O filme transforma o drama esportivo em reflexão sobre corpo, ética e comunidade
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Na continuação da aclamada animação chinesa, Gyun enfrenta novos desafios que vão além do ringue. Entre treinos exaustivos, dilemas éticos e tensões pessoais, sua jornada revela que a verdadeira luta não está apenas na competição esportiva, mas na busca por integridade, comunidade e autoconhecimento.
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Se o primeiro I Am What I Am (2021) já havia surpreendido pela maneira como transcendia os limites de um filme esportivo tradicional, sua continuação de 2024 confirma e amplia esse caminho.
Trata-se de uma obra que se move dentro do território do gênero de esporte e superação, mas que recusa soluções fáceis ou previsíveis, investindo em densidade dramática, sofisticação formal e uma ambição estética rara na animação mainstream.
O arco do protagonista Gyun reflete uma evolução significativa em relação ao filme anterior. Se antes sua trajetória era mais linear – sobreviver, treinar, competir – agora ela se torna mais complexa e matizada.
O treino não é apenas um meio para atingir a vitória esportiva, mas um processo que reverbera nas relações pessoais, na construção de vínculos e nas tensões éticas que cercam a competição. O amadurecimento do personagem, portanto, parece ecoar o amadurecimento da própria franquia.
O salto técnico é evidente. O 3D alcança um grau de polimento que impressiona, especialmente na riqueza das texturas e na manipulação da luz, que se aproxima de um realismo pictórico sem abandonar o estilizado.
Essa dualidade – entre a precisão realista e a estilização coreográfica – é central para a identidade do filme, sobretudo nas sequências de luta.
As cenas de treinamento são particularmente notáveis por integrarem a fisicalidade bruta da disciplina esportiva com uma dimensão quase transcendental. O corpo, repetindo movimentos até a exaustão, transforma-se em veículo de autoconhecimento.
A montagem reforça essa ideia. Cortes secos sublinham o desgaste físico, enquanto pausas contemplativas ampliam a percepção do espaço como extensão do aprendizado.
Se nas animações de ação muitas vezes a luta é mero espetáculo, aqui ela adquire uma densidade dramática que dialoga diretamente com o percurso interno do protagonista.
A luta contra o adversário tailandês exemplifica esse equilíbrio. sem trilha sonora evidente, cada golpe ressoa com uma gravidade rara, em contraste com a leveza dos movimentos. O silêncio reforça a fisicalidade e a vulnerabilidade, distanciando-se de qualquer glamourização.
O clímax da luta leva essa lógica ao limite. O combate não é apenas físico, mas ritualístico. O “tigre”, símbolo que atravessa a narrativa, torna-se a chave para transformar a luta num rito de sofrimento e resistência, culminando em um chute final que integra a romantização do embate corporal com a carga simbólica da franquia.
Talvez o gesto mais ousado de I Am What I Am 2 esteja em sua conclusão. O filme não encerra no torneio esportivo, mas numa luta de honra que desloca o centro narrativo do triunfo competitivo para a integridade ética.
Essa escolha rompe com as convenções do gênero e confere frescor à franquia, apontando para algo mais amplo. Uma reflexão sobre comunidade, lealdade e responsabilidade moral.
O filme reafirma seu potencial de combinar apuro técnico, densidade estética e reflexão ética dentro de um formato tradicionalmente associado ao entretenimento juvenil.
Se a bilheteria não refletiu a grandiosidade da empreitada, a obra permanece como um marco de maturidade para o cinema de animação do país. Mais do que uma simples continuação, trata-se de um passo adiante em direção a um cinema que vê no corpo e na luta não apenas um espetáculo, mas um instrumento de transformação e de descoberta do humano.