Mariana Fortes oscila entre radicalidade formal e realismo convencional, mas constrói um retrato expressivo do seu tema
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Em meio à paisagem isolada da Ilha de Marajó, duas irmãs vivem sob a sombra de um ambiente hostil, onde o silêncio e a opressão moldam suas rotinas. Cercadas por espaços fechados e relações de poder marcadas pela violência, elas encontram, pouco a pouco, um impulso de resistência que culmina em um gesto de união e sobrevivência.
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A HESITAÇÃO ENTRE ESTILO E CONVENÇÃO
Manas (2024) se apresenta como uma experiência ambígua. Por um lado, anuncia uma proposta estética marcada pelo risco e pela densidade formal; por outro, em certos momentos parece recuar para caminhos mais previsíveis do cinema realista contemporâneo.
Essa tensão entre ousadia e retração define grande parte da sua recepção, mas também revela a tentativa de articular um olhar particular sobre a vulnerabilidade feminina e a experiência do trauma.
Desde seus primeiros minutos, a câmera se comporta menos como um mero dispositivo de registro e mais como uma presença ameaçadora. Existem enquadramentos que comprimem os corpos em espaços estreitos, bloqueando o horizonte visual e criando uma sensação de claustrofobia.
Essa estratégia lembra muito o cinema de Lucrecia Martel, principalmente no modo como expõe a fragilidade das personagens por meio de um registro claustrofóbico e opaco. Os enquadramentos as colocam sempre à mercê de algo, comprimidas em espaços que não oferecem escape.
Entretanto, se essa premissa formal se delineia com clareza, Manas parece hesitar em levá-la até o limite. Em boa parte da narrativa, o filme se reacomoda em uma chave mais naturalista, próxima ao realismo direto dos irmãos Dardenne.
Esse deslocamento, embora não comprometa a força dramática da história, retira-lhe parte da singularidade inicial, reduzindo o impacto de uma linguagem que poderia ter se sustentado como registro estético dominante.
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SOBRIEDADE COMO GESTO ÉTICO
Ainda assim, existem méritos inegáveis na maneira como a direção lida com o tema do abuso. Em vez de buscar representações gráficas ou explicitamente sensacionalistas, o filme aposta em uma economia visual que concentra a experiência no olhar da protagonista.
Essa opção não apenas evita a exploração fácil do sofrimento, como também desloca o interesse para o processo interno de transformação da personagem – do estado de vulnerabilidade inicial à descoberta gradual de uma potência de resistência.
Esse equilíbrio delicado é fundamental para que Manas não caia na armadilha do “filme social de festival”, muitas vezes marcado por uma retórica moralizante ou pela ênfase em imagens-chocantes.
Ao contrário, a narrativa prefere um caminho mais direto e linear, assumindo o risco da didática, mas preservando uma dimensão de sobriedade que se mostra coerente com a história contada.
O clímax visual da obra surge no plano final, quando as irmãs, de mãos dadas, se tornam imagem-síntese de todo o percurso. Não há epílogos discursivos, tampouco explicações adicionais. Apenas o gesto, despido de retórica, que encerra o filme com uma intensidade rara.
Essa escolha reforça a convicção estética de que, mesmo em uma narrativa que por vezes se acomoda em convenções, a verdadeira potência do cinema reside na capacidade de condensar sentido em imagens que dispensam palavras.
Manas talvez não alcance plenamente a radicalidade que anuncia, mas encontra na contenção, na recusa ao espetáculo do trauma e na força do gesto final um espaço de relevância e ressonância.