David Cronenberg reflete sobre as imagens técnicas e sua relação ambígua com o real
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Karsh, um empresário inovador e viúvo enlutado, inventa uma tecnologia revolucionária e controversa que permite aos vivos monitorar seus queridos falecidos em seus túmulos. Uma noite, vários túmulos, incluindo o da esposa de Karsh, são profanados, e ele tenta rastrear os criminosos.
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A ESTÉTICA DA SIMULAÇÃO
Nos últimos anos, especialmente após Um Método Perigoso (2011), David Cronenberg tem aprofundado sua investigação sobre a presença essencial do corpo em um mundo cada vez mais tecnológico, impessoal e, por vezes, futurista.
Seus personagens não seguem uma jornada definida. Eles habitam uma crise persistente entre identidade, desejo e uma realidade progressivamente gélida e desumanizada.

Crimes do Futuro (2022) – David Cronenberg
Embora Cronenberg ainda empregue apelos gráficos, essa fase de sua filmografia se distingue pelo foco nos diálogos e por uma caracterização teatral dos cenários e das atuações. O mundo que ele constrói parece contaminado pela tecnologia e pela artificialidade, tornando impossível qualquer relação verdadeiramente natural entre os indivíduos ou um discurso direto sobre qualquer tema.
Seus personagens são produtos desse meio. Distantes de si mesmos, falam de maneira quase inorgânica, como se o próprio ato da fala se tornasse um mecanismo disfuncional, um reflexo de um mundo que simula a comunicação sem efetivamente concretizá-la.
Dessa forma, a última fase do cineasta instaura uma espécie de estética da simulação. Os cenários carregam uma falsidade deliberada, os personagens externalizam seus pensamentos como se recitassem um texto, e a presença dos corpos em cena se torna rígida, meticulosamente coreografada.
Essa teatralidade não é inédita na obra de Cronenberg. Crash: Estranhos Prazeres (1996) já explorava essa frieza calculada, mas agora o que antes emergia do desejo e da pulsão se origina da própria estrutura do mundo. Um mundo onde tudo se replica, onde a existência se projeta através de telas, videochamadas, figuras 3D e outras interfaces que encenam a presença sem jamais alcançá-la plenamente.

Crash: Estranhos Prazeres (1996) – David Cronenberg
Assim, uma conversa deixa de ser um diálogo genuíno e se converte na simulação de um diálogo. Ela contém emoções, mas seu ritmo mecânico sugere que seus interlocutores não estão verdadeiramente ali.
O ator cronenberguiano de hoje se aproxima do modelo bressoniano — não apenas por um método arbitrário do diretor (embora ele, definitivamente, exista), mas como um sintoma do esvaziamento da humanidade do corpo sob um imperativo artificial e tecnocrático.
A síntese do futurismo de Cronenberg se encontra nesse paradoxo: diálogos entre vivos que, gradualmente, soam como diálogos entre mortos.
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A MORTE DA IMAGEM
O Senhor dos Mortos (2024) sintetiza com precisão a fase recente de David Cronenberg ao abordar, de maneira direta, a temática da morte e a impossibilidade de acesso pleno ao real.
No filme, Karsh cria seu sudário tecnológico para observar a esposa enterrada, mas o que ele vê não é propriamente ela — apenas uma representação digital captada pelo tecido, uma espécie de ressonância constante e ultrassofisticada.
Nos filmes dessa última fase, gravados em vídeo e não em película, Cronenberg também passou a se utilizar da fotografia digital de modo cada vez mais gélido e estéril. Como se ela também fosse um reflexo direto dessa mecanização tecnológica que nosso mundo vive
Curiosamente, o sudário digital do filme funciona como uma analogia a um impasse que a teoria de André Bazin enfrentaria diante do cinema digital.
Bazin via a película como um sudário que imprimia o real de forma material, legitimando o vínculo entre imagem cinematográfica e realidade. Agora, com as câmeras digitais de Cronenberg e o sudário digital que escaneia os corpos no cemitério de Karsh, o que temos é um processo mediado por um sistema tecnológico que converte informações em dados.
No cinema digital, assim como nas tumbas de Karsh, a imagem não é mais uma impressão direta do real, mas uma reconstrução algorítmica. A materialidade do registro cede lugar a um fluxo de medições processadas por sensores — a maldição da caixa preta flusseriana — que transforma o real em imagens técnicas.
As telas como tumbas, um dos motivos visuais recorrentes no longa, sintetizam esse novo paradigma. Mais do que um elemento narrativo, elas funcionam como um comentário direto sobre um imperativo que redefine a própria natureza do cinema.
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A RESISTÊNCIA DO CORPO
Todos esses processos poderiam tornar O Senhor dos Mortos (2024) um filme apático. E, de fato, ele apresenta um ritmo melancólico que, à primeira vista, pode soar displicente.
No entanto, assim como em obras como Cosmópolis (2012) e Crimes do Futuro (2022), mesmo quando os protagonistas estão imersos em dinâmicas mecanizadas, eles tendem a quebrar as regras impostas por esse mundo e a ceder a um desejo carnal — seja através do encontro com outro corpo, do risco, ou de uma ideia de transformação que os desloque de seu estado atual.
O personagem de Vincent Cassel permanece boa parte do filme paralisado, atormentado pela morte de sua esposa. Mas, à medida que ele investiga a depredação de seu cemitério e o mistério geopolítico envolvido, enquanto mergulha em um estado de paranoia e ameaça, também revive o desejo por outras mulheres.
O corpo, diante dessas novas situações, reage e se reconecta com a vida. Além disso, esses eventos disparam uma crise na própria representação digital das figuras corpóreas no filme — os cadáveres apresentam modificações que o protagonista não sabe se são reais ou digitais, e sua assistente IA passa a se metamorfosear e agir de forma suspeita.
Como o suspense do filme é construído a partir desses questionamentos sobre um estado mecanizado das coisas e as forças ocultas que o regem, O Senhor dos Mortos (2024) nunca se torna apático. Além disso, a evolução da premissa, mais do que nos filmes anteriores de Cronenberg, responde a certas convenções universais do cinema de gênero.
O cineasta, de fato, evita um clímax convencional e não se entrega à lógica de estímulos rápidos. A estrutura do filme raramente utiliza montagem alternada — recurso tradicional em suspenses para evidenciar duas situações que respondem a um limite comum.
Em vez disso, o longa foca em uma abordagem teatralizada, em que cenas e cenários se alternam como pequenos atos. Contudo, há um mistério muito bem construído dramaturgicamente que integra todos os personagens de forma inesperada e dialoga constantemente com a ideia de um corpo que resiste ao seu entorno.
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ABORDAGEM VISUAL
Alguns cinéfilos e críticos apontam que a atual fase de Cronenberg revela uma decupagem e uma abordagem visual mais básicas. O diretor, muitas vezes associado ao gênero de terror e à estética do grotesco, foi acusado de se restringir a planos médios, deixando de lado o conceito visual autoral ou evidente, que o caracterizava em suas obras anteriores.
Entretanto, ao meu ver, Cronenberg não está se tornando menos autoral ou menos ousado. Pelo contrário, ele está repensando a escala dos elementos em cena e incorporando seus temas a uma estética tecnificada — a esterilidade da imagem digital — que, por si só, representa uma imposição bastante explícita em vários momentos.
Nessa fase, a atuação assume contornos muito mais metódicos e específicos, refletindo o tema central do cineasta (a relação entre o orgânico e o tecnológico). Essa dinâmica não é necessariamente gráfica ou explícita, mas subverte de maneira ainda mais disruptiva as lógicas clássicas de encenação.
O tema não está mais presente apenas nas resoluções gráficas, mas se integra aos elementos essenciais da composição cênica. Algo que Cronenberg já explorava com destreza em Crash: Estranhos Prazeres (1996), mas que ele tem desenvolvido com ainda mais afinco em seus trabalhos recentes.
Quanto à decupagem, mais do que seguir uma lógica convencional de plano e contraplano, Cronenberg recorre frequentemente a closes e planos médios, nos quais desfoca o fundo, organizando os elementos ao redor dos personagens na medida que quer evidenciar mais ou menos elementos das suas expressões faciais.
De modo geral, O Senhor dos Mortos (2024) e os longas dessa fase tratam o rosto dos personagens como uma topografia expressiva — por vezes até mutante — que reflete uma gama de sensações e emoções.
Outra prática comum no filme é o uso estratégico da iluminação. Nos planos abertos de cenas internas, o diretor faz uso de focos de luz escassos, aproveitando a limitação da fotografia digital para apagar detalhes nas sombras, anulando partes dos cenários e até mesmo dos corpos dos personagens.
Em algumas cenas, como no primeiro encontro de Karsh com sua futura amante em um restaurante com pouca luz, esse recurso se torna evidente. O contraste entre a iluminação e as sombras cria uma atmosfera de distorção e ausência.
O momento do filme em que essa técnica é mais eficaz ocorre em uma cena em que vemos Karsh na cama, deitado ao lado de sua esposa mutilada, porém viva. Ambos estão nus, e as áreas escuras da imagem fazem com que o corpo da esposa se perca nas sombras, sugerindo que Karsh está se distanciando dessa figura.
As sombras, aliadas às limitações da fotografia digital, que tende a eliminar detalhes no escuro, são usadas de maneira precisa para criar uma estética que beira um impressionismo sombrio.
Elas tornam a presença dos corpos e objetos de cena ambígua, reforçando a ideia de que tudo na obra, assim como no regime virtual das imagens, parece estar à beira do desaparecimento, nunca completamente presente ou concreto.
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O Senhor dos Mortos (2024) confirma que, atualmente, Cronenberg é um dos melhores cineastas a utilizar os aspectos materiais do seu método (como a gravação em digital) e de sua forma (as escolhas estilísticas que subvertem lógicas básicas de encenação) para tratar de seus interesses temáticos.
Não há, aqui, qualquer tentativa de mera representação ou ilustração desses temas. Tudo é concebido em um constante diálogo com a construção técnica e estética da obra.
O cineasta, como poucos, critica o futuro do cinema (e da imagem) partindo de seus próprios meios tecnológicos para evidenciar um cenário destinado à mutação constante.
Em tempos de imagens geradas por Inteligência Artificial, que, neste caso, rejeitam completamente qualquer ideal profilmico, essas reflexões sobre a reconstrução da imagem digital tornam-se ainda mais pertinentes.