Dos Cineastas-Artistas ao Cinema de Fluxo

Este artigo propõe uma linha cronológica que vai dos anos 90 até o início dos anos 2000 para comentar sobre algumas estéticas em voga no cinema contemporâneo durante esse período.

Apesar de essas tendências se centralizarem em torno de uma ideia que ficou conhecida como cinema de fluxo, existe uma evolução desse pensamento, proposta por alguns críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma, que reflete sobre uma variedade maior de obras e de possibilidades audiovisuais.

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CINEASTAS-ARTISTAS

Em seu texto Lost Highway: o isolamento sensorial segundo Lynch, publicado em 1997 na Cahiers du Cinéma, o crítico Thierry Jousse escreveu sobre a abordagem sensorial de David Lynch em Estrada Perdida (1997).

Jousse diz que, na obra de Lynch e de outros cineastas dos anos 90, a distribuição de signos enigmáticos e a ausência de uma ligação aparente entre eles tornaram-se uma figura de estilo.

Estrada Perdida (1997) – David Lynch

Além de David Lynch, ele cita Abel Ferrara, Olivier Assayas e David Cronenberg para falar sobre uma estética em que os signos visuais flutuam e não mais se conectam uns aos outros de modo tradicional. Ele observa que, em vários desses filmes, a narrativa não está em primeiro plano, mas possui uma função rítmica e climática.

O autor aponta elementos dessa abstração lírica até mesmo em filmes mais narrativos e comerciais, mas ainda visualmente muito estimulantes, como O Último Grande Herói (1993) e Duro de Matar 3: A Vingança (1995), de John McTiernan.

Além dessa estética, esses filmes também lidam de modo muito específico com o tempo. A noção de tempo nas cenas possui um efeito de sideração e desorientação. São filmes que hipnotizam o espectador com cenas que se alongam e imagens que se casam de modo sensorial com a música e os efeitos sonoros.

Crash: Estranhos Prazeres (1996) – David Cronenberg

A partir dessas reflexões, Jousse também comenta sobre uma possível definição de filme-instalação, no sentido de uma instalação artística. Uma instalação artística ocorre quando um artista ocupa uma área em um museu ou galeria e transforma aquele lugar em uma obra de arte. Nesse caso, o espectador entra e habita a obra do artista.

Existem também vídeo instalações em que espaços em museus e galerias são tomados por projeções de vídeos e imagens. Artistas como Nam June Paik, Bill Viola e Douglas Gordon trabalham com esse formato.

A partir da análise de Estrada Perdida (1997) e Crash: Estranhos Prazeres (1996), Jousse sugere que essas obras poderiam ser vistas como filmes-instalação, no sentido de que criam um mundo de regras próprias.

The Sleep of Reason (1988) – Bill Viola

Nesse caso, a função do espectador não é tanto entender a narrativa, mas habitar a obra, ser impactado sensorialmente por ela, entrar nessa obra.

Ele compara as fitas cassetes de Estrada Perdida (1997) com algumas instalações de Gary Hill e as fusões e multi-projeções do filme de Lynch com o trabalho de Bill Viola. O autor chega a dizer que “o trabalho de Lynch é tão próximo de Hitchcock quanto de artistas contemporâneos como Bill Viola ou Gary Hill.”

HanD HearD (1995-96) – Gary Hill

A cena de Crash: Estranhos Prazeres (1996) em que um personagem recria o acidente de carro que matou James Dean de modo performático também remete, diretamente, a uma situação que poderia acontecer em uma exibição de arte contemporânea. É uma encenação que não possui o objetivo de criar um significado claro, mas, como diz Stéphane Bouquet, divulgar a sensação da morte.

Jousse também usa o termo “film-boîte” (filme caixa em francês) em seu texto, como se, nesses casos, o filme se fechasse em um circuito de regras próprias. Não existem motivações evidentes na trama ou uma ligação concreta com lógicas do mundo real.

O que importa são as situações sensoriais que a obra propõe. O filme é um pequeno mundo muito específico, um dispositivo fechado que constrói seus princípios a partir de referências independentes e até mesmo arbitrárias.

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O FILME COMO UM MUNDO DE REGRAS PRÓPRIAS

Um ano depois de Jousse publicar esse artigo, o autor Stéphane Bouquet publica outro artigo, intitulado Da Maneira que Tudo se Comunica, também na Cahiers du Cinéma, em que também explora a ideia de cineastas-artistas e começa a falar sobre o que chama de fluxo.

Bouquet fala de filmes de Andy Warhol e Marguerite Duras, como Sleep (1964) e L’homme atlantique (1981), que também remetem a essa ideia de filme-instalação e concebem um novo dispositivo cinematográfico que deve ser habitado.

Sleep (1964) – Andy Warhol

Segundo o autor, essa lógica experimental estaria sendo recuperada por esses cineastas-artistas contemporâneos em suas obras de ficção. Esses novos filmes rejeitam a ideia de captar a realidade e organizá-la a partir de um ponto de vista e, no lugar disso, criam mundos próprios com princípios particulares.

Além de Lynch e Cronenberg, o autor cita Tsai Ming Liang, Abel Ferrara, Wong Kar-Wai, Michael Haneke, entre vários outros. Ele tem uma abordagem um pouco mais aberta sobre essas concepções e, a partir das ideias de Jousse, retoma a ideia de filme-dispositivo, do filme fechado em si.

O mundo do filme não seria uma dedução da realidade, e sua única exterioridade é aquela que se encontra em seus próprios princípios formais.

O Sétimo Continente (1989) – Michael Haneke

Ele chama os filmes de Haneke, por exemplo, de filmes prisão, já que são trabalhos que se apropriam da ideia de um mundo sob vigilância permanente em que nenhum lugar escapa ao olhar. Mesmo os ambientes domésticos, nessa lógica, não seriam naturais ou realistas, mas atuariam como um lugar de cárcere. O Sétimo Continente (1989) é um ótimo exemplo disso.

Bouquet também fala sobre como essas obras remetem a artistas da performance, como Joseph Beuys e Marina Abramovic. Ele diz que esses filmes propõem uma relação performática com o mundo em que não é mais importante acreditar na representação, mas verificar que o ator está caminhando por zonas de novas experiências.

Em algumas dessas obras contemporâneas, não existe tanto a ideia de uma atuação verossímil ou realista, mas de uma atuação conceitual e performática que dialoga com isso. Ele diz que os atores, nesse sentido, funcionam por meio de emissões de energia e fluxos.

Crash: Estranhos Prazeres (1996) – David Cronenberg

Em várias cenas de Crash: Estranhos Prazeres (1996), por exemplo, os atores parecem estar em uma peça ou declamando frases dentro daquele mundo particular, enquanto os cenários são tratados de modo artificial, como se tudo fosse uma nova experiência sem relação direta com o mundo real.

Nos filmes de Tsai Ming Liang, como O Rio (1997), a atuação já aborda um corpo que representa um estado de não significância. Um corpo que, pelo isolamento, beira o animalizado.

O protagonista passa boa parte da narrativa com o pescoço torto devido a um problema misterioso, incorporando um estado de solidão e isolamento que se reflete na sua condição física de estranheza com o mundo.

O Rio (1997) – Tsai Ming-liang

Diante das reflexões sobre filmes de diretores como Abel Ferrara, Tsui Hark e Wong Kar Wai, Bouquet reconhece também uma nova lógica de cena em que uma visão organizadora do mundo desaparece em benefício de uma concepção do diretor como alguém que “faz circular imagens”.

Em vários desses filmes, a decupagem não está interessada em estruturar as cenas de modo didático e criar relações tradicionais de plano e contrapiano, mas em propor um fluxo de possibilidades imagéticas.

Em vários planos de Abel Ferrara, por exemplo, o cineasta faz com que as imagens se comportem como uma espécie de fluxo vivo.

Enigma do Poder (1998) – Abel Ferrara

Stéphane Bouquet reconhece estratégias distintas — o cinema mais rigoroso de autores como Lynch, Tsai, Cronenberg, Haneke, em contraste com o cinema mais caótico de Abel Ferrara, Tsui Hark, Wong Kar-Wai e Lars von Trier —, mas que respondem a uma mesma dinâmica de fechar o filme em um mundo com regras próprias que rejeita uma organização baseada nas lógicas do mundo real.

Ele diz que, na medida em que os cineastas-artistas recusam a ideia de destacar o mundo, eles deixam de lado qualquer caráter da linguagem clássica enquanto vetor de uma verdade psicológica ou social em prol de aspectos mais confusos do ser e novos campos de ação e de presença no mundo.

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O PLANO E O FLUXO

Em 2002, Stéphane Bouquet publica outro artigo, novamente na Cahiers du Cinéma, chamado Plano Contra Fluxo, em que comenta mais sobre isso e propõe uma possível oposição entre cineastas do plano e cineastas do fluxo.

O autor compara a lógica dos “filmes de plano”, filmes mais convencionais, com as tradições da prática do desenho nas artes visuais, no sentido de que o traço de um desenho, em uma pintura, define os elementos em uma obra e materializa suas ideias. O desenho “ordena” o mundo.

Em contraste, ele compara a lógica dos “filmes de fluxo” com a natureza da cor nas artes visuais, no sentido de que a cor estaria do lado da consistência das coisas e da confusão das formas. A cor, segundo ele, é um elemento muito explorado por pintores que não acreditam numa clara ordenação dos sentidos, mas nas virtudes das ilusões.

Bom Trabalho (1999) – Claire Denis

A partir dessa lógica, poderíamos dizer que um cineasta como David Fincher é um cineasta do plano. É um realizador com uma decupagem clássica e objetiva que organiza suas cenas a partir de uma dialética convencional.

Os planos de Fincher conversam entre si para gerar um sentido narrativo claro que estrutura o que está em cena. Fincher ordena a cena a partir de uma lógica realista. Algo que nos remete diretamente às convenções do naturalismo hollywoodiano.

Já cineastas como Abel Ferrara, Tsui Hark e Claire Denis podem ser considerados cineastas do fluxo. Eles propõem uma estética contaminada e dinâmica, com planos dispersivos que, segundo Bouquet, intensificam zonas do real, em vez de moldá-lo através da decupagem.

O Tempo e a Maré (2000) – Tsui Hark

Nesse artigo, Bouquet parece um pouco mais aberto a certas influências do real nos filmes. Ainda assim, ele defende que a forma como essas obras lidam com o real é a partir de uma abordagem que aliena o mundo como ele é.

De toda forma, as obras que surgem a partir dos anos 2000 de fato dialogam mais com aspectos diretos da realidade do que os filmes dos anos 90 anteriormente citados. Ainda são filmes com regras próprias, mas que reformulam a realidade de maneira mais declarada.

Ainda que Bouquet comente sobre cineastas com métodos distintos, todos respondem a um regime de imagens que, segundo o autor, rejeitam o discurso ordenado em prol de um real interessante e não organizado. São todos cineastas mais interessados em produzir ritmos do que produzir sentido.

Eternamente Sua (2002) – Apichatpong Weerasethakul

Os filmes de Hou Hsiao-Hsien e Apichatpong Weerasethakul podem não seguir a lógica radical de um escoamento da imagem de Abel Ferrara e Claire Denis, mas propõem uma decupagem em que o plano nunca ordena a cena de maneira convencional e apresentam uma relação metafísica entre seus personagens e os espaços que eles percorrem.

O sentido do filme, em última análise, seria esse novo ritmo exposto. Eternamente Sua (2002) e Café Lumière (2003) possuem plots minimalistas e se valem de uma certa deambulação dos personagens por ambientes característicos (arborizado no caso do primeiro e urbano no caso do segundo), em que o espectador é mais impactado pela deslocalização dos protagonistas do que pelo fato de eles terem um trajeto definido.

Café Lumière (2003) – Hou Hsiao-Hsien

O fluxo, no caso desses cineastas que priorizam um plano fixo, longo e estável, como Hou Hsiao-Hsien e Apichatpong Weerasethakul, surge como uma definição que recusa uma dinâmica de permanência — seja através da ideia do plano como uma entidade independente que não segue lógicas convencionais ou a partir de tramas que reiteram um aspecto errante.

A graça está em, justamente, observar os personagens se integrarem com os ambientes ao mesmo tempo que se alienam em suas próprias experiências. O “escoamento” não está explícito na imagem, mas acontece de modo gradual nessas experiências de desaparecimento e constante mobilidade.

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DIÁLOGOS COM O CINEMA MODERNO E EXPERIMENTAL

Todas as abordagens que descrevemos até aqui não são totalmente novas. O cinema experimental já lidou com ideias semelhantes.

Os curtas experimentais de Maya Deren (que influenciaram muito David Lynch) e até alguns trabalhos de Stan Brakhage propõem uma relação sensorial intensa com o espectador ao mesmo tempo que lançam um fio ficcional.

Tramas do Entardecer (1943) – Maya Deren, Alexander Hammid

Várias das características dos filmes abordados já estavam presentes, também, em certas obras do cinema moderno. Além dos já citados Andy Warhol e Marguerite Duras, cineastas como Chantal Akerman e Andrei Tarkovski dialogam tanto com a ideia do filme-instalação como também com a ideia, descrita por Bouquet, do filme intensificar zonas do real para atualizar novas potências em cena.

Jeanne Dielman (1975) é, em essência, um “filme caixa”, se seguirmos as definições de Thierry Jousse, enquanto várias obras de Tarkovski dilatam o tempo e oferecem uma relação metafísica entre os personagens e a realidade que lembra filmes de Apichatpong Weerasethakul.

Jeanne Dielman (1975) – Chantal Akerman

Sem falar em como o cineasta brasileiro Rogério Sganzerla, em Sem Essa, Aranha (1970) e outros trabalhos, assume a ideia de “escoamento de imagens” como uma atitude radical em seus planos sequências intensos que, novamente, intensificam e integram zonas do real de modo absolutamente único.

Ainda assim, podemos perceber alguns aspectos específicos dessa geração contemporânea.

Além desses filmes surgirem em uma mesma época (virada dos anos 90 para os anos 2000) e partirem de um claro projeto ficcional (os cineastas aqui não são artistas experimentais em tempo integral como eram Deren, Warhol e Brakhage), várias dessas possibilidades subversivas nascem de uma relação de ressignificação mais direta com o cotidiano.

O Espelho (1975) – Andrei Tarkovsky

O efeito dos planos de Tarkovski pode remeter aos planos de Apichatpong Weerasethakul, mas o russo partia de uma carga onírica e dramática muito mais intensa. Como aponta o autor Luiz Carlos Oliveira Jr., os planos de Tarkovski são uma espécie de erosão no tempo.

Eles possuem uma matéria-tempo muito mais complexa, enquanto que os planos de Apichatpong e Hou Hsiao-Hsien fluem com certa serenidade e têm origem numa relação com a câmera que, em um primeiro momento, soa até despretensiosa.

Sem Essa, Aranha (1970) – Rogério Sganzerla

É interessante como parte dessa geração de cineastas-artistas, apesar de suas propostas radicais, possuem um apreço pelo banal e pela não significância do que está em cena. Como diz Bouquet, eles exploram o real em seu estatuto aleatório, indecidido, móvel.

Mesmo que exista esse diálogo intenso com heranças experimentais e modernas, o modo como essas zonas do real são retrabalhadas por alguns desses diretores é bastante original.

Quando o crítico Olivier Joyard escreveu sobre Elefante (2003) e Shara (2003), ele afirmou que a ideia de “plano-viagem” dessas obras remete mais a experiências de um videogame como Shenmue, em que, segundo o autor, o jogador é um agrimensor ocioso, do que referências diretas de um cinema de errância e descompressão narrativa que surgem após os anos 70.

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Várias das ideias descritas até aqui ficam ainda mais perceptíveis em alguns filmes selecionados para as edições de 2002 e 2003 do Festival de Cannes.

A Cahiers du Cinéma, em suas coberturas dessas edições, publicou textos que dialogavam diretamente com as reflexões anteriormente propostas por Thierry Jousse e Stéphane Bouquet.

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O PLANO DE FIAÇÃO

No texto Que Plano é Esse?, de Jean-Marc Lalanne sobre o Festival de Cannes de 2002, o crítico afirma que o festival foi marcado por vários tipos de experimentações em torno da duração dos planos e da recusa de relacioná-los na montagem. Nesse sentido, o autor dá destaque para filmes que enfatizam o poder do plano por si só.

Quando comenta sobre O Filho (2002), dos irmãos Dardenne, o autor descreve o que seria uma técnica de fiação, no sentido de que é o movimento do ator em cena que traça o trajeto do plano. Ele comenta sobre uma concepção de mise-en-scène como sismografia, como se a câmera fosse uma espécie de sismógrafo que acompanha a movimentação dos atores.

O Filho (2002) – Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne

Além de O Filho (2002), em outros filmes dos irmãos Dardenne, como Rosetta (1999), a câmera igualmente orbita o corpo da protagonista e segue seus movimentos e tensões durante a narrativa.

Os cineastas não se utilizam de uma câmera na mão meramente realista que vibra com a cena. Existe uma modulação muito específica entre o desempenho do ator e o movimento da câmera. O ator “traça” a mise-en-scène a partir dessa centralização no plano.

Já quando Lalanne fala sobre Irreversível (2002) e Arca Russa (2002), ele diz que os planos são concebidos como fluxos ininterruptos, liberados da segmentação da montagem.

Arca Russa (2002) – Aleksandr Sokurov

Não são filmes que respondem a uma lógica convencional de montagem, mas definem as suas próprias rotas a partir de uma dinâmica em que o plano não é mais a parte de um todo, mas tudo agora faz parte do plano.

A câmera de Gaspar Noé, em Irreversível (2002), domina todo o espaço da cena e flutua pelos ambientes e entre os personagens como se tivesse vida própria.

Já o filme de Sokurov é, literalmente, um plano sequência em que a câmera atua como o ponto de vista de uma pessoa que já morreu e caminha pelo Palácio de Inverno em São Petersburgo, se deparando com personagens e situações históricas.

São filmes que não constroem as suas cenas a partir de uma lógica de plano e contrapiano ou a partir de uma decupagem convencional. Eles minimizam o efeito da montagem e potencializam o efeito do plano.

É claro que a própria coreografia da câmera, nesses casos, já pode ser considerada uma decupagem extremamente complexa, mas existe essa ideia muito centralizadora no plano como um elemento submissa a um traçado específico da cena.

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A CÂMERA-ENTIDADE

Durante o Festival de Cannes de 2003, o crítico Olivier Joyard percebe que essas novas propostas com o plano continuam. Ele publica um texto chamado Que Plano é Esse? (A Continuação) em que reflete sobre alguns filmes exibidos no festival.

Joyard afirma que, enquanto em certos filmes do festival de 2002 existia a ideia do plano de fiação, agora, longas como Elefante (2003) e Shara (2003), possuem uma proposta em que o plano não está exatamente submisso a esses elementos em cena, mas é um plano autônomo que decide os seus movimentos por conta própria, que decide até mesmo suas elipses por conta própria.

Elefante (2003) – Gus Van Sant

Elefante (2003) ilustra muito bem essa ideia. Por um lado, existe essa câmera que está seguindo os passos dos jovens na escola, mas por outro, as escolhas da câmera não parecem submissas a nada em específico.

A câmera segue um personagem ou um grupo, mas, de repente, resolve ir para uma direção diferente quando passa por outro personagem ou quando percebe outro acontecimento daquele entorno.

É uma câmera com uma vontade própria. Nenhum personagem ali ou nenhuma situação específica está guiando essa câmera. O plano, segundo o autor, não é mais um mergulho subjetivo no mundo de um indivíduo.

É como se a câmera propusesse uma radiografia daquele ambiente por conta própria. Ela vai para onde quer e mostra o que quer. Ela mostra lugares que ninguém presta atenção e segue adolescentes que não possuem uma presença muito marcante.

Shara (2003), de Naomi Kawase

Em Shara (2003), de Naomi Kawase, os movimentos da câmera são menos marcados e mais livres, mas existe essa mesma independência por parte do dispositivo.

O filme começa com uma sequência em que a câmera atua como se fosse uma pessoa seguindo duas crianças e testemunha o desaparecimento misterioso de uma delas.

No decorrer do longa, a câmera se coloca como um personagem observando a intimidade da família ao realizar movimentos independentes. Como se a câmera fosse um espírito que observa e reage a situações cotidianas em cena.

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ESTÉTICAS VARIADAS A PARTIR DE UM MESMO CONCEITO

A partir de toda a variedade e evolução do pensamento que descrevemos, é quase impossível acomodar todos esses filmes em uma só definição.

Ainda que, com base nesses textos, principalmente nos artigos de Stéphane Bouquet, Jean-Marc Lalanne e Olivier Joyard, tenha-se criado a designação do cinema de fluxo, é difícil definir características estéticas exatas que sintetizem tal termo.

O que existe são métodos distintos que repensam tanto a independência do plano dentro de uma lógica convencional de decupagem e montagem como também propõem uma relação com a realidade em que não desejam ordená-la, mas tratá-la a partir de um estatuto do que está sempre móvel.

Nesse ponto, a palavra fluxo representaria um horizonte estético abrangente e sempre em movimento que desafia convenções clássicas dos elementos da linguagem do cinema, como aponta Jean-Marc Lalanne ao se referir às ideias de Stéphane Bouquet:

“Um fluxo esticado, contínuo, um escorrer de imagens na qual se abismam todos os instrumentos clássicos mantidos pela própria definição da mise-en-scène: o quadro como composição pictural, o raccord como agente de significação, a montagem como sistema retórico, a elipse como condição da narrativa”.

Todo esse debate nos mostra que, nessa virada do milênio, vários cineastas, por motivos distintos, repensam esses elementos em suas obras.

Isso pode ter sido estimulado por certas transformações na linguagem — o advento do digital contribui, inegavelmente, para essa noção de uma imagem frágil que “escoa” — ou mesmo por uma apreensão do novo milênio que trouxe em si sentimentos de incerteza e renovação.

Quaisquer que tenham sido os motivos, esses filmes revelam a maturidade de cineastas que chegavam em momentos paradigmáticos de suas carreiras compartilhando, mesmo que de maneira inconsciente, vontades semelhantes.

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