MISSÃO: IMPOSSÍVEL – O ACERTO FINAL (2025): Predestinação e Graça em Ethan Hunt

Em drama de predestinação messiânica, Christopher McQuarrie redefine os limites do cinema de ação contemporâneo

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Em Missão: Impossível – O Acerto Final (2025), Ethan Hunt (Tom Cruise) e sua equipe enfrentam sua missão mais perigosa: impedir que uma inteligência artificial chamada Entidade caia em mãos erradas e ameace o futuro da humanidade.

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O CORPO COMO UM ARQUIVO DE IMAGENS

Desde seus primeiros minutos, Missão: Impossível – O Acerto Final (2025) deixa claro que não se contenta em apenas dar continuidade à narrativa da saga. O filme se propõe a reconfigurá-la em termos formais, estéticos — e até teológicos.

A primeira metade da obra funciona quase como um O Espelho (1975) do cinema de ação pós-industrial de Tom Cruise: um filme profundamente autoconsciente, que usa a persona do ator como matéria-prima para uma meditação audiovisual sobre passado, presente e futuro; não apenas da franquia, mas do próprio corpo do ator enquanto mito.

Este primeiro ato se estrutura como um mosaico: as cenas não se organizam segundo uma progressão narrativa clássica, mas como fragmentos sensoriais que operam por ressonância, revelando aspectos do passado enquanto nos informam, de forma quase tátil, sobre o presente.

Trata-se de um cinema de montagem que apela mais ao corpo do que à razão: imagens que comunicam menos por exposição direta e mais por textura, ritmo e reação.

Cada plano carrega não apenas uma informação narrativa, mas também uma reverberação histórica — a memória do rosto de Cruise, dos seus movimentos, das suas quedas, dos seus voos. É como se a montagem estivesse constantemente em busca de uma verdade maior sobre essa figura, tentando decifrá-la por meio da repetição, da variação, da justaposição.

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MONTAGEM ALTERNADA EM ESTADO DE EXCESSO

Na segunda metade, a estrutura narrativa assume um contorno mais linear, mas o impulso formal permanece febril. A montagem alternada, um dos pilares clássicos do suspense, é levada aqui a um nível quase maníaco.

Nenhuma cena parece existir de forma isolada: cada ação, gesto ou olhar é respondido por outro, em outro lugar, com outro personagem. A progressão da história não é linear, mas transversal, como se tudo ocorresse simultaneamente em diferentes planos da mesma realidade.

Apesar de ser um dispositivo batido do suspense (talvez o mais batido), grande parte do filme funciona como uma constante montagem alternada que, ao mesmo tempo que constrói um aspecto naturalista e verossímil para ação em cena, desconstrói a cena por meio das quebras de eixo de McQuarrie e seus closes estilizados que desorientam o espectador.

É impressionante como as sequências mais intensas se tornam uma sucessão de rostos que se alternam diante da iminência de uma resolução. A decupagem se estrutura como uma cascata infinita de reações: o plano presente é o plano de reação do plano anterior que, por sua vez, ocorreu em outro espaço e contexto.

Naturalmente, essa escolha pode afastar parte do público, especialmente os que esperam cenas épicas em planos gerais ou uma ação mais convencional. Aqui, o épico se constrói nos rostos. É um cinema de closes, de olhares, de reações.

O espetáculo está menos nos cenários e mais na articulação entre corpos, gestos e cortes. A decupagem funciona como um organismo vivo, um mosaico em constante reorganização. É, essencialmente, um filme sobre montagem, tanto do corpo quanto da missão.

Porém, mesmo quando o ritmo desacelera, como na sequência estendida em que Cruise mergulha até o submarino russo, a tensão não se dissolve. O tempo se dilata, mas a iminência do perigo mantém a sala de cinema em absoluto silêncio.

É um momento que comprova o domínio absoluto do filme sobre ritmo e expectativa: mesmo sem cortes frenéticos, a sensação de suspensão é total. Trata-se de uma compreensão profunda do suspense, não apenas como técnica, mas como experiência emocional construída na relação entre imagem, som e espectador.

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O ESCOLHIDO: A GRAÇA DE ETHAN HUNT

Mas talvez o aspecto mais surpreendente de O Acerto Final seja o modo como ele estrutura a figura de Ethan Hunt — e, inevitavelmente, de Tom Cruise — como um verdadeiro messias da era digital. A ameaça central do filme é uma inteligência artificial, uma entidade inumana, impessoal, que ameaça o livre-arbítrio e a autonomia dos indivíduos.

Contra ela, apenas um homem pode resistir. Não por acaso, um homem que é, literalmente, ressuscitado durante o filme. É o escolhido, inabalável, incapaz de dizer “não” a uma missão. Ethan Hunt é, aqui, uma figura claramente predestinada, imbuída de uma graça que o separa dos demais.

Esse aspecto messiânico não é sutil e tampouco o filme tenta disfarçá-lo. Pelo contrário: existe uma entrega total à mitologia de Cruise como o único capaz de carregar o mundo nas costas, literalmente.

A missão não é mais apenas um trabalho; é um fardo divino. Podemos perceber até mesmo ecos da doutrina jansenista da predestinação: apenas alguns são escolhidos, e àqueles que recebem a graça, ela é irresistível.

Hunt, como figura jansenista, é aquele que não apenas aceita a missão, mas que não pode recusá-la. Sua vontade é movida por um chamado maior, por um dever metafísico que o coloca acima do bem comum e dos dilemas morais ordinários.

Essa abordagem, por mais megalomaníaca que possa soar, é tratada com seriedade estética. McQuarrie e Cruise não têm vergonha de colocar essa figura no centro de tudo, e o filme responde à altura.

Há uma franqueza que torna o filme mais honesto do que muitos blockbusters que fingem modéstia enquanto erguem seus protagonistas em pedestais. O Acerto Final não se desculpa por transformar Cruise em mito, ele o consagra.