O Camp no Cinema

O QUE É CAMP?

O termo camp possui uma definição bastante ampla, mas é basicamente usado para se referir a algo exagerado, artificial, cartunesco e até mesmo brega e vulgar.

Para explorar esse conceito no cinema, iremos partir do artigo Notas sobre o Camp, de Susan Sontag, publicado no livro Contra a Interpretação e Outros Ensaios.

A palavra camp já existia antes de Sontag escrever esse texto, mas foi com ele, nos anos 60, que o termo ganhou mais popularidade e aceitação cultural.

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A VISÃO DE SUSAN SONTAG SOBRE O CAMP

No início de seu artigo, Sontag define o camp como uma sensibilidade, e não tanto como um estilo. Ela descreve o camp como um modo de ver as coisas, uma forma de enxergar o mundo.

Embora o camp tenha características estilísticas próprias, Sontag o define mais como uma forma de ver as coisas do que como uma escolha estética particular. A essência do camp, segundo ela, é um gosto pelo inatural, pelo artificial, pelo exagero, pelo que não soa natural.

Susan Sontag

Essa sensibilidade pelo exagero irá se refletir em escolhas estéticas de modo distinto a depender do contexto. Para ilustrar essa ideia, Sontag faz uma lista de coisas que, segundo ela, fazem parte da sensibilidade camp.

Ela cita o abajur Tiffany, um tipo de abajur criado no final do século XIX que possui vitrais coloridos e dramáticos.

Ela também menciona a Art Nouveau, um estilo de decoração, moda e arquitetura popular no final do século XIX e início do século XX que realçava formas da natureza de modo dramático, com curvas, ornamentos e folhagens. A Art Nouveau exagerava nos detalhes e nas linhas, recusando a simetria clássica da arte acadêmica.

abajur Tiffany

Sontag também cita o filme King Kong (1933) como uma obra camp, já que o longa não tem receio em parecer inatural ou pouco realista, possuindo até uma certa ingenuidade nesse aspecto.

Ela também menciona os quadrinhos de Flash Gordon, que, igualmente, possuem essa ingenuidade e um apreço pela fantasia em um tom inocente e infantil.

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O CAMP COMO UMA SENSIBILIDADE INGÊNUA

Uma das ideias que Sontag reforça é que o camp puro não é algo totalmente autoconsciente. As obras que ela cita não são camp porque os criadores pensaram “eu quero fazer uma obra camp” ou “quero fazer uma obra propositalmente brega”.

Essas obras possuem exageros motivados por razões distintas, mas que são sempre muito sinceras. Elas não seguem uma regra, mas sim uma sensibilidade.

É por isso que Sontag define o camp mais como uma sensibilidade do que como um estilo. É um modo de ver as coisas que, claro, resulta em escolhas de estilo, mas que se origina de uma atitude ingênua.

King Kong (1933)

King Kong (1933) não foi produzido para ser uma obra propositalmente artificial. Ele foi feito para ser um filme que assustasse as pessoas. É um filme que acredita no seu potencial.

Um abajur da Art Nouveau não é daquele jeito todo enfeitado porque quer ser irônico, mas porque realmente acredita que possui linhas dramáticas muito poderosas.

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CAMP INGÊNUO E CAMP PROPOSITAL

Para Sontag, o camp puro se expressa por trabalhos como as coreografias de Busby Berkeley em alguns trabalhos da Warner dos anos 30, ou filmes como Ladrão de Alcova (1932) e as séries de TV do Flash Gordon.

Já filmes como A Malvada (1950) e O Diabo Riu por Último (1953), ela considera pretensamente camp. Diz que essas obras querem tanto ser campy que perdem continuamente o passo e acabam se tornando apenas histéricas.

Um problema maior, segundo ela, é que vários filmes lidam mal com a autoparódia, revelando um desprezo pelos seus materiais. Ela critica, inclusive, alguns filmes de Alfred Hitchcock nesse sentido.

Ela diz que o camp só funciona quando é ingênuo (o camp puro) ou quando é totalmente proposital e critica algumas obras que ficam em um certo meio-termo.

Rodan!… O Monstro do Espaço (1956)

Em outro momento do texto, Sontag também fala sobre filmes japoneses de ficção científica, citando Rodan!… O Monstro do Espaço (1956), um filme de monstro de Ishiro Honda, o mesmo diretor de Godzilla (1954).

Ela diz que esses filmes japoneses, em sua relativa despretensão e vulgaridade, são muito radicais e irresponsáveis em sua fantasia.

Ela enxerga esse exagero como um elemento radical que reforça o entretenimento da obra. Esses filmes não se preocupam tanto com a noção de realismo, mas trabalham com a fantasia de modo mais aberto e intenso.

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O CAMP E O GUILTY PLEASURE

No final do artigo, Sontag dá a entender que a sensibilidade camp está ligada a uma ideia de guilty pleasure. Ou seja, gostar de algo porque é ruim.

Embora Sontag defenda a radicalidade de algumas obras, ela também enxerga obras camp como tentativas fracassadas e relaciona o gosto camp a uma certa apreciação leve e divertida.

Como se o gosto camp, ao contemplar uma sensibilidade exótica que rejeita academicismos de uma arte erudita, tivesse seu valor por ser algo curioso, muitas vezes ligado a uma cultura de massa.

Ela mesma diz que essa afirmação pode ser muito limitadora, mas dá a entender que a sensibilidade camp valoriza esses fracassos apaixonados.

Godzilla (1954)

No entanto, em vários casos, essas obras não parecem fracassos. Filmes como Rodan!… O Monstro do Espaço (1956) ou os longas de Ishiro Honda não são apenas filmes divertidos de monstros, mas lidam com temas complexos, como as relações de coletividade da nação japonesa.

E mesmo filmes que se fundam em uma teatralidade aparentemente vazia, podem oferecer experiências estéticas intensas e complexas.

A autora reconhece essa intensidade, mas, ao mesmo tempo, também trata essa sensibilidade com certo desdém, ou pelo menos passa essa impressão, já que rejeita certa seriedade que poderia estar implícita nesses trabalhos.

Flash Gordon no Planeta Marte (1938)

Vários filmes que partem de uma sensibilidade ingênua se mostram obras com uma construção dramática muito contundente. É importante sabermos que várias obras que dialogam com o camp podem e devem ser defendidas como qualquer outra obra de arte.

Nesse ponto, o camp não deve ser usado como uma desculpa para se apreciar um filme ruim. Ele pode ser uma característica intrínseca a uma grande obra que deve ser analisada como qualquer outra.

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O CAMP NO CINEMA

Pensando especificamente no cinema, a sensibilidade camp está presente em vários filmes tanto através de uma abordagem ingênua (o camp puro de Sontag), como também através de uma abordagem consciente e proposital.

Ainda que Sontag defenda esse camp puro como ingênuo, o termo ganhou uma conotação muito mais abrangente com o tempo e passou a ser mais usado para se referir a obras que se utilizam de uma estética exagerada de modo consciente.

Muitas ideias que englobam o camp foram apropriadas por trabalhos do cinema queer. A própria Sontag, em seu artigo, fala sobre a relação entre o camp e essa temática.

No cinema, nomes como John Waters, Rainer Werner Fassbinder, Irmãos Kuchar e Andy Warhol remetem a algo camp enquanto tratam de aspectos da cultura queer. Não são artistas que trabalham com uma afetação clichê, mas sim autores que de fato subvertem um juízo de valor estético em voga.

The Rocky Horror Picture Show (1975)

Um filme como Rocky Horror Picture Show (1975) ficou muito famoso por lidar com referências que remetem ao imaginário camp.

O filme é um musical sobre um casal que busca ajuda em um castelo depois de seu carro quebrar na estrada. A pessoa que mora nesse castelo é Frank-N-Furter, um cientista que desafia normas de gênero e sexualidade. O filme explora essa temática tanto a partir da comédia quanto de um possível drama com vários exageros e aspectos teatrais.

A obra de John Waters também possui vários elementos camp. Waters dialoga com aspectos do trash, no sentido de seus filmes possuírem cenas mais explícitas, esdrúxulas e escatológicas, mas a caracterização de seus personagens e mesmo as situações são bastante pouco naturais e exageradas.

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O CAMP EM FILMES CONTEMPORÂNEOS

É possível perceber características do camp em várias obras do cinema contemporâneo, sejam obras mais alternativas ou obras que fazem parte de uma cultura de massa.

A ideia original de George Lucas, antes de criar Star Wars, era adaptar os quadrinhos de Flash Gordon. Devido a isso, vários elementos da franquia remetem a aspectos ingênuos do camp puro.

Star Wars: Episódio II – Ataque dos Clones (2002)

Star Wars: Episódio II – Ataque dos Clones (2002), inclusive, foi muito criticado por ser um filme brega e com diálogos piegas. Lucas defendeu o filme, dizendo que essa característica é consistente com o estilo geral de Star Wars, que remete a filmes seriais exibidos em matinês.

Nas obras de Brian De Palma, também é possível enxergar muito do camp. Sontag fala sobre Hitchcock em seu artigo, dizendo que, na sua perspectiva, ele faz uma autoparódia que soa forçada. Já De Palma parte de algumas ideias formais de Hitchcock e as carrega ainda mais, deixando-as ainda mais artificiais.

Vestida para Matar (1980)

Se Hitchcock pode ser considerado um romântico, De Palma já é um maneirista, um cineasta que exagera em sua abordagem de modo proposital e experimental. Ele não propõe, exatamente, paródias, mas se relaciona de maneira conceitual e teatral com certas convenções definidas por Hitchcock.

Os filmes das Irmãs Wachowski também podem ser pensados como parte desse camp puro. As continuações do filme Matrix (1999) foram criticadas na época de seus lançamentos por terem alguns aspectos bregas e pouco verossímeis.

Filmes como Speed Racer (2008) e O Destino de Júpiter (2015) seguem essa mesma abordagem, explorando a fantasia de forma aberta.

Showgirls (1995)

Um dos casos contemporâneos mais emblemáticos de uma estética que pode se relacionar com a sensibilidade camp é o filme Showgirls (1995), de Paul Verhoeven.

O filme parte de elementos nostálgicos do entretenimento, como os shows de Las Vegas, e não tem uma abordagem irônica sobre isso. Ele celebra a radicalidade estética desses espetáculos sem tirar sarro dos exageros.

Pelo contrário, é um filme que acredita piamente em tais exageros como uma representação visceral da figura de sua protagonista.

A cineasta Anna Biller faz um ótimo uso de uma sensibilidade camp proposital e conceitual em seu filme A Bruxa do Amor (2016), um longa de terror que homenageia certos filmes dos anos 60.

A Bruxa do Amor (2016)

Ela filmou em 35 mm para conseguir uma textura específica e os cenários e atuações são bem exagerados. O filme não é apenas fetichista ou irônico, mas usa essa premissa para tocar em questões contemporâneas.

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A SUBVERSÃO DE EXPECTATIVAS ESTÉTICAS

Ainda que Sontag, em seu artigo, defenda ideias específicas em relação ao camp, o termo nos dias de hoje possui conotações variadas.

Algo que também se reflete no cinema. A sensibilidade camp se manifesta nos filmes de diversas formas, desde obras mais ingênuas até aquelas que usam o exagero em graus distintos.

Para além de qualquer termo ou definição, o importante, no fim das contas, é apreciar essa variedade de obras pelas suas radicalidades e capacidade de subverter expectativas estéticas.

A essência de todo esse debate está em enfatizar obras de arte que vão contra um juízo estético em voga e são fiéis à visão de seus artistas, por mais estranhas e exageradas que essas percepções se mostrem.

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