David Lynch repensa tradições clássicas do cinema sob uma lógica onírica
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Cidade dos Sonhos (2001) acompanha a trajetória de uma jovem aspirante a atriz que acaba de chegar a Hollywood. Inocente e cheia de sonhos, ela conhece uma mulher misteriosa que sofre de amnésia após um acidente de carro. Juntas, embarcam em uma jornada para descobrir a verdadeira identidade dessa mulher sem memória.
O filme, dirigido por David Lynch, apresenta múltiplos núcleos narrativos e pistas fragmentadas, mas evita amarrá-los de forma direta ou convencional. Na reta final, a narrativa sofre uma reviravolta radical: os mesmos atores passam a interpretar personagens distintos em uma realidade muito mais sombria e menos idealizada.
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Desde seu lançamento em 2001, Cidade dos Sonhos tornou-se um dos filmes mais discutidos do cinema contemporâneo. Enigmático e hipnótico, o longa atrai tanto o público cinéfilo quanto espectadores menos familiarizados com o cinema experimental, algo raro para uma obra com estrutura tão pouco convencional.
O que torna esse filme tão sedutor e inesquecível, mesmo com sua trama fragmentada e sua lógica onírica?
A resposta talvez esteja no equilíbrio que Lynch consegue estabelecer entre experimentação e tradição. Apesar de utilizar uma linguagem desafiadora, seus filmes frequentemente partem de premissas clássicas do cinema. Tanto Cidade dos Sonhos quanto Estrada Perdida (1997), por exemplo, têm raízes no cinema noir.
No caso específico de Cidade dos Sonhos, o centro do conflito ainda é um triângulo amoroso, algo que se revela com clareza no final. Ou seja, mesmo sendo uma obra experimental, o filme está impregnado de elementos familiares e sedutores para o grande público.
Essa combinação entre o enigmático e o reconhecível é o que torna a obra tão instigante, mesmo para aqueles que normalmente não se atraem por filmes alternativos.
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O DIÁLOGO COM GÊNEROS CLÁSSICOS
O filme se inicia com uma mulher desorientada, bela e elegante, carregando uma bolsa cheia de dinheiro, um recurso típico de thrillers comerciais.
No primeiro ato, vemos surgir um romance entre duas mulheres que acabaram de se conhecer, explorando a descoberta mútua e a atração crescente entre elas. Essa relação remete, novamente, a fantasias comuns no imaginário de certos gêneros cinematográficos, como o erótico.

Gilda (1946) – Charles Vidor
Ainda que Lynch nunca trate esses elementos de forma superficial ou clichê, a base do que ele apresenta é claramente calcada em convenções tradicionais do cinema popular.
Muitos dos recursos narrativos usados por Lynch — como o mistério, o romance, o erotismo e o dinheiro como símbolo de poder e corrupção — são heranças do cinema de gênero, especialmente o noir e o suspense.
O sucesso de Cidade dos Sonhos reside, em grande parte, na maneira como o diretor reorganiza esses elementos conhecidos dentro de uma estrutura narrativa fragmentada e sensorial que convida o espectador a uma experiência mais intuitiva do que racional.
Esse tipo de abordagem contrasta, por exemplo, com um filme experimental europeu como Persona (1966), de Ingmar Bergman. Enquanto Lynch parte de uma base reconhecível e a distorce aos poucos, Bergman faz uma obra com uma proposta abertamente filosófica e abstrata desde o início.

Persona (1966) – Ingmar Bergman
Em Persona (1966), duas mulheres isoladas exploram os limites de suas identidades em um espaço quase teatral, sem os artifícios narrativos típicos do cinema de gênero. Não há crimes, armas, dinheiro ou mafiosos misteriosos.
A carga erótica entre as personagens é apenas sugerida, sem se desenvolver plenamente. Trata-se de uma obra mais “cerebral”, de confronto direto com temas existenciais e psicanalíticos e sem apelos do cinema de gênero.
Mesmo ao flertar com temas profundos, Lynch nunca abandona a sedução do espetáculo, e isso inclui até mesmo uma relação com a comédia. Cidade dos Sonhos tem momentos cômicos, quase farsescos, que ironizam situações ou personagens de forma inesperada.
Além disso, existe no filme um tributo direto ao cinema clássico. Participações especiais de atores cultuados como Ann Miller, Lee Grant e Chad Everett evocam uma outra era de Hollywood. Logo no início, o filme faz referências visuais e narrativas a obras como Crepúsculo dos Deuses (1950) e A Morte num Beijo (1955), apontando não só para o passado da indústria, mas também para seus fantasmas — um dos temas centrais da obra.

Cidade dos Sonhos (2001) – David Lynch
Ou seja, um dos maiores atrativos de Cidade dos Sonhos está justamente na maneira como ele envolve o espectador com elementos profundamente enraizados no imaginário hollywoodiano. Lynch utiliza figuras, temas e situações já familiares — não para reafirmá-los, mas para distorcê-los e subvertê-los, criando algo ao mesmo tempo reconhecível e inquietante.
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A FORÇA DAS CENAS ISOLADAS
Outro fator que contribui para o fascínio do filme, tanto entre cinéfilos quanto entre o público mais amplo, é o impacto de suas cenas isoladas. Sequências como a do restaurante Winkie’s — em que um homem relata um sonho perturbador — ou o teste de atuação de Betty ao lado do personagem de Chad Everett, são momentos que funcionam com força própria, mesmo fora do contexto geral da narrativa.
A cena do Winkie’s é um exemplo cristalino do poder sensorial do cinema de Lynch: ela provoca uma sensação de estranhamento e angústia com pouquíssimos recursos, como o estranhamento da atuação de Patrick Fischler, o balançar convidativo da câmera que mostra os planos over the shoulder e o fundo desfocado com as luzes altas difusas.

Cidade dos Sonhos (2001) – David Lynch
Já a cena do teste de atuação revela a força dramática da performance, e demonstra como Lynch é capaz de concentrar o potencial expressivo do cinema em momentos pontuais, deixando uma marca profunda no espectador mesmo quando a trama se torna deliberadamente confusa ou ambígua.
Esse foco na experiência sensorial está no cerne de Cidade dos Sonhos. Mais do que contar uma história com início, meio e fim, o filme busca revelar, por meio de sua forma, as potências ocultas do cinema.
Lynch não se preocupa em distinguir de forma didática os acontecimentos do filme; o que interessa a ele é expor forças invisíveis que atravessam os personagens e as situações, reveladas por performances intensas, enquadramentos sugestivos e transições oníricas.

Cidade dos Sonhos (2001) – David Lynch
No fundo, o filme propõe uma espécie de metafísica cinematográfica: um cinema que pensa e sente ao mesmo tempo, que não se explica, mas se manifesta. A coerência da obra está na sua capacidade de evocar sentidos profundos sem necessariamente nomeá-los.
É essa combinação entre linguagem ousada e apelo emocional que torna Cidade dos Sonhos uma experiência tão única. E explica, em grande parte, o impacto duradouro que a obra tem provocado desde seu lançamento.
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ABORDAGEM ESTÉTICA: A CÂMERA FLUTUANTE E PLANOS DETALHES
A estética e a decupagem de Cidade dos Sonhos são fundamentadas em dois elementos centrais que definem boa parte do estilo visual do filme.
O primeiro é o uso de uma câmera fluida, que parece flutuar no espaço cênico. Desde a sequência de abertura, em que a câmera segue um carro pelas ruas de Los Angeles, essa sensação de suspensão e deslizamento já se impõe.
Ao longo da narrativa, essa fluidez aparece tanto em planos subjetivos quanto em movimentos de câmera que exploram os ambientes de forma quase etérea. Em cenas como a do restaurante Winkie’s, por exemplo, a câmera não está estática, tampouco agitada como em uma filmagem de câmera na mão, ela parece literalmente flutuar, acompanhando o clima enigmático da cena com uma suavidade perturbadora.
Esse efeito provavelmente foi alcançado com o uso de uma steadicam, equipamento que permite movimentos contínuos e suaves, contribuindo para a atmosfera ambígua e onírica da obra.
Em outras passagens, especialmente na primeira metade do filme, nas cenas entre Betty e Rita, essa mesma flutuação aparece de forma mais sutil. Movimentos de dolly in, em que a câmera se aproxima dos personagens ou objetos, também são executados com essa sensação de suspensão.

Cidade dos Sonhos (2001) – David Lynch
Embora parte da decupagem de Lynch seja, também, composta por planos fixos e composições rígidas que valorizam a estranheza dos elementos no quadro, existem estes momentos em que a câmera explora os espaços de maneira sugestiva. Nesses instantes, o ponto de vista torna-se indefinido: é como se a imagem fosse guiada por uma consciência externa, que intui e observa em silêncio.
O segundo elemento marcante da decupagem de Lynch é o uso insistente de close-ups e planos-detalhe. Lynch destaca rostos e objetos com intensidade, muitas vezes isolando-os do contexto para potencializar seu valor simbólico.
Elementos como a caneca noGilda (1946) – Charles Vidor, o telefone tocando, a chave azul, ou a misteriosa caixa — todos são mostrados com destaque, compondo um vocabulário visual enigmático e recorrente. Esses planos não são apenas decorativos: funcionam como pistas e ícones dentro da lógica simbólica do filme. Quando o mistério entre os personagens se intensifica, Lynch recorre a closes extremos, quase sufocantes, que transmitem tensão e claustrofobia.
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ABORDAGEM ESTÉTICA: PRESENÇA ESPECTRAL
De modo geral, a montagem e a decupagem do filme alternam entre convenções mais tradicionais e momentos de experimentação formal, e é justamente essa alternância que revela a originalidade do filme.
Quando Betty e Rita pegam o táxi rumo ao Club Silencio, por exemplo, a câmera torna-se tremida e a imagem, propositalmente desfocada, sinalizando, talvez, uma transição de realidade.
Ao entrarem no clube, o ritmo visual se acelera, e a montagem adquire um tom mais delirante. Em outra cena emblemática — a descoberta do corpo na cama —, Lynch utiliza fusões de imagem, sobrepondo figuras e criando uma sensação de fragmentação visual e psicológica.
O desfecho do filme é marcado, do mesmo modo, por uma montagem explicitamente experimental. Após o aparente suicídio de Diane, surgem imagens estouradas, espectros das personagens e da cidade fundindo-se em uma espécie de colapso sensorial.

Cidade dos Sonhos (2001) – David Lynch
Essas escolhas formais não são gratuitas: elas buscam uma estética espectral, uma representação fantasmagórica da experiência e da memória. São imagens que ultrapassam a lógica narrativa e apontam para uma dimensão metafísica do cinema: a verdadeira essência da obra.
A trilha sonora de Cidade dos Sonhos, composta por Angelo Badalamenti, é também fundamental na construção desta dinâmica espectral do filme. Ela combina uma melancolia profunda, reminiscente de antigos melodramas hollywoodianos, com timbres mais ásperos e sugestivos, que evocam tanto o erotismo vulgar dos filmes B quanto o suspense do cinema de horror.
Em momentos específicos, sons graves, cavernosos e ruidosos acompanham diversas sequências, contribuindo, também, para o clima de inquietação que permeia a narrativa. A música e a construção sonora não sublinham a ação de forma direta, mas agem como uma presença difusa, reforçando o caráter onírico da obra.
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O VIRTUOSISMO TÉCNICO DA DIREÇÃO
Todas essas escolhas formais de Lynch revelam um virtuosismo técnico sofisticado. Cada cena é cuidadosamente iluminada, os movimentos de câmera são executados com precisão, e há uma exploração deliberada dos recursos cinematográficos em seu nível mais refinado.
A famosa cena do Winkie’s é um exemplo técnico exemplar: a luz difusa que modela os rostos dos atores cria uma atmosfera ambígua, o movimento fluido da câmera envolve o espectador na tensão crescente, e o fundo levemente desfocado sugere um espaço indefinido, intensificando a sensação de estranheza.

Cidade dos Sonhos (2001) – David Lynch
Outro elemento essencial da encenação lynchiana que revela esse rigor é a direção de atores. As atuações, no filme, nunca são totalmente naturalistas. Existe nelas uma certa artificialidade deliberada, um desvio sutil do realismo, que contribui para o clima de sonho — ou de pesadelo — que domina a narrativa.
A cena com os irmãos Castigliani exemplifica bem essa abordagem: os personagens são excêntricos e suas ações beiram o absurdo, mas nada soa excessivamente forçado. Lynch extrai de seus atores um tipo de performance que flerta com o surreal, mas sem perder a coerência interna do universo ficcional.
Curiosamente, um dos irmãos é interpretado pelo próprio Badalamenti, que, mesmo não sendo ator profissional, surge com grande presença cênica. Algo que reforça a ideia de que Lynch trabalha com as “figuras” que os intérpretes já carregam, mais do que com uma atuação psicologicamente aprofundada.
Todos esses elementos — da música à iluminação, da decupagem à performance — compõem uma abordagem que alterna entre o reconhecimento e a estranheza, entre o clássico e o fantasmagórico.
Lynch articula uma linguagem cinematográfica que busca evocar, mais do que explicar. Seus planos, seus sons e seus personagens operam dentro de uma lógica de sonho, em que cada imagem é carregada de sentido potencial. Assim, o filme não apenas narra uma história, mas propõe uma experiência estética e metafísica: uma jornada por entre os véus do cinema, da memória e do desejo.
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A POSSÍVEL INTERPRETAÇÃO SOBRE O FILME
Uma das interpretações mais recorrentes entre críticos e cinéfilos é a de que a primeira parte de Cidade dos Sonhos representa um sonho da personagem Diane, interpretada por Naomi Watts na segunda parte.
Nessa leitura, quase duas horas de narrativa seriam dedicadas a essa construção onírica, enquanto os trinta minutos finais apresentariam a “realidade” — entre aspas, pois o próprio conceito de realidade no universo de Lynch permanece ambíguo.
Essa teoria se sustenta por diversos indícios formais. Logo no início do filme, antes mesmo dos créditos de abertura, há um plano subjetivo de alguém deitando em um travesseiro. E é justamente esse mesmo travesseiro que reaparece quando Diane desperta, na parte final, após o Cowboy surgir e dizer: “It’s time to wake up.”

Cidade dos Sonhos (2001) – David Lynch
Esses sinais sugerem uma estrutura narrativa em que o sonho antecede o despertar, ainda que a realidade para a qual Diane retorna não seja menos turva ou inquietante do que o próprio sonho.
Mais importante do que determinar objetivamente o que é sonho e o que é realidade, no entanto, é perceber que a primeira parte funciona claramente como uma versão idealizada da segunda.
O filósofo Robert Sinnerbrink, em seu texto Cinematic Ideas, sobre o Cidade dos Sonhos, explora precisamente essa ideia. Vamos partir, também, dessa referência para refletir sobre esse lado do filme.
A narrativa inicial apresenta uma Hollywood de fantasia: Betty é talentosa, apaixonada, bem-sucedida, envolvida em uma investigação misteriosa, mas carregada de fascínio. Tudo é mais iluminado, mais limpo, mais esperançoso.
Já na parte final, a estética se torna sombria, os sentimentos mais ambíguos, os personagens mais trágicos. E os mesmos elementos da primeira parte aparecem sob uma nova perspectiva, desiludida e dolorosa.
A estrutura do filme funciona como um jogo de espelhos, construindo uma lógica do duplo que atravessa toda a obra. Essa duplicidade se manifesta não apenas na divisão entre sonho e realidade, mas também na relação entre as duas protagonistas, Betty e Rita, que ecoa a dinâmica de Persona (1966), de Ingmar Bergman.
O que Lynch realiza em Cidade dos Sonhos é uma inversão progressiva: o que começa como uma fantasia romântica se transforma em tragédia existencial. Os elementos da primeira parte — o romance, o desejo de sucesso, o mistério, o erotismo — aparecem na segunda como obsessão, fracasso, culpa e desespero.

Cidade dos Sonhos (2001) – David Lynch
A Hollywood luminosa do início dá lugar a uma Los Angeles opaca e melancólica. Não por acaso, a primeira parte foi concebida originalmente como um piloto de série de TV, um projeto mais convencional (na medida do possível), que foi rejeitado.
Isso contribui ainda mais para a leitura de que a primeira metade representa uma versão “normal”, idealizada, como se fosse um simulacro da narrativa clássica, posteriormente subvertido por uma segunda metade mais experimental, mais crua e mais reveladora.
Na segunda parte do filme, a personagem de Naomi Watts já não é mais Betty, a jovem promissora e apaixonada por Hollywood, mas sim Diane, uma atriz fracassada, emocionalmente devastada, presa a uma relação tóxica com Camilla, interpretada por Laura Harring.
O ambiente agora é outro: mais áspero, egoísta e cruel. A relação entre as personagens não é mais idealizada, mas atravessada por ressentimento, ciúme e desespero. Em um ato de desespero e vingança, Diane contrata um matador de aluguel para assassinar Camilla.
É interessante perceber, também, como vários elementos da primeira parte retornam nessa segunda, mas completamente ressignificados.
Um exemplo emblemático é a frase “This is the girl”, que na primeira metade marca a escolha da protagonista de um filme — quase como um gesto mágico de reconhecimento — e, na segunda, é dita por Diane ao mostrar a foto de Camilla ao assassino. O que antes representava uma chance de sucesso e deslumbramento, agora está vinculado à destruição e à culpa.
Dessa forma, podemos dizer que a primeira parte do filme opera como uma narrativa construída pelo inconsciente de Diane: uma fantasia redentora, moldada pelos códigos do melodrama hollywoodiano, criada para negar ou amortecer a dor do fracasso, da rejeição e do crime.
O imaginário romântico de Hollywood, com seus clichês de amor, ascensão e mistério, funciona como um refúgio psicológico, uma camada estética que tenta esconder a tragédia pessoal da protagonista.
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O CONSOLO DO SONHO E O ASSOMBRO DA IMAGEM
A estrutura espelhada do filme, em que a primeira metade idealiza e a segunda desilude, reforça uma das ideias centrais da obra: Cidade dos Sonhos não é apenas um filme sobre personagens, mas sobre o próprio cinema.
Sua construção narrativa dupla revela tanto o poder da imagem de criar mundos quanto sua incapacidade de sustentar a verdade. O cinema, aqui, é ao mesmo tempo consolo e fantasma.

Cidade dos Sonhos (2001) – David Lynch
Essa ambiguidade é explicitamente tematizada nas cenas do Club Silencio, que funcionam quase como um comentário metalinguístico. O mestre de cerimônias anuncia: “No hay banda”, revelando que o som que ouvimos não existe de fato, é apenas uma ilusão.
Tudo ali, como em todo o filme, é espetáculo, performance, espectro. A arte de Lynch está em mostrar como essa ilusão pode ser, ao mesmo tempo, tão poderosa quanto instável.
É por isso que a parte final não deve ser interpretada como uma “realidade objetiva”, em contraposição a um sonho inicial. Ela é apenas o outro lado da mesma ficção, uma face mais sombria do mesmo delírio.
Até o suicídio de Diane carrega essa duplicidade. Ao se matar, surge atrás da cama uma nuvem de fumaça visivelmente artificial, como um efeito especial rudimentar, talvez uma referência deliberada ao cinema de truques de Georges Méliès. Trata-se de uma última evocação da ilusão: mesmo a morte, no universo lynchiano, é representada como imagem, como encenação.
Em última instância, Cidade dos Sonhos é um filme sobre o poder do cinema: sua capacidade de criar ilusões, projetar fantasias e tocar dimensões metafísicas que transcendem o mundo físico.
A atmosfera nostálgica da narrativa evoca uma Hollywood que já não existe, ou talvez nunca tenha existido como imaginamos. Esse tom de decadência e saudade intensifica a sensação de que tudo ali é espectral, como se estivéssemos assistindo a fragmentos de um sonho desfeito.
Nada no filme é plenamente concreto. As personagens, os sentimentos, os eventos, tudo parece emergir de uma projeção, de uma superfície instável entre o real e o onírico. E, ainda assim, o espectador se envolve emocionalmente.
Sentimos medo, angústia, paixão, tristeza, mesmo sabendo, em algum nível, que aquilo é falso. Mas essa “falsidade” não diminui a força da experiência. Pelo contrário, é nela que reside o encanto. O cinema nos emociona justamente por transformar o irreal em intensamente vivo.
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UM FILME SOBRE A FASCINAÇÃO DO CINEMA
David Lynch descreveu o filme como “a love story in the city of dreams”, e talvez essa história de amor não se limite às personagens. É também a história de um fascínio entre o espectador e a imagem, uma relação misteriosa com a ilusão cinematográfica.
O filme revela esse pacto silencioso entre quem assiste e aquilo que se apresenta na tela, mesmo quando sabemos que tudo é feito de fumaça e luz.
Essa ideia — o drama intenso atravessado por uma sensação de ilusão passageira — também aparece em obras de cineastas como Philippe Garrel, que frequentemente combinam o envolvimento emocional com um registro quase fantasmático, como se a narrativa fosse algo que se esvai a cada cena, prestes a desaparecer.

Cidade dos Sonhos (2001) – David Lynch
Por fim, embora existam diversas teorias e interpretações possíveis, Cidade dos Sonhos permanece uma obra deliberadamente ambígua, que resiste a ser totalmente decifrada. Seu valor está, em grande parte, nessa abertura para múltiplas leituras.
Cidade dos Sonhos, assim, não é apenas um quebra-cabeça a ser resolvido, mas uma experiência sensorial e conceitual que convida o espectador a se perder, e talvez a se encontrar , nos labirintos da imagem.