre a percepção e sobre o prazer de assistir ao mundo de Chainsaw Man implodir em cor, som e movimento.

A estrutura de dois atos – o primeiro voltado ao encontro e à frustração, o segundo à catarse destrutiva – reforça essa vocação formal. É um filme que se organiza como um gradiente emocional em que o afeto inicial se converte gradualmente em ruína. Da serenidade melancólica das cenas cotidianas à euforia quase abstrata do clímax, existe uma curva de intensidade que conduz o espectador da empatia à dissolução visual.

Por isso, Arco da Reze pode ser lido como um “filme de atrações” – para usar a expressão de Tom Gunning, mas aqui mediada pelo excesso estilístico do cinema contemporâneo. A ideia de espetáculo não é empregada de modo pejorativo, trata-se de um cinema que se sabe superfície e que investe nessa superfície para revelar um afeto que só pode existir por meio da imagem.

As sequências de ação, sobretudo as que envolvem o Demônio Furacão, exploram com precisão um senso de escala amplo e pensado para o cinema A variação das cores, o uso de efeitos visuais e a estilização dos poderes conduzem o filme a uma dimensão quase abstrata.

Existem momentos em que a ação se dissolve em puro grafismo, evocando a herança de diretores como Tony Scott e Michael Bay (também diretores de um “cinema de atrações” contemporâneo), nos quais a figura humana é submersa pela energia cinética da montagem.

É nesse ponto que Arco da Reze se afirma como cinema em seu estado mais plástico: a imagem se autonomiza, o movimento se torna emoção, e a violência encontra, paradoxalmente, sua forma de beleza.

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A ESPIRAL DO AFETO E DA DESTRUIÇÃO

Em relação a sua estrutura, uma coisa que impressiona no longa é a sua capacidade de sustentar uma divisão clara entre o sentimental e o violento sem jamais se tornar binário.

Existe um movimento cíclico que estrutura a obra: a ternura engendra a destruição, e a destruição, por sua vez, restaura a possibilidade do afeto. O filme não apresenta uma alternância entre opostos, mas um fluxo contínuo em que a emoção se acumula até transbordar.

Cada gesto de amor contém a semente da violência seguinte e vice-versa. Essa dinâmica transforma a ação em um fenômeno emocional, não apenas físico ou narrativo.

O embate final entre Denji e Reze, frequentemente lido como o clímax convencional de uma trama de ação, adquire aqui um valor profundamente trágico. Ele nasce do rebote emocional da decepção amorosa e, portanto, não é motivado pela lógica da vingança ou do heroísmo, mas pela dor da perda e pela impossibilidade de conciliação.

A violência, nesse contexto, torna-se expressão do impasse afetivo, uma descarga catártica de energia emocional acumulada. É a dor que se traduz em movimento, o amor que, ao não encontrar lugar no mundo, se converte em destruição.

Essa concepção é sustentada pela direção: a câmera acompanha o corpo de Denji como se observasse uma alma em convulsão. Cada golpe, cada explosão e cada fragmento do quadro carregam um eco emocional.

Quando o filme retorna à quietude no epílogo, o contraste é devastador. O que resta após o turbilhão é a persistência de uma vontade irracional – e, por isso mesmo, metafísica – de amar. Denji luta, destrói e sangra, mas o seu gesto final é o da sobrevivência afetiva. Ele permanece crendo em algo que o mundo insiste em negar.

Essa “vontade de amar”, como o filme sugere, é infantil, pura e absurdamente humana. O filme entende isso sem precisar enunciar diretamente, tudo é sugerido pelo olhar e getos.

O epílogo costura, com notável delicadeza, a dimensão existencialista já explorada pela série original. Denji pode ser dilacerado física e emocionalmente, mas continua insistindo na banalidade da vida como espaço de resistência.

Quando ele diz que aprecia o próprio trabalho apenas porque pode dormir sob um teto e comer três vezes ao dia – e Reze ironiza, chamando isso de “o básico” -, o filme revela a profundidade do abismo social e emocional que o define. Para Denji, o básico já é o extraordinário.

Assim como na série, o longa também transforma o cotidiano em monumento. O café, o mergulho e o toque – gestos mínimos – assumem uma densidade simbólica quase sagrada.

O filme reconhece a dimensão épica do trivial, uma dimensão em que o gesto banal é capaz de conter o absoluto. As duas cenas no café, que abrem e encerram o filme, funcionam como espelhos de um mesmo desejo em estados opostos: o início como promessa, o fim como ruína. Mas é uma ruína habitada pela memória, pela persistência da imagem, pela sobreposição do que se perdeu e do que ainda resiste.

Denji, nesse percurso, luta pelo direito de continuar sendo ingênuo. A ingenuidade é sua forma de transcendência, sua resistência ao cinismo do mundo que o cerca. Mesmo traído e manipulado, ele insiste em uma fé no gesto simples, como quem acredita que a pureza ainda pode existir dentro da máquina da violência.

Sua orfandade o obriga a fabricar vínculos efêmeros – pequenas famílias improvisadas – nos espaços que ocupa. O café, o apartamento, o campo de batalha. Todos se tornam variações de um mesmo espaço imaginário de afeto, lugares em que o amor é sempre tentativa, nunca garantia.

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O ARTIFÍCIO COMO VERDADE EMOCIONAL

A beleza mais profunda do longa está em assumir o fingimento como matéria estética legítima. O filme sabe que encena, e é justamente dessa consciência que extrai sua autenticidade.

A cena da piscina, momento culminante do sentimentalismo, é uma grande mentira, já que Reze manipula Denji. Ainda assim, a emoção permanece íntegra, quase intacta. O falso media o afeto e nunca o destrói. Essa é a operação estética mais sofisticada do filme, admitir o artifício sem perder o impacto emocional.

Ao encenar o amor como engano e o engano como possibilidade de afeto, o longa revela uma compreensão madura do próprio cinema como dispositivo. As imagens “forjadas” – com sua textura, luz, enquadramento e trilha sonora meticulosamente compostos – não escondem o caráter fabricado da experiência.

Pelo contrário, o exibem como parte essencial da emoção. A mentira tem textura, cor e ritmo. É uma mentira “sentida”, um artifício que, por conhecer sua condição de ilusão, alcança a verdade dos sentimentos que imita.

Essa é, talvez, a essência do olhar de Tatsuki Fujimoto. Um olhar profundamente cinematográfico no sentido em que a emoção nasce da consciência do artifício. O autor compreende que o impacto não vem de uma ilusão de realismo, mas da força formal de um gesto que se sabe encenado e, ainda assim, comove.

O cinema, aqui, é uma superfície transparente e autoirônica, mas também o último abrigo do afeto. Um lugar em que a mentira e a emoção coexistem, em que a forma é o próprio conteúdo.

Não é coincidência que o universo de Fujimoto possua cinéfilos e referências diretas a outros filmes. O autor parece propor um pacto de fingimento mútuo entre artista e espectador.

A arte, para ele, é uma forma de engano compartilhado. Um espaço simbólico em que ambos concordam em acreditar, mesmo sabendo que é tudo invenção. É nesse acordo que Arco da Reze encontra sua potência poética. Ao aceitar que o sentimento é uma construção, o filme consegue tornar o artifício mais verdadeiro que o real.