A abordagem contida de James Mangold é a maior qualidade e também o maior defeito de seu longa
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Baseado no livro Dylan Goes Electric!, o filme mostra o início da carreira de Bob Dylan em Nova York até o momento em que ele passa a usar instrumentos elétricos em uma performance inovadora e controversa no Newport Folk Festival em 1965.
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Diferente de um filme como O Brutalista (2024), que parece nunca confiar na atuação mais direta de seu elenco e, por isso, enche as cenas de estímulos a partir de uma desconstrução genérica de seus elementos estéticos, Um Completo Desconhecido adota uma abordagem formal clássica, priorizando a presença franca de seus atores e atrizes.
A tônica do filme de James Mangold é preservar uma abordagem intimista e sem grandes alardes, remetendo aos elementos essenciais do folk, o gênero musical que retrata. Várias cenas são relativamente longas, e a atuação do elenco é natural, em um tom discreto.
Em termos dramatúrgicos, trata-se de um filme que, de certa forma, até rejeita as convenções mais óbvias de uma biopic oscarizável, já que nunca oferece momentos catárticos clichês que, em muitos casos, servem para “justificar” indicações aos prêmios da Academia.
Os dramas centrais envolvendo a figura de Bob Dylan estão presentes, mas nunca são explorados de modo apelativo, funcionando mais como sugestões de sua personalidade.
Em termos temáticos, o foco do filme parece ser justamente essa personalidade inacessível e misteriosa do astro. Mesmo quando os outros personagens tentam se aproximar dele ou compreender suas intenções, Dylan se mantém sempre fechado.
Nesse ponto, o cineasta dá mais ênfase à persona e à aparência de Timothée Chalamet do que a uma possível força de sua atuação.
É claro que o ator capta bem a presença enigmática de Dylan e, querendo ou não, uma atuação contida também exige um controle extremo. No entanto, a aura do personagem nasce mais da construção visual de sua figura do que de suas expressões mais diretas.
Ou seja, Chalamet é utilizado, também, como uma espécie de “modelo” dessa figura enigmática em que a inexpressão — pelo menos em termos de interação pessoal — se torna uma marca.
Quando o filme passa a narrar os eventos de 1965, esse aspecto contido perde um pouco da força, pois as situações demandam uma construção dramática mais impositiva, que o filme nunca entrega.
Nesse sentido, a abordagem de Mangold entra em uma espécie de impasse. Por um lado, ele conserva o tom enigmático de seu protagonista; por outro, deseja explorar eventos mais dramáticos da vida de Dylan sem perder a moderação que define a obra.
A partir desse momento, a aproximação mais clássica se anula em prol de uma ilustração protocolar dos eventos. Tudo o que envolve a apresentação de 1965 no Newport Folk Festival, que poderia servir como um clímax para a narrativa, não entrega a força prometida.
Mangold tenta criar uma tensão maior na relação de Dylan com Sylvie e com o núcleo duro da cena folk, mas nunca leva essa proposta até o fim, deixando a parte final do filme sem vida.
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CARACTERIZAÇÃO CLÁSSICA
Seguindo essa lógica de uma abordagem contida, as escolhas estéticas do filme possuem um aspecto virtuoso na forma como trabalham com certos elementos mais marcantes da luz e dos cenários, mas sem exageros banais.
A reconstituição da época é muito rica e fiel, mas nunca deseja se autoevidenciar. Ela funciona como um pano de fundo que mantém sua marca expressiva, ao mesmo tempo em que está em equilíbrio com os outros elementos do filme.
Uma das características que mais chamam a atenção na construção visual do filme é o fato de o diretor de fotografia Phedon Papamichael ter gravado o longa em digital (ele usou a câmera Sony CineAlta Venice 2) e, ainda assim, conseguir emular uma aparência de película e de filme clássico sem soar forçado.
Como a Venice 2 é uma ótima câmera para gravações com ISO elevado sem gerar ruído na imagem, Papamichael conseguiu filmar cenas com o diafragma mais fechado, resultando em uma alta profundidade de campo e uma aparência mais clássica.
Além disso, ele também definiu um LUT (uma pré-definição para manipulação digital da imagem) para ser usado na pós-produção, simulando a textura da película sem parecer artificial.
O uso de lentes 35mm, que obrigavam a câmera a se aproximar do elenco nos closes, também é um recurso estético que reforça a abordagem intimista da obra. Em vez de utilizar lentes longas, que poderiam captar closes à distância, o cineasta opta por um retrato visual mais humano.
Apesar de ser tecnicamente muito bem planejada e de oferecer ótimos resultados na primeira metade do filme, essa abordagem estética, assim como a abordagem dramatúrgica, perde força a partir da metade e não se mostra capaz de propor um olhar específico sobre os eventos mais intensos do longa.
No fim das contas, a maior qualidade de Um Completo Desconhecido acaba sendo, também, seu maior defeito.
Mangold propõe um conceito intimista que, inicialmente, funciona muito bem na apresentação do protagonista e do ambiente em que ele transita, mas, a partir de certo ponto, o filme perde seu caráter autoral e se transforma em uma observação muito mais passiva, sem a energia necessária para sustentar a intensidade dos acontecimentos em cena.